Quinzenalmente, os leitores da newsletter cultural da piauí recebem uma cuidadosa seleção de filmes, livros, séries, exposições e álbuns feita pelos jornalistas da redação com a curadoria do editor Alejandro Chacoff. Abaixo, o conteúdo da última edição. Clique aqui para receber as próximas gratuitamente.
O cantor Luiz Melodia não pertenceu a nenhum gênero musical especificamente, tampouco fez parte de um grupo ou movimento. Foi um artista único, de caminho singular, que morreu em agosto de 2017 sem deixar genéricos na música brasileira. Logo, qualquer tentativa de enquadrá-lo numa cinebiografia seria uma tarefa inglória. Mas a estreia do documentário Luiz Melodia – No coração do Brasil, em abril, no festival É tudo verdade, mostrou que a diretora Alessandra Dorgan entendeu o desafio. Em vez de se debater para criar uma obra com a pretensão de explicar quem foi Melodia em tom professoral, Dorgan fez um filme que conseguiu captar o espírito indômito do artista.
Uma das decisões mais acertadas foi a de deixar o próprio Melodia narrar sua trajetória. Com uma pesquisa impecável de áudio e imagens, Dorgan tornou possível que ele contasse sobre sua infância no morro de São Carlos, no boêmio bairro do Estácio, suas influências artísticas múltiplas, seu início de carreira como poeta na companhia de Waly Salomão, Torquato Neto e Hélio Oiticica, até chegar a seus primeiros passos na MPB compondo para Gal Costa (na canção Pérola Negra) e Maria Bethânia (na canção Estácio, Holly Estácio). É mais rico ouvir Melodia refletindo sobre si do que se o documentário tivesse recorrido a Nelson Motta para fazê-lo. É mais forte ouvi-lo contar como as gravadoras forçaram-no a gravar discos de samba e a se posicionar como artista de samba, como se essa fosse a única possibilidade para um artista negro no Brasil. Sua musicalidade, que mistura jazz, blues, bolero e também samba, é explicada por ele mesmo, nos seus próprios termos. É comovente ouvi-lo falar sobre os momentos de fraqueza, como quando virou um artista muito popular com sua voz diariamente na trilha da novela Pecado Capital cantando Juventude Transviada, e como isso tirou sua privacidade e o fez recolher-se da fama. Muito assustado com a popularidade avassaladora, ele diz: “Eu sou um homem que frequenta botequim.”
A montagem de Joaquim Castro nos conduz a um encadeamento seguro e certeiro da trajetória e dos pensamentos do artista. Mas essa segurança e assertividade está profundamente alinhada à proposta de não aprisionar a figura de Melodia. Ela monta um filme que transcorre como um passeio, uma viagem livre e sem amarras pela trajetória do cantor. Driblando meio mundo para não se submeter a rótulos, gavetas, e imposições, o poeta do Estácio acabou por ganhar a fama de maldito, underground, rebelde. No filme ele explica com simplicidade: só quis ser um artista com domínio sobre sua própria arte.
“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.” A frase – quase sempre atribuída ao teórico marxista Fredric Jameson – reverbera mais a cada ano que passa, até porque hoje o fim do mundo parece mais fácil de imaginar do que muitas outras coisas. Distopias são lançadas a rodo, parte de um gênero tão previsível e regular quanto as sitcoms da década de 1990. Séries medievais sangrentas atendem menos a um interesse por história do que aos nossos apetites milenaristas, aguçados por imagens dantescas de florestas e monumentos queimando, enchentes arrastando vilarejos, lampejos de mísseis na timeline.
Fin del Mundo – uma banda de rock formada por quatro jovens mulheres argentinas – nada tem a ver com esse terror, mas parece de alguma forma responder a ele, com um som cujo apelo primordial reside na nostalgia. Com bateria, baixo, e duas guitarras (uma combinação de instrumentos por si só antiquada), as canções do grupo remetem ao indie rock da década de 2000-10, mas com um tom saudoso peculiar, fruto da autoconsciência de alguém que sabe ter chegado tarde a uma festa que já acabou (The Strokes, banda-símbolo daqueles tempos, já eram um grupo retrô).
O álbum Todo va hacia el mar, de 2023, abriu o caminho para as quatro argentinas na cena alternativa, tanto no país delas como no Brasil, onde em março de 2024 fizeram uma turnê. Mas a melhor porta de entrada para conhecer a banda é o show ao vivo que fizeram para a rádio americana KEXP, famosa por promover apresentações de grupos musicais em ascensão. No show, disponível no YouTube, a mixagem um pouco mais suja e permissiva faz com que o delay das guitarras, a linha de baixo, e o vocal inconspícuo e delicado de Lucía Masnatta se misturem sem limites tão definidos como na gravação de estúdio. Essa falta de hierarquia entre instrumentos e voz conversa com outros aspectos das canções da banda, que em geral evitam refrões e às vezes têm passagens instrumentais mais longas. Ainda assim, as músicas não duram mais de três ou quatro minutos. O single La Noche é um exemplo perfeito dessa combinação paradoxal entre concisão indie e uma veia mais evocativa.
