Pablo Marçal já disse que se entusiasmou com a ideia de ser prefeito em São Paulo após o mutirão humanitário que organizou para ajudar as enchentes recorde do Rio Grande do Sul. Ele foi um dos influenciadores engajados em mandar recursos para o estado nas cheias devastadoras de maio. Era possível ajudar com alimentos, mas sua campanha digital pedia doações em dinheiro para a chave-pix de um estabelecimento chamado Mercadinho GG, de Guarulhos. Com intensa cobertura nas próprias redes sociais, as ações fizeram barulho.
Ele usou aeronaves, sua e de amigos, para transportar a comida, os itens de higiene, colchões e ração para animais. Foram “4 milhões de quilos de suprimento” (ou 4 toneladas), contabilizou Marçal em suas redes. Ele contou também que “fez” e “abriu” dez centros de distribuição humanitária em cidades gaúchas e enviou 206 caminhões carretas com mantimentos.
Há vídeos que ilustram bem a grandiosidade das ações e atestam que Marçal estava lá, agindo por terra, ar e água: grupos de pessoas enchendo caminhões com produtos, movimentação intensa em hangares, e barcos navegando pela cheia barrenta tentando resgatar pessoas.
Com a câmera desligada, porém, há questões um pouco turvas. A começar pelos centros de distribuição, que seu funcionário chamou de “nossos”, em referência ao mutirão que organizou. A localização exata de tais locais não recebeu a mesma publicidade que a imagem do político. Em uma live que ele fez dentro de suas empresas, no entanto, a câmera do celular que faz a gravação passa rapidamente por dez adesivos, do tipo post-it, colados em um vidro. A reportagem anotou os quatro endereços visíveis e entrou em contato com todos. Ainda que haja diferentes níveis de ajuda em três deles, nenhum foi “feito” e “aberto” pelo candidato à prefeitura de São Paulo, como ele divulgou.
Em um dos locais, o relato é de que sequer houve atuação do ex-coach. No endereço exibido nas transmissões virtuais como sendo o entreposto do Vale do Rio Pardo, em Santa Cruz do Sul, fica uma loja de cristais e joias. A cidade foi duramente atingida pelas águas: reportagens feitas no município contaram mais de 30 pontes levadas por rios e mostraram localidades totalmente isoladas, mesmo quase dois meses após as chuvas.
Por aplicativo de mensagens, o responsável pelo estabelecimento confirmou que atuou nas enchentes, ao ajudar no transporte aéreo de pessoas e de medicamentos e ao ceder o espaço para armazenar doações. Mas negou qualquer elo com o candidato. “Não temos ligação nenhuma com Pablo Marçal”. Indagado se o político entregou algum mantimento para a unidade, a resposta foi direta: “Não.”
No logradouro de Lajeado fica a Associação Missionária Evangélica, que há muitos anos presta serviços sociais em eventos de calamidade pública. O grupo conta que recebeu, sim, um bom volume de mantimentos enviados pelo político, transportados em uma carreta, dois furgões e uma caminhonete. “Não mandou mais porque eu não aceitei, pois estávamos com o estoque cheio”, diz a psicóloga Rosane Tunnermann, que atuou na coordenação do trabalho e é casada com um religioso da instituição. Ela precisou explicar, porém, após questionamentos da comunidade, que o local não tinha ligação com o ex-coach. “A gente nunca foi centro de distribuição de Pablo Marçal. Nós somos uma associação que já existia. Ele não montou.”
Tunnermann relata que, por meios próprios, recebeu e hospedou mais de mil voluntários vindos do Brasil e do exterior, que foram cuidados e alimentados por eles. Até hoje, mais cinco meses após o começo das chuvas de maio, há 180 pessoas dormindo na entidade, para a reconstrução das casas destruídas – em outra ação sem financiamento vindo do goiano.
