Visualização de dados: Rodolfo Almeida
Numa rua de terra batida, acumulam-se anúncios de venda de terrenos. As placas, enfileiradas no acostamento, quase somem debaixo da poeira levantada pelos carros. Para onde se olhe, há uma parede de tijolos sendo erguida. Na Colônia Agrícola 26 de Setembro, nada movimenta tanto dinheiro quanto a construção civil. A demanda é tanta que há cinquenta lojas de materiais de construção no bairro.
O assentamento fica no Distrito Federal, a 26 km do Palácio do Planalto, e recebe novos moradores a cada dia. Hoje, a população dali é estimada em 35 mil pessoas. A maioria delas vive em casas simples, construídas em ruas sem asfalto, sem saneamento e sem presença do poder público. Não há escolas ou postos de saúde. Quase ninguém paga por energia elétrica – só duzentas pessoas, estima a associação de moradores, o que equivale a menos de 1% da população local.
O bairro tem essas características porque é ilegal. Foi quase todo construído em terras públicas, numa área de conservação onde deveria haver uma floresta preservada. Nenhum imóvel tem certidão registrada em cartório. Do ponto de vista da lei, todos os que se dizem proprietários de terras naquele bairro são grileiros.
O problema se arrasta há mais de vinte anos. Nos anos 1990, quando as primeiras chácaras apareceram na região, o governo federal criou a Floresta Nacional de Brasília (Flona), uma área de preservação ambiental de 9 mil hectares que incluía a área atualmente ocupada pelo assentamento. O plano era transferir os moradores dali para outro lugar, já que não é permitida a ocupação humana em unidades de conservação. A desocupação, porém, nunca aconteceu. Com o tempo, invasores foram se apossando daquelas terras, construindo casas, comércio e chácaras.
Casos com esse se repetem em diferentes partes do Distrito Federal, ameaçando a flora nativa da capital do país. Levantamento inédito da piauí em parceria com o projeto Data Fixers mostra que ao menos 1.026 pessoas físicas ou jurídicas declararam ao governo federal, por meio do Cadastro Ambiental Rural (CAR), serem donas de terras em unidades de conservação do DF. Somados, esses cadastros totalizam 69 mil hectares, o equivalente a 90% da área de preservação existente.
No Parque Nacional de Brasília, um destino turístico conhecido por suas cachoeiras e piscinas naturais, mas que também abriga espécies ameaçadas de extinção, como o gato-maracajá e o tamanduá-bandeira, duas pessoas registraram cada uma um CAR dizendo ter posse de mais da metade da área do parque – uma ilegalidade flagrante. Os dados foram fornecidos à piauí e ao projeto Data Fixers pelo Instituto Brasília Ambiental (IBRAM) em novembro de 2022. A reportagem pediu uma atualização dos números este ano, mas, dessa vez, o pedido foi negado. O instituto, que é vinculado ao governo do DF, alegou que os dados são sigilosos.
Os CARs são autodeclaratórios. Esse mecanismo foi criado pelo governo federal, em 2012, para facilitar a fiscalização de propriedades rurais. A intenção era monitorar se os proprietários estavam respeitando as áreas de preservação ambiental, mas a ideia logo foi subvertida: no Cerrado, assim como na Amazônia, grileiros passaram a usar o cadastro rural para legitimar a posse de terras em áreas ilegais. O registro dá um verniz legal ao que não é.
Em geral, depois de obter um CAR numa área protegida pelo poder público, grileiros solicitam um registro do Incra – o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – e aguardam uma futura desafetação da unidade de conservação. Caso a área um dia deixe de ser preservada, eles poderão reivindicar a posse da terra.
A diferença entre a grilagem na Amazônia e no Distrito Federal é que, neste último, o objetivo do grileiro não é transformar a área numa propriedade rural particular, mas criar loteamentos urbanos, que lhe permitam lucrar com a venda de terrenos. As placas anunciando a venda de imóveis na Colônia 26 de Setembro, por valores que variam entre 55 mil e 105 mil reais, atestam o sucesso do modelo criminoso. A prosperidade é tanta que o esquema entrou no radar de traficantes e milicianos.
