O assassinato de cinco pessoas em um apart-hotel de Canasvieiras, litoral norte de Florianópolis, no dia 5 deste mês, desafia a Polícia Civil de Santa Catarina. Além do perfil das vítimas, quatro delas integrantes de uma família atolada em dívidas milionárias, a circunstância das mortes confere à chacina peculiaridades intrigantes.
A principal delas é o método utilizado pelos assassinos: as vítimas morreram asfixiadas com panos embebidos em gasolina, cada uma em um cômodo diferente do apart-hotel. Nada foi levado pelos criminosos, exceto o sistema de gravação das imagens do circuito de segurança do imóvel.
“Sem dúvida é um caso diferente de todos os que já investiguei”, afirma o delegado Ênio de Oliveira Matos, que atua há dez anos na Delegacia de Homicídios da capital catarinense. “A técnica usada para matar essas pessoas e a disposição dos corpos pelos quartos têm um significado. Resta saber qual. É um quebra-cabeças difícil de montar”, diz.
Um pano com gasolina na boca leva à morte em poucos minutos. Além da obstrução das vias respiratórias pelo tecido, o benzeno, componente da gasolina, provoca “pneumonia química”, que leva a náuseas, convulsões, perda da consciência e morte, explica o médico-legista Marcus Vinicius Baptista.
Apesar da “eficiência” da técnica, delegados que atuam na investigação de homicídios no Rio de Janeiro e em São Paulo ouvidos pela piauí disseram não se recordar de mortes provocadas por esse método. “Nunca me deparei com um caso assim”, afirma Fábio Cardoso, da Delegacia de Homicídios do Rio.
O que a polícia catarinense sabe até agora é que as vítimas – Paulo Gaspar Lemos, 78 anos, seus filhos Paulo Júnior, 51, Kátya, 50, e Leandro, 44, além de Ricardo Lora, 39, sócio de Leandro, e uma camareira do apart-hotel – foram rendidas por três homens, todos armados com pistolas, por volta das 16 horas, no apart-hotel Venice Beach, empresa do patriarca Paulo Gaspar. Aproximadamente duas horas depois, a funcionária foi libertada pelos criminosos. O crime só seria consumado por volta das 23 horas. Antes de saírem do imóvel, o trio rabiscou na parede o nome da facção criminosa paulista PCC (Primeiro Comando da Capital), o número 171 – possível referência ao artigo do Código Penal que tipifica o crime de estelionato – e uma frase: “Minha família foi justiçada. Enrolaram muita gente. Chegou a hora deles.”
Para o delegado Matos, a referência ao PCC é uma tentativa de confundir as investigações policiais. “A hipótese de guerra de facções está praticamente descartada.” A testemunha-chave é a camareira solta pelos criminosos. No período de duas horas em que ficou com os criminosos, o que ouviu deles? Ela foi logo separada das demais vítimas? Consegue reconhecer algum dos três assassinos? Provavelmente essas informações já estão com o delegado, mas ele se nega a revelar o conteúdo do depoimento, com a justificativa de que isso poderia atrapalhar as investigações. Procurada pela piauí na casa onde mora, também em Florianópolis, a camareira, ainda assustada com o episódio, não quis dar declarações.
A principal pista para a polícia desvendar o crime pode estar no passado da família Gaspar Lemos. Paulo, o patriarca, e os filhos Paulo Júnior, Leandro e Kátya deixaram uma dívida de 227 milhões de reais, de acordo com levantamento feito pela piauí no Tribunal de Justiça de São Paulo e nos cadastros de dívida ativa da União e do estado de São Paulo. O montante é decorrente de dívidas tributárias e calotes em bancos e locadoras de imóveis, sem contar condenações na Justiça por danos morais a pelo menos sessenta clientes de uma antiga rede de concessionárias da família na Grande São Paulo. “Compramos um carro lá e demos como parte do pagamento o veículo que tínhamos. Venderam esse automóvel, mas não transferiram o documento para o novo dono. Pagamos multas de trânsito e até o IPVA. Foi muita dor de cabeça”, disse uma mulher que entrou com ação na Justiça contra a empresa – ela preferiu não ser identificada.
Tanta gente prejudicada amplia o leque de suspeitos do crime, embaralhando o trabalho da polícia.
Paulo Gaspar Lemos era um apaixonado por carros antigos, especialmente da marca italiana Alfa Romeo. Tinha dezenas deles, e gostava de deixá-los em exposição na rede de concessionárias que a família tinha em São Paulo, a Venice, razão do sucesso e da ruína dos Gaspar Lemos.