No endereço que funcionaria o entreposto de número 8 de Marçal, na cidade de Estância Velha, está um prédio da Igreja Família Nova Vida. A pastora responsável Lilian Ferreira confirmou que a unidade serviu de ponto de apoio para recebimento de mantimentos. A religiosa explicou que a instituição foi o destino de vários caminhões de todo o Brasil. Ela confirmou que, de fato, insumos vindos da equipe de Marçal chegaram ao local, mas que a prioridade do uso do terreno ficou com “outros artistas”. Ela refutou o protagonismo do político e, questionada se a igreja pode ser tratada como um centro de distribuição humanitária dele, explicou: “Na realidade, não.”
Por fim, um endereço do município de Taquara corresponde ao de um amplo terreno, onde fica o prédio de uma associação de motoristas. Angela Boeira, secretária da entidade Taquara Mais, diz que a sociedade civil usou o ambiente, temporariamente, para auxílio humanitário. “Recebemos ajuda de todo o Brasil”, contou. Ela confirmou que a sugestão para abertura de espaço veio de pessoas ligadas indiretamente a Marçal, que estavam atuando em outra cidade, e que o mutirão feito por ele mandou mantimentos para o local. Ela conta, no entanto, que a estrutura, a gestão e a logística do entreposto foram oferecidas pela instituição dela e por voluntários e negou que o espaço tenha recebido, mesmo que informalmente, a marca de Marçal. “A gente botou (o nome de) Centro de Distribuição Paranhana Mais, que é de Instituto Taquara Mais.”
Os outros endereços não aparecem na postagem e não foram localizados pela reportagem em outras publicações do goiano.
A Avenida Purús não encheu de água. Também não fica no Rio Grande do Sul. É uma via na periferia de Guarulhos, na Grande São Paulo, com emaranhados de fios nos postes e restos de pipas presos nesses emaranhados. Na altura do número 213, está uma das entradas da favela Campo da Paz. É nesse quarteirão que funciona a matriz do Mercadinho GG, pequeno comércio cuja chave-pix foi a escolhida por Marçal para centralizar doações.
A gênese da propagação dessa mensagem poderosa foi uma publicação no Facebook em 4 de maio, na página verificada do goiano. Lá, panfletos digitais usam a cor verde escuro para emoldurar fotos de rios invadindo avenidas. É postado o endereço bancário para transferências. E feito um apelo: “Vamos ajudar nossos irmãos.”
A arte gráfica traz o logotipo dele: a palavra Pablo com a última letra formada pelo primeiro círculo do símbolo do infinito.
O nome do Mercadinho GG rodou a internet, para além dos seguidores de Marçal (só na conta alternativa do Instagram criada após a suspensão da original, por infringir as regras eleitorais, são 5,5 milhões). Redes sociais e canais do YouTube de terceiros, além de grupos de WhatsApp, ajudaram a espalhar a chave-pix.
Em um processo judicial a que a piauí teve acesso, uma mulher do Rio de Janeiro, ao fechar um acordo para encerrar uma pendência judicial deste ano, exigiu como condição que a outra parte no processo, a empresa Telefônica, transferisse 4,5 mil reais ao Mercadinho GG. No documento, ela justifica o ato dizendo que o estabelecimento “está ativamente auxiliando na campanha de doação para as vítimas das enchentes do Rio Grande do Sul.”
A piauí esteve em dois dos três endereços do mercadinho em Guarulhos registrados na junta comercial. Na matriz, na Avenida Purús, o gerente mostrou espanto com a participação da loja no mutirão. “Daqui não foi feita cesta básica. Daqui não saiu nada”, disse Edson ao repórter, na última segunda-feira (30).
De outra unidade do GG, localizada na região de outra comunidade carente de Guarulhos, esse volume também parece não ter saído. No espaço, apertado e de paredes desbotadas, com caixas de madeira fazendo as vezes de prateleiras, o encarregado Matheus conversou com a piauí. “Aqui não passou, não”, disse ele, questionado sobre a campanha de doações. A rede ainda conta com uma terceira unidade nos mesmos moldes, na Avenida Guarulhos. Lá, tentamos falar com os funcionários por telefone, mas ninguém atendeu.
A firma que gerencia a matriz e as duas filiais do mercado é de Guilherme de Oliveira Santos, empresário de 29 anos que, ao contrário de Marçal, é praticamente invisível na internet. Seus pais também tinham comércios na região. A marca Mercadinho GG, no entanto, foi constituída em setembro de 2023, com capital social de 15 mil reais.