Vídeo mostra a linha que separa a Colônia 26 de Setembro das áreas ainda preservadas da Floresta Nacional (Flona) de Brasília
Quando a Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal tenta barrar novas construções na Colônia 26 de Setembro, os moradores costumam apelar para Francisco Joélio Rodrigues da Silva, o Miguel da 26. Cinegrafista de uma empresa que presta serviços para o Senado, ele vive no bairro há catorze anos e preside a associação dos moradores. No ano passado, se lançou candidato a deputado distrital pelo PSDB, mas teve apenas 4.252 votos e não se elegeu.
“Eu tô sofrendo uma perseguição aqui, Miguel, por favor me ajuda com as autoridades. Eu só tô reivindicando um lugar pra eu morar”, diz um homem, no telhado de um barraco, cercado por funcionários do governo distrital que derrubavam tapumes. A cena, ocorrida em outubro do ano passado, foi filmada por Miguel e publicada por ele no Instagram. “Olha o morador reivindicando o direito de moradia”, afirmou o líder comunitário no vídeo, enquanto assistia à desocupação.
Um processo na Justiça indica que o próprio Miguel atua na venda de lotes. Lu Tong Lin, um chinês radicado no Distrito Federal, diz ter vendido a ele uma chácara na Colônia 26 de Setembro, que Miguel posteriormente dividiu em lotes e revendeu a terceiros. Depois de um desentendimento entre ambos, porém, Lin entrou na Justiça para tentar reaver o imóvel. No processo, Miguel foi acusado de ameaçar de morte um vizinho que iria testemunhar a favor de Lin. Os pedidos de Lin, no entanto, acabaram rejeitados. A juíza entendeu que tanto ele quanto Miguel tinham cometido crime ao dividir e comercializar terras dentro de uma unidade de conservação.
Miguel da 26 fez dobradinha, na eleição, com o senador Izalci Lucas (PSDB), que disputou o governo distrital, e com a ex-ministra da Secretaria de Governo Flávia Arruda, que se lançou ao Senado pelo PL. Os três fizeram carreatas juntos na Colônia 26 de Setembro. Em busca de votos, prometiam a desafetação do assentamento – isto é, defendiam mudar a lei para que aquela área deixasse de ser uma unidade de preservação ambiental, legalizando, com isso, sua ocupação.
Quando ainda era deputada federal, Arruda propôs, em 2020, um projeto de lei reduzindo em 4 mil hectares a área protegida da Floresta Nacional de Brasília. A mudança abarcava a Colônia 26 de Setembro. Como compensação, o texto propunha aumentar outra área de conservação dentro da floresta. O projeto foi aprovado na Câmara em maio de 2022. Ao chegar ao Senado, recebeu uma única emenda, do senador Jaques Wagner (PT-BA), propondo que a unidade a ser ampliada fosse o Parque Nacional da Chapada da Contagem, também no DF.
Izalci, relator do projeto, se opôs à emenda. Seu argumento era pouco esclarecedor: segundo o tucano, a redução da Floresta Nacional de Brasília “por si só, trará benefícios ambientais à unidade de conservação federal”. Não explicou como isso seria possível sem que houvesse alguma forma de compensação pela mudança.
A lei, apoiada pelo Ministério do Meio Ambiente, foi sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral, a tempo de ser celebrada pelo candidato Miguel da 26. “É dia de festa, graças ao presidente Bolsonaro, o nosso libertador”, escreveu o cinegrafista nas redes sociais. Embora tenham cumprido a promessa feita aos assentados, nem Izalci nem Arruda foram eleitos. (O gif abaixo mostra, em vermelho, as áreas que deixaram de fazer parte da unidade de conservação por causa da lei sancionada em 2022.)
O PV contestou a lei no Supremo Tribunal Federal (STF), mas o caso ainda não foi julgado. Embora a Colônia 26 de Setembro não faça mais parte da Floresta Nacional de Brasília, ela continua sendo terra pública – e, portanto, a ocupação ainda é ilegal. Procurado pela piauí, Miguel disse que atuou somente para defender os interesses dos moradores e que as acusações de grilagem feitas por Lu Tong Lin não procedem. “Eu apenas fiz o intermédio entre ele e os interessados nos lotes.”
