Cada vez que corta um coco para um freguês, o vendedor de coco Luciano dos Santos Silva, 58 anos, faz uma careta de dor. Na verdade, já são dois meses de dores persistentes, sequela mais visível da chicungunha, uma doença que se espalhou pelo Rio. Todo dia, várias vezes por dia, “Luciano, doutor em coco”, como informa seu carrinho, usa o pulso com precisão para entregar ao cliente a especialidade que ele mesmo criou: o sashimi de coco, lascas finas da carne do coco para comer com um garfinho de madeira. Com o punho doendo, o vendedor também precisa pegar pesados cachos de coco do caminhão e sacos de gelo. Como depende essencialmente dos movimentos dos braços e antebraços, Luciano há sessenta dias convive com o incômodo deixado pela doença.
No início de maio, ele acordou com fortes dores nas articulações que o impediram de trabalhar. Doíam-lhe, principalmente, ombros, punhos e tornozelos. No posto de saúde, foi diagnosticado com chicungunha. “A médica me deu uma injeção de dipirona para aliviar a dor”, disse o ambulante. O número de casos de chicungunha registrados no município do Rio de Janeiro chegou a 22,8 mil só no primeiro semestre deste ano – mais que o dobro das 10,7 mil ocorrências de todo o ano passado. Foi em abril que o acumulado de casos de 2019 superou o ano anterior. O aumento de casos começou a partir de 2018, quando as ocorrências cresceram 488% em relação a 2017. No período anterior, de 2016 a 2017, os casos caíram 87%.
A chicungunha é transmitida pelos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus. Os sintomas são parecidos com os da dengue – incluem febre, dor de cabeça, náusea e vômitos –, mas a doença é caracterizada, sobretudo, pelas fortes dores nas articulações, como as que até hoje maltratam o vendedor de coco. “O Rio de Janeiro está sofrendo uma epidemia de chicungunha. Em alguns casos, especialmente naqueles em que as pessoas têm doenças crônicas e reumatológicas, a tendência é a dor persistir por um período maior, que pode ser de semanas, meses, ou mesmo anos”, diz o epidemiologista Roberto Medronho, diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ e doutor em Saúde Pública. De janeiro a junho, dezenove pessoas morreram na cidade do Rio depois de contrair a doença. Mas a letalidade da chicungunha é baixa, segundo Medronho: “Leva ao óbito, normalmente, quando associada a outros fatores, como a pessoa ser idosa ou portadora de outras doenças, como a hipertensão ou mesmo uma doença crônica.”
Questionada sobre o que justificaria o aumento de casos e se havia algum ponto em comum sobre a alta incidência em bairros específicos, a Secretaria Municipal de Saúde respondeu que “o ponto comum para o crescimento do número de casos é a suscetibilidade dos cariocas para a doença”. Outro fator de crescimento é o fato de que 80% dos focos estão dentro dos imóveis, que devem ser inspecionados pelos seus proprietários. De acordo com o órgão, de janeiro para cá, a prefeitura fez quatro milhões de visitas de inspeção para eliminar possíveis focos do Aedes aegypti na cidade, além de intensificar o combate ao mosquito nos períodos mais quentes e chuvosos do ano.
Rivaldo Venâncio, coordenador de Vigilância em Saúde e Laboratórios de Referência da Fiocruz, aponta que fatores macroambientais também contribuem para o aumento, como a irregularidade no abastecimento de água para uso doméstico e a violência urbana, que dificulta a entrada dos mata-mosquitos em muitas áreas da cidade. Ele diz que o morador do Rio passa alguns dias sem o fornecimento regular de água e, quando ele acontece, armazena onde for possível, em objetos que muitas vezes não são adequadamente vedados e que se tornam potenciais focos de proliferação do mosquito. “Existem várias comunidades do Rio em que o agente mata-mosquitos não entra com facilidade. Há, portanto, um conjunto de fatores, além da suscetibilidade e da vulnerabilidade da população local ao vírus chicungunha, que contribuem. É um vírus novo no Brasil e no Rio de Janeiro, e o percentual de pessoas que possuem anticorpos contra ele é bem reduzido.”