A empresa, vendedora de veículos da marca Fiat, foi aberta em 1992, segundo documentos da Junta Comercial em São Paulo, com o nome fantasia Venice e a razão social GPV Veículos e Peças, referência às iniciais de Paulo e de seu sócio, o italiano Giovanni Vestri. Já no ano seguinte, Vestri deixou a sociedade e foi substituído pela mulher de Paulo, Cecília Ana Lemos, e pelos filhos Kátya e Leandro. No início dos anos 2000, auge do negócio, a Venice chegou a ter um capital social de 22,7 milhões de reais e sete filiais espalhadas pela Grande São Paulo. Com doze empresas, o patriarca Paulo morava em um apartamento de 960 metros quadrados, quatro vagas na garagem e valor venal de 4,2 milhões de reais no Bosque da Saúde, Zona Sul da capital paulista. Também era dono de lotes em Itanhaém, litoral sul de São Paulo, e de duas fazendas no interior do estado: uma de 299 hectares em Taubaté e outra de 41 hectares em Atibaia.
A situação financeira da família começaria a se deteriorar no fim da década passada. Dívidas decorrentes de má gestão dos negócios começaram a se acumular e a Venice passou a entregar seu estoque de veículos como garantia de suas dívidas. Mesmo assim, os automóveis eram vendidos para terceiros, que só percebiam o engodo quando deixavam de receber o documento do veículo ou quando notavam no papel a alienação do bem ao credor da Venice.
Uma romaria de clientes prejudicados começou a ir diariamente à porta da matriz da concessionária, na avenida Tancredo Neves, Vila Nancy, Zona Sul de São Paulo. Parte deles foi entrevistada em 2010 pelo deputado federal Celso Russomanno, que se notabilizou por programas ligados à defesa do consumidor – os vídeos estão disponíveis no canal que o parlamentar mantém no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=CSl7BCPxpJY).
Em razão desses imbróglios com os clientes e também com o fisco, Paulo Gaspar Lemos era réu em três ações penais por estelionato e uma por crime contra a ordem tributária em São Paulo. Para escapar dos credores e dos oficiais de Justiça, mudou-se há cerca de dez anos com a família para Florianópolis, onde tinha imóveis no bairro de classe média alta Jurerê Internacional. A amigos, disse temer alguma violência contra a família, como ocorrera em 2002, quando ele foi vítima de um sequestro relâmpago na capital paulista.
Em maio de 2011, a Fiat rompeu o contrato com a Venice. Era o fim da concessionária e da fonte de prosperidade da família. Paulo teve todos os bens, incluindo a coleção de carros antigos, penhorada para o pagamento das dívidas.
Na capital catarinense, a família abriu o apart-hotel Venice Beach, em nome de “laranjas”, e tentou se reerguer financeiramente. O filho Leandro alugava uma casa da família em Jurerê para promover festas. “Na época trazíamos DJs de Ibiza, em festas sempre ‘open bar’. Foram dois verões muito agitados, em 2012 e 2013”, disse o produtor musical Leandro Gemelli, que foi sócio de Leandro Gaspar na empreitada.
Em seguida, o filho de Paulo Gaspar Lemos abriu, em sociedade com Ricardo Lora, uma casa de eventos, a Venice Hall – a marca sempre acompanhou a família –, depois rebatizada de Arena Spazio. Novamente o negócio não decolou. Novas dívidas voltaram a perseguir a família, agora em solo catarinense. Paulo Gaspar e a empresa LGL, do filho Leandro, foram condenados em duas ações por calotes no aluguel de imóveis em Florianópolis.
Vizinhos ao apart-hotel disseram à piauí que a família estava morando provisoriamente no local enquanto aguardava a conclusão da reforma de duas casas dos Lemos em Jurerê Internacional – segundo a polícia, os dois imóveis haviam sido bloqueados pela Justiça para o pagamento das dívidas da família. A mulher de Paulo, Cecília, morreu de câncer no ano passado. O patriarca e o filho Leandro costumavam andar sempre juntos e pouco saíam do hotel. As exceções eram Kátya, artesã conhecida no bairro, e Paulo Júnior, portador de uma leve deficiência intelectual, que costumava ir a uma padaria próxima comer tortas de maçã.
O Venice Beach fica em um prédio de três andares, com sacadas em azulejo, distante duas quadras da praia em Canasvieiras. Não há requinte no estabelecimento: a fachada precisa de manutenção, os equipamentos de ar-condicionado estão enferrujados e a placa na entrada foi recentemente modificada – o antigo nome foi grosseiramente apagado, assim como as informações de contatos. Por cima, foi escrita a palavra “Residencial”, restando apenas as iniciais VB, seguidas do slogan: “Aqui você se sente em casa.”