O senador Izalci explica que tentou, por meio de um outro projeto de lei [o PL 4379, de 2020], estabelecer uma compensação ambiental pela desafetação daquela parte da Flona de Brasília. A proposta foi aprovada no Senado e ainda tramita na Câmara. O tucano, no entanto, argumenta que a desafetação não incentiva a grilagem na Colônia 26 de Setembro. “Não regularizar [a área] é que incentiva a grilagem. Os caras têm que morar em algum lugar”, afirmou à piauí. A ex-deputada Flávia Arruda também foi procurada, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Em maio do ano passado, uma operação do ICMBio aplicou milhares de reais em multas a invasores do Parque Nacional de Brasília, maior unidade de conservação do Distrito Federal, com 42,3 mil hectares. Segundo o órgão, eles desmataram e construíram casas no parque. A invasão é feita pelas beiradas, e se acelerou nos últimos anos. Ao Norte, foram instaladas dezenas de chácaras. Ao Sul, além da Colônia 26 de Setembro, está em curso uma ocupação desordenada feita por famílias sem teto, que deram origem à favela Santa Luzia. É uma das áreas mais pobres da capital. Tem 16 mil moradores e abriga integrantes do Comboio do Cão, uma facção criminosa do Distrito Federal. O narcotráfico tomou conta do local.
A piauí esteve na Santa Luzia em setembro. A presença da reportagem chamou a atenção de dois “olheiros”, homens armados que vigiam as entradas da favela e têm o papel de alertar os traficantes caso apareçam policiais. Um dos olheiros abordou o repórter e o fotógrafo da piauí para conferir se não eram policiais à paisana.
A ocupação ilegal de terras é uma marca de nascença do Distrito Federal. A primeira Constituição republicana, de 1891, previa que a capital deveria ser transferida do Rio para o interior do país. No começo dos anos 1950, com Getúlio Vargas, o governo definiu a localização de Brasília: ficaria no Planalto Central, uma área elevada no meio de três grandes bacias hidrográficas – as dos rios Amazonas, São Francisco e Paraná. Coube a Juscelino Kubitschek tirar a ideia do papel.
A ideia era desapropriar toda a área do Distrito Federal, cerca de 14 mil km² na época, por meio da Novacap – a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. Mas o plano não foi adiante, primeiro porque já existiam duas cidades no local (Planaltina e Brazlândia), segundo porque, graças à especulação imobiliária, as terras tinham encarecido muito desde que a nova capital fora anunciada. No fim das contas, o governo desapropriou só a área onde está situado o plano piloto de Brasília.
A primeira invasão de terras ocorreu ainda durante a construção da capital. Migrantes nordestinos que trabalhavam nos canteiros de obras, mas não tinham onde ficar, ocuparam a fazenda Taguatinga, recém-desapropriada pelo governo federal. Por ser uma área pública, não poderia ser ocupada, mas foi. Dois anos depois de ser criada, Taguatinga somava 26 mil habitantes. Hoje é uma das principais cidades-satélite do Distrito Federal, com mais de 200 mil moradores.
A ditadura militar conseguiu frear a grilagem ao construir grandes loteamentos de terra como Guará e Ceilândia (que se chama assim por causa da Campanha de Erradicação de Invasões, a CEI, criada pelos militares). Na segunda metade dos anos 1980, contudo, o problema fundiário voltou com tudo. Joaquim Roriz, que governou o Distrito Federal por quatro mandatos (de 1988 a 1995, e de 1999 a 2006) filiado a diferentes partidos, incentivou a ocupação de terras públicas e a criação de cidades-satélite, entre elas Águas Claras, Samambaia e Vicente Pires.
“O Roriz criou um império político-eleitoral baseado na concessão indiscriminada de terras. Até hoje o Distrito Federal sente os efeitos danosos dessa política demagógica no planejamento urbano”, diz o professor de urbanismo da UnB Frederico Flósculo Pinheiro Barreto. Segundo ele, desde que Brasília foi erguida no Cerrado, “política partidária e grilagem de terras sempre andam de mãos dadas”.
A piauí perguntou ao governo do Distrito Federal qual é a área ocupada hoje por loteamentos irregulares em Brasília, mas a administração disse não ter uma estimativa. A grilagem, além de prejudicar o planejamento urbano, afeta a rede hídrica do Distrito Federal, que já está entre as mais críticas do Brasil, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA). Por não ter grandes rios, Brasília é abastecida por grandes lagos, entre eles o Paranoá, Santa Maria e Descoberto.
De acordo com o professor do departamento de engenharia civil e ambiental da UnB Sergio Koide, o lago Descoberto, responsável por 60% do abastecimento de água do Distrito Federal, tem perdido nascentes devido à expansão desordenada da Sol Nascente, a maior favela brasileira, situada a Oeste de Brasília, com 93 mil habitantes. O quadro, explica Koide, deve se agravar com a ocupação de uma área de 996 hectares ao Norte do lago que pertencia à Floresta Nacional de Brasília, mas que deixou de ser área de preservação por causa do projeto de Flávia Arruda.