Os sintomas costumam persistir por sete a dez dias, porém a dor nas articulações pode durar meses ou anos e, em certos casos, transformar-se em uma dor crônica incapacitante para algumas pessoas. “Pessoas que têm alguma atividade profissional ou de lazer que provocam um desgaste articular maior também possuem mais chance de ter o quadro agravado, além dos pacientes com doenças preexistentes”, afirma Venâncio.
No dia 26 de junho, ainda que fizesse bastante sol e calor para uma manhã de inverno, a clientela no quiosque do “doutor em coco” era pequena. Em quase uma hora em que conversou com a piauí, perto do Corte do Cantagalo, ele vendeu apenas três cocos gelados. Durante o inverno, costuma vender cerca de 25 cocos durante a semana e entre 80 e 100 cocos no fim de semana. No verão as vendas crescem e chegam a 100 cocos já durante a semana. Cada coco gelado é vendido a 6 reais. Luciano costuma trabalhar sozinho de segunda à sexta, e só nos fins de semana, quando as vendas aumentam, conta com uma ajudante. Naquele dia de maio, sua ajudante assumiu o posto, porque ele não conseguiu trabalhar. Era a primeira vez desde que assumira o posto de venda de coco na Lagoa Rodrigo de Freitas que ele faltava ao trabalho por motivo de doença. No inverno, a venda de coco gelado cai 75%. Foi por isso, e também para não perder a clientela fidelizada que conquistou há vinte anos com sua carrocinha na Lagoa, que continuou a trabalhar no dia seguinte.
“Ainda sinto dor, mas você está vendo?”, perguntou apontando para o parque vazio. “O movimento é pequeno. Nos dias mais frescos, pouca gente compra. Com essa crise no país, e no Rio, a clientela minguou mais ainda. Vou fazer o quê? Ficar em casa? Tem as contas para pagar. Elas não param de chegar porque estou doente.”
Luciano dos Santos Silva veio para o Rio de Janeiro em 1983. É o mais novo de 25 irmãos. Chegou na esteira dos mais velhos que abandonaram a vida dura na lavoura da caatinga paraibana, na cidade de Itapororoca. Antes de trabalhar como vendedor, foi porteiro em prédios da Zona Sul do Rio. Um amigo ambulante vendia coco na Lagoa e costumava pedir a Luciano que lhe cobrisse no posto quando queria tirar folga. Era um dinheiro extra que entrava para o porteiro. Logo, Luciano percebeu que vender coco era mais lucrativo e menos entediante que ficar na portaria dos prédios. “Não é melhor ficar aqui com essa vista linda”, disse apontando para o parque com a Lagoa e o Corcovado ao fundo “do que preso em portaria de prédio?”
O paraibano chega ao trabalho às sete da manhã e encerra as vendas às 14 horas, de segunda a sexta-feira. Nos fins de semana, encerra às 18 horas. Ele mora sozinho no bairro de São Cristóvão, na Zona Norte. O bairro do Jacaré, perto de São Cristóvão, também na Zona Norte, tem a maior taxa de casos de chicungunha por mil habitantes, com 75 infectados. São Cristóvão ocupa o nono lugar, com uma taxa de 11 casos.
O patriarca da numerosa família Silva na Paraíba era lavrador, plantava feijão. Morreu aos 68 anos. “Meu pai tinha uma hérnia no abdome. Enrolava uma fita de couro no ventre para conter a hérnia estourada enquanto trabalhava na lavoura. E foi assim até o fim da vida. Morreu arriado de dor, encurvado no meio da lavoura”, Luciano rememorou a morte do pai enquanto recolhia, com uma pá e vassoura, folhas da amendoeira que faz sombra sobre sua carrocinha de coco. “Mas a vida é essa dureza aí. Eu aprendi com meu pai, um homem teimoso, a passar por cima da doença e continuar trabalhando. Ele nunca tinha ido a um hospital. Eu só fui porque senti muita dor.”
A primeira vez que Luciano se ausentou do posto de venda de coco foi há oito anos, quando decidiu visitar a mãe em sua terra natal. Passou vinte dias de férias na Paraíba durante a baixa temporada. A segunda foi quando teve chicungunha e perdeu um dia. Em vinte anos de trabalho.