, publicado há dias no Globo (21/11/2013), é um sofisma sobre questões vitais relacionadas ao cinema brasileiro. Um dos autores, Jean-Claude Bernardet, é um conhecido pensador sofista. Defensor no passado de teses insustentáveis, ele volta a elaborar um raciocínio que pode parecer correto, mas não é, desta vez com a colaboração de Roberto Moreira.
Haverá realmente, como Bernardet & Moreira afirmam, motivo para celebrar o fato do Estado ter recuperado 62.2% dos investimentos feitos na produção cinematográfica, através do Fundo Setorial do Audiovisual, pela Agência Nacional de Cinema (ANCINE)?
Antes de anunciar os festejos, teria sido conveniente verificar se as distribuidoras e produtoras dos filmes responsáveis pelo retorno ao Estado desses 62.2% dos investimentos estão se capitalizando, adquirindo dessa maneira a desejada possibilidade de se livrarem da “tutela estatal”. Não havendo sinais, porém, de que essa conquista de autonomia das empresas privadas esteja ocorrendo, a recuperação de parte significativa do investimento que Bernardet &Moreira pretendem festejar não passa de uma falácia. Na verdade, o que estamos assistindo é ao fortalecimento da ANCINE, realimentando a dependência do Estado. Ou seja, os fatos indicam estarmos testemunhando a consolidação do atual modelo de financiamento, baseado em incentivos estatais, e não à “mudança de paradigma” que Bernardet & Moreira anunciam.
Quem conhece a valiosa obra de Bernardet e os filmes de Moreira não deixará de estranhar a incoerência entre, de um lado, a produção intelectual e artística de ambos e, de outro, a defesa que fazem da função reguladora do mercado, no qual os termos em que o cinema brasileiro compete são notoriamente injustos. A paixão pelo sofisma, incompatível com a coerência, talvez explique celebrarem as virtudes do “cinema comercial” sem jamais terem realizado, eles mesmos, um sucesso de público. Soa bizarro Bernardet & Moreira condenarem o que chamam de “filmes ensimesmados” quando essa seria uma boa definição do que eles mesmos produzem como cineastas.
A devoção ao sofisma deve tê-los levado ainda à afirmação de que “a maioria dos filmes fica pouquíssimo tempo em cartaz, pois seu custo já está coberto por incentivos e o cineasta não precisa que sua obra seja vista para levantar novas verbas em editais”.
Ora, todos sabem – Bernardet & Moreira inclusive – que essa não é a razão pela qual um filme brasileiro fica pouco tempo em cartaz. Mais grave, porém, do que a suposta correlação que fazem entre “pouquíssimo tempo em cartaz” e custo de produção “coberto por incentivos”, é a inferência feita a seguir, segundo a qual apenas cineastas que façam sucessos comerciais teriam direito a levantar “novas verbas em editais” – proposta autofágica, contrária à natureza do negócio cinematográfico, pela simples razão de que não há maneira de garantir que depois de um sucesso de bilheteria um cineasta repetirá o êxito em seguida, nem que o diretor de um filme visto por poucos espectadores deixe de fazer depois um êxito comercial. Cada filme é um filme e riscos são inerentes à atividade.
“Pressões corporativas” seriam mesmo responsáveis, como afirmam Bernardet & Moreira, pela “distribuição de recursos”? É uma acusação grave que deveriam comprovar.
Qualquer que seja a proveniência dos investimentos – públicos ou privados – haverá alternativa capaz de eliminar “critérios arbitrários e subjetivos” ao investir na produção cinematográfica? Em âmbito internacional, decisões do setor privado pautadas pela “urgência da relação com o mercado”, como Bernardet & Moreira preconizam, por acaso são fundamentadas, objetivas e capazes de reduzir o alto índice de fracassos comerciais?
A distinção entre “cinema comercial” e “filmes a fundo perdido”, chamados também de “cinema de arte” por Bernardet & Moreira, além de discriminatória é falaciosa. Acatar essa classificação empobrece de antemão o cinema brasileiro, não havendo sinal de que o chamado “cinema comercial” seja capaz de levar o setor a ter uma economia autossustentável. Um dos principais entraves para isso é justamente o gigantismo e disfuncionalidade do aparelho burocrático do Estado, voltado em grande medida para sua auto-preservação, e subdividido entre a Ancine e alguns ministérios que atuam de forma descoordenada e ineficaz. É lamentável constatar que Bernardet & Moreira, traídos pelo amor ao sofisma, tornaram-se paladinos do modelo atual baseado na “tutela estatal” que supostamente condenam.
Ao compararem investimento em “pesquisa tecnológica” – por definição sem objetivo de lucro a curto prazo – com “investimento público em cinema comercial”, Bernardet & Moreira beiram as raias do absurdo. Pondo de lado os sofismas, fazem simplesmente uma afirmação sem sentido.
Quanto à chamada Lei do Cabo, é cedo para avaliar seus resultados, em especial no que diz respeito ao mérito artístico e cultural do que está sendo produzido.
Bernardet & Moreira terminam ressuscitando declaração do diretor, produtor e editor de moda Fernando de Barros (1915-2002), segundo a qual “os homens de cinema devem se unir à TV, e já […] Mas os homens de cinema não querem saber de nada, parece que têm o rei na barriga”. Encerramento melancólico que endossa amargura e preconceito antigos em relação aos companheiros de geração e colegas de profissão, atribuindo a responsabilidade pela presença limitada do cinema brasileiro na televisão apenas aos cineastas.