O crescimento da Colônia 26 de Setembro e da vizinha Vicente Pires pode comprometer futuramente a capacidade do Paranoá, o lago mais famoso da capital. “Infelizmente, já estamos sentindo um déficit hídrico no Distrito Federal”, lamenta Koide. Em 2018, durante uma seca severa, os brasilienses tiveram de racionar água. O presidente da Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb), Luís Antônio Reis, disse à piauí que a autarquia tem reduzido os danos ao lago Descoberto por meio de programas de incentivo a produtores rurais que conservam áreas de nascente. “É uma maneira de reverter a pressão urbana nessa região.”
Chácaras construídas na porção norte do Parque Nacional de Brasília, maior unidade de conservação ambiental do DF – Foto: Sérgio Lima
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) comporta alguns disparates. Parte da favela de Santa Luzia está registrada em nome da Sociedade Tropical de Melhoramentos, uma imobiliária pertencente ao advogado Oswaldo da Silva Mendes. Ele é dono dos maiores CARs dentro de áreas de conservação do Distrito Federal. Diz, no papel, ser proprietário de 29,6 mil hectares (ou 69%) do Parque Nacional de Brasília.
Goiano, Mendes chegou ao Distrito Federal ainda jovem, no começo dos anos 1960. Abriu uma construtora e enriqueceu graças ao boom imobiliário da região. Em 1980, enfim, comprou de um de seus irmãos a Sociedade Tropical de Melhoramentos.
Nos dados de 2022 do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), a imobiliária constava como dona de nove CARs sobrepostos a unidades de conservação no Distrito Federal. Em uma de suas propriedades legalizadas, às margens da rodovia DF-180, Mendes construiu uma estátua enorme de Dom Quixote. Diz ser fã do fidalgo criado por Miguel de Cervantes. Procurado repetidas vezes pela piauí em seu e-mail e por WhatsApp, o advogado não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Há outros casos graves. Segundo o Ministério Público Federal, ao menos um dos CARs registrados em área de preservação do Distrito Federal foi usado para lavar dinheiro do jogo do bicho. Trata-se da Fazenda Gama, uma terra de 4 mil hectares, dos quais 880 invadem a Estação Ecológica do Jardim Botânico. Na matrícula do imóvel, consta que ele foi comprado em 1990 por Edgard de Goes Monteiro, que, vinte anos depois, o revendeu para seu filho, o piloto de avião Matheus Paiva Monteiro. O MPF alega, no entanto, que o documento é fraudulento: Edgard morreu em 1973, dezessete anos antes de supostamente comprar o imóvel, portanto.
Na compra do imóvel, Monteiro pagou ao seu pai 3,5 milhões de reais, dos quais 2,7 milhões em espécie e em depósitos bancários. Segundo o Ministério Público, o piloto era testa de ferro do bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, e o dinheiro utilizado na compra da fazenda provinha do jogo do bicho. Por conta do episódio, o Ministério Público denunciou Cachoeira, Monteiro e outros quatro por lavagem de dinheiro. A ação tramita na 10ª Vara Federal de Brasília. Devido ao segredo de Justiça, a assessoria da Justiça Federal no DF não pôde informar se houve sentença no caso. Procurado pela piauí, Monteiro não quis comentar o episódio.
Em áreas griladas densamente povoadas, como a Colônia 26 de Setembro e a Sol Nascente, a posse dos imóveis é, muitas vezes, garantida à força. Grileiros com maior capacidade financeira contratam milícias formadas por policiais civis e militares para proteger seus lotes e, em alguns casos, tomar áreas de terceiros.
Uma investigação da Polícia Civil mostra que casos assim acontecem ao menos desde 2000. Naquele ano, o então delegado Francisco de Assis Barreiro Crizanto e sua equipe foram contratados como seguranças a serviço de grileiros do condomínio Privê, no Lago Norte, em Brasília. Meses depois, expulsaram um dos moradores do condomínio, derrubando a cerca que delimitava o terreno de seu imóvel. Segundo os investigadores, o delegado esperava receber, como forma de compensação por esse ato de violência, alguns lotes do condomínio. Depois os venderia para injetar dinheiro em sua campanha a deputado distrital, em 2002.
