A nova edição de , que acaba de ser lançada, reafirma a importância da coletânea de ensaios publicada pela primeira vez em 1998. Acentua também, de maneira inequívoca, a posição marginal do documentário brasileiro no âmbito universitário norte-americano.
Editado pela Wayne State University Press, (sem tradução em português) se tornou referência obrigatória, com destaque para as análises de O sangue das bestas (1949), de George Franju; Os mestres loucos (1955), de Jean Rouch; e Noite e neblina (1955), de Alain Resnais. Os 27 ensaios de professores americanos e canadenses tratam de Nanook, o esquimó, de 1922, a Finding Christa, de 1991 – filme pouco conhecido, no Brasil, de Camille Billops e James Hatch, produzido pelo Public Broadcasting Service (PBS), no qual além de co-diretora, Billops é personagem, narrando a história da sua filha Christa, entregue por ela para ser adotada aos quatro anos e com quem se reencontrou vinte anos depois.
Na introdução à edição deste ano, o indefectível Bill Nichols escreve que os ensaios reunidos em , “reconsideram suposições, compartilham percepções e provocam reflexões sobre a natureza e propósito de filmes documentários como um empreendimento global”. Nesses termos, manejado com cuidado, o livro é instrumento ideal para quem não se satisfaz em apenas tangenciar documentários a que assiste.
Nichols trata também da falta de limites definidos para o que é considerado um documentário, questão que diz respeito aos próprios filmes selecionados para a coletânea. Para Nichols, “a maneira escolhida pelo realizador para representar a si mesmo e aos outros permanece aberta a variações extraordinárias. Só por essa razão, a cuidadosa reflexão fornecida por estes ensaios sobre os antecedentes e princípios desse desafio impressionante é de real valor tanto para estudantes de documentário quanto para seus praticantes atuais e futuros.”
“Se a antropologia é fundamentalmente, nas palavras de Margaret Mead”, escreve Nichols, “a ‘disciplina das palavras’, o filme documentário é mais fundamentalmente a disciplina da representação audiovisual”. A questão, diz Nichols, seria “como os realizadores de documentários devem se disciplinar para viver entre os outros, compreender experiências pessoais e eventos históricos, e representá-los de modo diferente de um sociólogo, jornalista, historiador, viajante ou antropólogo cultural”.
Se a introdução de Nichols levanta questões relevantes, a dos editores da coletânea (embora não esteja assinada), Barry Keith Grant e Jeannette Sloniowski, decepciona por advogar em causa própria, fazendo a protocolar exaltação do gênero documental. Afirma que “o documentário se tornou ainda mais popular e controvertido [do que era em 1998]”. A elasticidade do conceito ecumênico de documentário, na concepção dos editores, engloba os reality shows da TV, o que explica a afirmação de que o gênero é “popular”, mas revela evidente frouxidão conceitual. No balaio dos editores cabe de tudo, inclusive o que é postado no YouTube, “mais de 700.000 novos cineastas”, afirmam, ao proclamar que “o interesse pelos ‘gêneros reality’ é visivelmente maior do que jamais foi graças ao advento do equipamento de gravação de baixo custo”. Além do aspecto quantitativo, consideram “existir agora um intenso desejo global de registrar, examinar e exibir ‘o real’” – afirmação duvidosa da qual deveriam tratar de forma menos passageira.
Ver a imagem de alguém que morreu nos obriga a refletir sobre o que significa ser filmado – “e como essas filmagens funcionam além da morte”. Essa é a questão central levantada por O homem urso (2005), de Werner Herzog, segundo o ensaio dedicado ao filme. Ao sermos informados que as mortes de Timothy Treadwell e de Amie Huguenard, namorada dele, foram gravadas por uma câmera que estava com a lente tapada, tendo sido registrado apenas o som, vemos em seguida o que o autor do ensaio considera ser, talvez, “a cena chave de todo o filme” – Herzog ouvindo o ataque do urso, diante de uma amiga de Treadwell. Depois de ouvir a gravação, Herzog diz a ela: “Você nunca deve ouvir isto”, e recomenda que ela destrua a fita “por que será o elefante branco no seu quarto por toda sua vida”.
Aceitamos o que Herzog diz como sendo verdadeiro, o que, em se tratando dele, exige grande dose de credulidade. Nos seus filmes é preciso aceitar a concepção de realismo que ele chama de “realismo extático”, mais próximo da poesia que do jornalismo – transfiguração da realidade que, segundo Herzog, diferencia poetas de contadores.
Herzog ignora o pacto tácito entre realizador e público sem o qual o documentário não subsiste como gênero diferenciado – o que é mostrado reproduz o que ocorreu no passado, ocorreria mesmo se não estivesse sendo filmado, ou ainda, quando propiciado pelo realizador não é fruto da sua imaginação. A tendência a diluir a fronteira entre ficção e documentário, que vem se tornando predominante, cria uma interseção rica de possibilidades criativas mas pressupõe praticantes éticos, o que nem sempre é o caso.
Documenting the documentary reúne farta matéria de reflexão, pecando apenas por etnocentrismo ao ignorar de todo filmes brasileiros que poderiam contribuir para melhor compreender as questões levantadas.