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    Carros e apartamento obtidos por meio do crime estão entre os bens que os promotores autorizaram o doleiro Alberto Youssef a deixar para sua família ARTE: JOÃO BRIZZI

questões da política

Distorção premiada

Falta de regras nas delações da Lava Jato beneficia corruptos – que podem manter bens comprados com dinheiro roubado e furar a fila na progressão de pena

Consuelo Dieguez | 31 out 2017_14h32
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A tumultuada delação de Joesley Batista, um dos donos da JBS, que quase levou o presidente Michel Temer a perder o mandato e acabou rescindida quando se constatou manipulação por parte dos delatores, centrou foco na discussão sobre os limites do Ministério Público para fechar acordos de colaboração premiada. No caso da JBS, a reação negativa aos termos do acordo – total imunidade, multa considerada baixa em relação à severidade do cometido e impossibilidade de as empresas do grupo serem processadas nessas investigações – foi reverberada pela imprensa e levantou dúvidas sobre se os irmãos, que corromperam meia República em troca de benefícios financeiros, teriam recebido vantagens excessivas. No entanto, os acordos fechados com outros colaboradores também têm sido alvo de críticas de juristas e estudiosos das delações premiadas, e representam um risco a um dos principais instrumentos dos procuradores da Lava Jato.

Thiago Bottino, professor e coordenador da graduação em direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, é especialista em direito premial. Ele fez um alentado estudo sobre as medidas de cooperação previstas na lei 12.850, de 2013 – a Lei da Organização Criminosa na qual está inserida a colaboração premiada – alertando para o perigo de questões não definidas na legislação gerarem dois pesos e duas medidas para benefícios e direitos dos delatores. Sem regras claras, o risco de um delator receber vantagens indevidas ou perder direitos previstos na Constituição é grande. Não à toa, com frequência, essas decisões geram desconfiança. Bottino se debruçou sobre os acordos fechados pelo Ministério Público no âmbito da Lava Jato e listou uma série de pontos cinzentos que acabam por deixar exclusivamente nas mãos dos procuradores a decisão sobre que benefícios podem ser concedidos ou que direitos podem ser retirados.

A falta de definições específicas na legislação resulta em questões polêmicas, como, por exemplo, os critérios para decidir o destino dos bens recuperados. Os bens deveriam ser revertidos para reparar o dano causado pelo crime? Para onde deve ir o dinheiro recuperado? Sem uma normatização, os procuradores e a Justiça deram diferentes destinos aos recursos recuperados.

No caso do ex-gerente da Petrobras Pedro Barusco, decidiu-se que os 90 milhões de reais de propina que ele recebeu – pelos contratos fechados com estaleiros que fariam sondas para a Petrobras – deveriam ser revertidos para a petroleira. No caso do ex-diretor de abastecimento da Petrobras Paulo Roberto Costa, quem recebeu os bens foi a União. Bottino questiona a decisão, pois, segundo ele, ao destinar os recursos para o Estado, os acionistas da Petrobras prejudicados pelo esquema não foram ressarcidos do roubo. O Ministério Público reivindicava ainda que 20% do valor recuperado fosse para a instituição. O ministro Teori Zavascki, que era o relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, no entanto, indeferiu o pleito da procuradoria.

A zona obscura na legislação provoca situações espantosas, como os acordos fechados com a promotoria em que os bens dos delatores são destinados às suas famílias. O doleiro Alberto Youssef, por exemplo, também envolvido na Lava Jato, fez praticamente um testamento com os bens obtidos por meio do crime. Na cláusula 7 do acordo, o Ministério Público autorizou que ele deixasse um apartamento para as filhas e um para sua ex-mulher. Também ficaram à disposição das filhas um Volvo XC60 e um VW Tiguan. Bottino considera esta cláusula totalmente questionável. “Como é possível o delator poder usufruir de um bem que é produto de um crime?”

Na mesma zona de indefinição estão os benefícios que podem ser concedidos a quem decidir colaborar. O ex-senador e ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, acertou com o Ministério Público que cumpriria nove meses em regime semiaberto, com prestação de serviço à comunidade. A multa a ser paga foi estipulada em 75 milhões de reais. Já Pedro Barusco terá que cumprir a pena integralmente em regime domiciliar, enquanto Alberto Youssef teve direito ao regime de cumprimento de pena diferenciado, que começou com regime fechado e progrediu para o aberto sem cumprir os requisitos intermediários desse tipo de pena. “Com base em que a procuradoria fixou essas penas e essa multa?”, questiona o professor.

Alguns outros benefícios concedidos aos delatores também entram na mira do estudo de Bottino. Um deles foi a permissão para que Alberto Youssef tivesse atendimento de seu médico particular dentro da prisão. Como todos os outros presos têm que ser atendidos por médicos do serviço público, não existe uma explicação plausível para a vantagem concedida ao doleiro. “Como ele conseguiu esse benefício se isto não está previsto em lei?”, questiona Bottino.

 

Um ponto crucial a ser resolvido para evitar desequilíbrios, de acordo com o professor, trata da delimitação dos fatos que são objeto da colaboração. Seriam somente aqueles que integram o contexto da investigação? Ou todos os crimes que o delator praticou? Todos os crimes que o delator teve conhecimento? No caso de uma colaboração que dure tempo prolongado, devem ser investigados todos os crimes dos quais as autoridades não tenham nenhum conhecimento? Existe um dever de colaboração genérico? Bottino usa o caso da colaboração premiada de Sérgio Machado, que delatou o ex-senador José Sarney e os senadores Romero Jucá e Renan Calheiros, todos do PMDB, para mostrar como os procuradores expandiram a investigação de tal forma que ela corre o risco de perder o foco.