“Em nossos lote tem que tá juntinho pra poder… a gente vendê”, disse Crizanto, em conversa interceptada pela Polícia Civil com autorização judicial. “Aquilo lá é filé na mão, é igual […] pão em feira, rapaz”, respondeu o interlocutor, um advogado envolvido no esquema. “É, mas eu vou querer é pra campanha, moço”, finalizou o delegado. Ele não conseguiu se eleger e foi condenado pelos crimes de corrupção passiva (pena que prescreveu, anos depois) e improbidade administrativa.
Crizanto foi afastado da Polícia Civil, mas voltou a se candidatar nas eleições de 2006, 2010 e 2020, sem nunca conseguir se eleger. No último pleito, declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de 9,7 milhões de reais, incluindo cinco lotes no conjunto habitacional Sol Nascente e uma casa de 6 milhões de reais no Lago Norte. Nos registros do CAR, o ex-delegado, que hoje trabalha como advogado, também se diz dono de 39 hectares dentro da Área de Relevante Interesse Ecológico JK, vizinha à Sol Nascente. Procurado por e-mail, ele não se manifestou.
Em 2015, uma investigação da Polícia Civil destrinchou o processo de grilagem na Sol Nascente, que começara havia poucos anos, quando os primeiros grileiros desmataram a área, aterraram um pequeno lago, improvisaram ruas e começaram a vender lotes a preços baixos – cerca de 5 mil reais, em valores da época. Os criminosos chegaram a fraudar documentos de cartórios de Goiás para dar verniz de legalidade à operação. Assim nasceu a favela mais populosa do Brasil.
Pouco tempo depois, quando se instalou uma rede de energia e foram abertos os primeiros poços artesianos, os lotes tiveram uma valorização súbita. Passaram a ser vendidos a 40 mil reais. Os grileiros então começaram a pressionar os primeiros compradores a pagar a diferença: se haviam comprado os lotes por 5 mil reais, teriam que completar o pagamento com 35 mil. Quem não aceitasse era expulso da comunidade. Era aí que entrava em cena um grupo de policiais militares lotados no 8° e no 10° Batalhões da PM, responsáveis pelo patrulhamento da Sol Nascente. Cabia a esses agentes expulsar moradores que se recusassem a pagar uma segunda vez pelo mesmo lote, ou mesmo repelir invasores de outras regiões da cidade. Os policiais – milicianos, na prática – eram pagos com terrenos na comunidade.
Além disso, segundo o Ministério Público, os PMs vendiam armas e drogas apreendidas em outros bairros para integrantes da facção criminosa Comando Sol Nascente, que lucrava com o tráfico e com a extorsão de moradores. Os comerciantes que trabalham na favela eram obrigados a pagar “taxas de segurança” para a facção – mesmo modus operandi das milícias do Rio de Janeiro. Essa mistura de grilagem, tráfico e milícia explica os altos índices de violência na região: entre 2009 e 2015, 205 pessoas foram assassinadas na favela Sol Nascente.
Em conversa captada pela Polícia Civil, um dos grileiros falou sobre a proteção que os PMs davam ao esquema: “Melhor você comprar um negócio garantido, que ninguém vai mexer com você, do que você comprar um negócio que vai arrumar confusão, vai arrumar problema. Lá não, querendo ou não tem nós e a polícia.”
Segundo a Polícia Civil, um dos PMs envolvidos no esquema era o sargento João Batista Firmo Ferreira, tio da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro. As interceptações telefônicas indicam que, além de ameaçar invasores e inadimplentes, Ferreira negociava lotes tanto na Sol Nascente quanto na Colônia 26 de Setembro. “Tem um lote de 650 metros [quadrados] na 26 pra dar pra eles e vão torrar barato”, disse, em um dos grampos. Ele e outros seis PMs foram presos e expulsos da corporação, depois de condenados por associação criminosa, extorsão, homicídio e outros crimes relacionados à grilagem de terras. A facção Comando Sol Nascente foi desmantelada depois de sucessivas investidas da Polícia Civil que começaram em 2019, com a deflagração da Operação Hórus.
A Polícia Civil investiga, hoje, a atuação de organizações criminosas na Colônia 26 de Setembro. Em agosto de 2020, um policial civil foi baleado e dois PMs ficaram feridos durante uma operação para derrubada de imóveis irregulares no bairro. A Secretaria de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal suspeita da ação de milicianos.