A ambiência do show também é um ponto alto. As vidraças transparentes do Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, dando para o horizonte da cidade, realçam a sensação de expansividade gerada pela música (como se ela devesse ser ouvida na estrada), de modo que outro aspecto do nome da banda – a referência geográfica à Patagônia, região de nascença de duas integrantes – fica mais evidente. É uma referência fundamental, esse outro fim do mundo: um lugar de geleiras e paisagens imemoriais, avesso à corrupção do tempo.
A peça Enquanto você voava, eu criava raízes, da companhia franco-brasileira Dos à Deux, é um exemplo de que para sentir, não é preciso dizer palavra alguma. Mesclando teatro gestual, dança e audiovisual, a peça – que teve uma nova temporada no início do ano em São Paulo e estará de novo em cartaz entre 10 de maio e 30 de junho, em São Paulo – transporta o público para uma experiência sensorial que evita contar uma história ou forjar uma narrativa. Na penumbra da sala de teatro, o público é convidado a entrar em uma realidade paralela por trás de uma tela cilíndrica que mais parece um oráculo. Ali, sem proferir nenhuma palavra, dois seres flutuam e desabam numa cama elástica posicionada na vertical. Os movimentos são por vezes acompanhados pela projeção de vídeos, e pela trilha sonora original do violoncelista Federico Puppi.
A peça estimula o público a fazer diferentes associações com as imagens criadas a partir dos movimentos. Através da tela cilíndrica é possível visualizar tanto um relógio, no qual as pernas dos atores são os ponteiros, quanto um espelho, um olho ou até mesmo o espaço sideral, onde não há gravidade. Em alguns momentos, o espectador pode se questionar se as cenas são mesmo reais.
A companhia Dos à Deux foi criada por André Curti e Artur Luanda Ribeiro em 1998 em Paris. O grupo de teatro gestual já lotou plateias em mais de cinquenta países e atualmente tem sede no Rio de Janeiro. Com dramaturgia, cenografia, encenação e performance da dupla, Enquanto você voava, eu criava raízes foi concebida durante a pandemia e surgiu a partir da procura do entendimento do que é o medo – e das sensações causadas por ele. É um projeto ambicioso, mas, através do rigor estético e de uma sincronia de movimentos e belas imagens, os autores conseguem construir um tom melancólico e complexo que remete aos diversos abismos da existência humana. Durante uma hora, os atores dão ao público uma experiência catártica, um momento de reflexão acompanhado de sensações intensas.
Na edição de maio da piauí, o professor e pesquisador de literatura e cultura brasileira Felipe Botelho Corrêa mergulha nos arquivos e relatos deixados por pracinhas da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e por soldados americanos para investigar as impressões dos dois lados ao terem se encontrado na Itália para lutar juntos contra as forças do Eixo na Segunda Guerra Mundial. Ao focar especificamente no encontro dos febianos com a 92ª Divisão de Infantaria do Exército dos Estados Unidos – formada exclusivamente por soldados negros americanos –, o autor disseca os efeitos mútuos do encontro para a identidade racial de cada lado. “Até certo ponto, a Segunda Guerra Mundial pode ser vista como um conflito que tinha o racismo como pólvora, e não somente entre as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão),” Botelho Corrêa escreve. Nos Estados Unidos, o movimento negro se revoltava com o paradoxo de lutar contra o fascismo e ao mesmo tempo ser submetido à segregação racial no seu próprio país. A aparente ausência de uma segregação respaldada por lei no exército brasileiro intrigou os soldados da 92ª divisão. “A imagem da FEB como um caldeirão de raças sem linha de cor contribuiu para reforçar, durante o período de guerra, uma ideia mais ampliada de democracia racial, que serviria para contrapor o segregacionismo racial imposto por leis em vários países.” Sem deixar de ressaltar a intensidade e as peculiaridades do racismo brasileiro e a gradual desconstrução do mito da democracia racial no país (“[a sociedade] pode ter um amplo espectro de tonalidades e, ao mesmo tempo, funcionar num contraste de claros e escuros, entre aqueles que são racializados e aqueles que não sofrem racismo”), o autor resgata um período crucial para entender a história e as idiossincrasias das duas nações.