Documentos obtidos na Junta Comercial de São Paulo mostram que, em agosto deste ano, a empresa fez alterações em seu registro. O capital social foi atualizado para 608 mil, em um aumento de cerca de 4 mil%. A empresa mudou de razão social e acrescentou novas atividades ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ). Foi de GG Comércio de Alimentos Ltda. para GG Comércio Ltda. Assim, passou a ter autorização para oferecer serviços bem distintos dos anteriores, como o comércio por atacado e “varejo de peças e acessórios para veículos automotores”.
Apesar de as modificações terem sido feitas em 19 de agosto deste ano, o contrato que explica em detalhes como se deu o aporte financeiro não está disponível para a consulta pública no site do órgão. Dessa forma, não é possível dizer a fonte dos recursos que foram incorporados.
Há, no entanto, um fato claro: Santos não tem muita disposição para explicar o que fez com o dinheiro enviado pelas pessoas que pretendiam ajudar as vítimas das enchentes. Em ambas as visitas aos mercadinhos, foi deixado um recado para ele com o número de telefone de contato do repórter, com a explicação do tema abordado. Não houve retorno. Na casa dos pais de Santos, o repórter foi recebido primeiramente por um jovem, dizendo que o dono do mercadinho estava presente e que iria chamá-lo. Logo depois, veio uma nova versão: a de que Santos havia saído.
Santos foi finalmente encontrado via aplicativo de mensagem. Respondeu com mensagens curtas. Após 3 horas, enviou uma grande nota oficial, com redação perfeita e estilo profissional:
Nota de Esclarecimento à Imprensa
Informamos que o Mercadinho GG participou da missão humanitária no Rio Grande do Sul atuando exclusivamente como facilitador entre doadores e fornecedores. O papel do Mercadinho GG foi viabilizado por meio de seu cadastro junto a fornecedores, o que possibilitou acesso a preços mais acessíveis de produtos essenciais.
Toda a arrecadação obtida foi destinada integralmente à compra de alimentos, materiais de higiene e limpeza, além de custos com fretes necessários para a entrega dos materiais ao destino final no Rio Grande do Sul. Reafirmamos que todos os impostos devidos foram devidamente recolhidos, e a prestação de contas foi apresentada aos responsáveis e interessados.
Esse esforço foi realizado sem qualquer interesse financeiro, motivado apenas pelo compromisso de oferecer o mínimo suporte necessário aos nossos irmãos do Rio Grande do Sul.
Quando a piauí explicou que também está interessada em obter os documentos de prestação de contas, e perguntou quais os valores arrecadados e distribuídos, Guilherme não mais respondeu, mesmo diante da insistência.
A troca de mensagens aconteceu na terça-feira, mesma data em que a reportagem perguntou à assessoria de imprensa de Marçal quanto dinheiro foi arrecadado, entre outras questões. Tassio Renam, advogado do candidato, foi acionado pela piauí. Ele sinalizou que estava disposto a responder às perguntas sobre o caso, mas, igualmente, nunca retornou a requisição para que a prestação de contas fosse divulgada.
Não há dúvidas, como dito no início do texto, de que Marçal atuou na campanha de ajuda ao Sul. Há vídeos mostrando seus funcionários organizando a logística das entregas e enchendo caminhões de mantimentos.
O próprio político circulou de barco pelas ruas da cidade de Canoas, resgatando pessoas. Em quase todos os momentos, celulares estavam ligados e mostrando as missões, com narração entusiasmada.
Em uma entrevista ao portal Antagonista publicada no dia 9 de maio, Marçal disse: “Minha vida está a serviço de outras vidas. Eu fiz um desafio aí para a população de São Paulo, que, se não aparecesse alguém com perfil para governar a cidade, eu me colocaria à disposição. Então pode acontecer. Está chegando o prazo, inclusive.”
Hoje candidato bem cotado para o segundo turno para se sentar na principal cadeira do Edifício Matarazzo, onde cada centavo gasto será fiscalizado, ainda não deu transparência sobre uma ação cuja “prestação de contas” diz estar organizada.