Na cláusula 15 do acordo de Machado, segundo o professor, fica explicitado que ele tem o dever de fazer uma delação genérica. Por esta cláusula, “a enumeração de casos específicos nos quais se reclama a colaboração não tem caráter exaustivo, tendo o colaborador o dever genérico de cooperar com o Ministério Público Federal e outras autoridades públicas”. Isso significa que ele teria que falar sobre todo e qualquer crime de que tenha conhecimento, e não só o que está sendo investigado. “É quase um confessionário”, diz Bottino. “A lei não fala isso, mas na prática tem sido assim.” Segundo ele, este tipo de delação tem dois efeitos. O positivo é que se pode descobrir muita coisa. O negativo é ampliar tanto a investigação a ponto de perder a direção.

Outro ponto importante e ainda não definido na legislação é sobre quais direitos de que o colaborador teria de abrir mão para conseguir os benefícios de uma delação premiada. Uma das cláusulas que Bottino questiona é a possibilidade de vincular os acordos de colaboração à renúncia ao direito de indenização por uma prisão equivocada, por exemplo, e também a renúncia ao direito de qualquer recurso, inclusive habeas corpus. Nas delações de Sérgio Machado, Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, segundo o pesquisador, os acordos assinados com o Ministério Público estabeleceram que os delatores podiam desistir dos habeas corpus solicitados caso quisessem negociar os benefícios na delação. “O Ministério Público tem colocado em todos os acordos que não se pode discutir questão processual em habeas corpus”, disse Bottino. A regra vale mesmo se for comprovada a existência de prova ilícita que o delator queira questionar. “O habeas corpus é cláusula pétrea da Constituição, e nenhuma lei que o Congresso aprovar pode acabar com esse direito”, explicou. “Mas um acordo pode fazer isso?”, espanta-se.

Outra crítica fundamental do professor da FGV refere-se à prisão dos delatores sem que haja provas concretas contra eles. “Não sei se são culpados ou inocentes, mas prisão sem prova é algo difícil de aceitar”, disse. E citou o caso do tesoureiro do PT, Vaccari Neto, que acabou solto porque o Tribunal não aceitou as provas apresentadas. “Não basta apenas falar o que houve, tem que apresentar provas. O ex-senador Delcídio do Amaral fez várias acusações sem apresentar nada que as corroborasse.” Por medo de prisão, argumenta Bottino, os delatores acabam falando demais. “O interrogatório com prisão é para subjugar a vontade do interrogado e a condução coercitiva é para forçá-lo a falar”, disse.

A forma como os promotores estão lidando com prisões cautelares é outro ponto de questionamento, segundo Bottino. O Ministério Público poderia acordar sobre o modo de medida cautelar restritiva de liberdade como vem fazendo? Ou poderia propor que a prisão cautelar fosse substituída por domiciliar com tornozeleira? Poderia, ainda, condicionar que esta substituição ocorra apenas depois de prestados depoimentos específicos? Ou, mais grave, poderia se comprometer a não requerer uma prisão cautelar? A prisão cautelar é pedida quando há risco de o criminoso fugir, destruir prova ou coagir testemunha. Mas no acordo celebrado com Sérgio Machado, por exemplo, o Ministério Público se comprometeu a não pedir prisão cautelar. No entanto, alerta Bottino, e se ele tivesse tentado destruir prova, fugir ou coagir testemunha? Nesse caso ele poderia ser preso? Se sim, então ou essa cláusula não vale nada e não poderia ser colocada no acordo, ou o delator ficaria livre da prisão mesmo cometendo esses crimes.

 

O juiz Sérgio Moro tampouco sai livre das críticas do estudioso em direito premial. Bottino questiona, por exemplo, o fato de Moro, que costuma citar a justiça americana em suas entrevistas, insistir em interrogar as testemunhas – o que não acontece nos Estados Unidos. “Quem faz pergunta é promotor e defesa e, no final, o juiz decide com base no que eles apresentarem”, disse. “Juiz não fica produzindo prova e muito menos liberando gravação obtida de forma irregular”, criticou, referindo-se à gravação da conversa entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então presidente Dilma Rousseff, que acabou por impedir que Lula assumisse a Casa Civil. Para ele, isso é parcialidade, tentação em que nenhum juiz pode incorrer. “A lei diz que pode se fazer certas coisas e outras não”, afirma.

Bottino se diz admirador do trabalho dos procuradores que, pela primeira vez, estão colocando criminosos do colarinho branco na cadeia. Mas com ressalvas. Hoje, diz ele, o Ministério Público é uma instituição com grande poder, mas os procuradores precisam entender que existe um limite para a ação deles que é a lei. “É importante combater o crime, mas não se pode fazê-lo violando regras.” Segundo ele, há um risco grande no comportamento messiânico e populista de alguns procuradores. “Pode gerar uma onda autoritária e até uma reação ao Ministério Público, o que será muito ruim para sociedade.”

Acesse aqui o estudo na íntegra.

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