Em momentos como este, a irrelevância do cinema fica evidente. Escrevendo no dia da eleição presidencial, a pouco mais de quatro horas da apuração começar a ser divulgada, chama atenção a ausência do setor audiovisual ao longo da campanha dos últimos meses. As poucas manifestações havidas, comentadas aqui em dois posts, não despertaram grande interesse. E as poucas vozes do cinema que se animaram a declarar voto parecem ter caído no vazio.
Diante da gravidade das grandes questões nacionais, é compreensível que menções à cultura, de forma geral, e ao cinema em particular, tenham sido escassas. Não se pode negar que economia, educação, previdência, programas assistenciais, meio ambiente, infraestrutura, saúde, segurança etc. tenham, ou devam ter, prioridade em relação ao audiovisual. Ainda assim, a verdade é que não se tem demonstrado, no Brasil, capacidade de expressar, através da criação e reflexão cinematográficas, ideias capazes de situar o cinema em lugar de relevo na produção cultural.
Divulgada há cerca de duas semanas, a carta dirigida aos dois candidatos à Presidência, assinada por 82 cineastas e profissionais, além da Associação Brasileira de Cineastas (Abraci), Associação Brasileira de Documentaristas RJ (ABD RJ) e Frente Aberta do Cinema e Audiovisual (FACA PR), coincide, em alguns aspectos com a do movimento já comentada neste blog. Diferencia-se, porém, ao indicar algumas das principais distorções da Agência Nacional de Cinema (Ancine) – concentrar atribuições conflitantes de regulamentação e fomento, além de poderes de formulação e execução da política para o audiovisual. Segundo a carta, “a Agência a todos iguala e regula com excessiva, renitente e acachapante burocracia”.
Outras questões cruciais são levantadas: concentração do mercado de salas de exibição em número cada vez menor de títulos, crise da Cinemateca Brasileira, lei do Direito Autoral etc.
Ainda assim, falta à carta visão mais abrangente, incluindo pelo menos três questões tão espinhosas quanto essenciais – os termos injustos da competição no mercado interno, a desambição da maior parte dos filmes que se produzem no País e a inexistência quase absoluta da produção brasileira no mercado internacional.
São 16:31. Faltam agora menos de quatro horas para podermos vislumbrar quem assumirá a Presidência da República em 1º de janeiro de 2015. Fará diferença? Sinceramente, creio que sim. De qualquer modo, resolvido isso, qualquer que seja o resultado, a vida deve retomar seu curso usual.
A expectativa pelo resultado, porém, leva a deixar para outro post um filme e dois livros que merecem atenção especial.
O filme é Sem pena, de Eugênio Puppo, lançado há algumas semanas em São Paulo e no Rio. Usando principalmente depoimentos em voz off, Puppo trata do abandono da imensa população carcerária brasileira, submetida a arbitrariedades e violências, da qual fazem parte vítimas de acusações falsas e presos que sequer foram julgados.
Um dos livros é O mundo de Jia Zhangke, lindamente editado, como de hábito, pela Cosac Naify. Com textos de Jia Zhangke, Walter Salles, Jean-Michel Frodon e Cecília Mello, o livro traça a trajetória, comenta os filmes, e registra o depoimento de Zhangke, para Frodon, “uma figura maior do cinema contemporâneo”. E, segundo Walter, “para um número crescente de amantes do cinema, Jia Zhangke se tornou o cineasta mais importante do seu tempo”. Louvores que o livro e o documentário Jia Zhangke, um homem de Fenyang, de Walter Salles, que estreou sábado na 38ª Mostra de Cinema de São Paulo, ajudarão a entender.
O outro livro é A personagem no documentário de Eduardo Coutinho, de Cláudio Bezerra (Campinas: Papirus Editora, 2014), no qual a partir da noção de arte performática o autor identifica uma tipologia das personagens dos documentários de Eduardo Coutinho que vai da esotérica e xamanística à melodramática e exibicionista, entre outras. Citando Erving Goffman, Bezerra assinala a “teatralidade mais ou menos espontânea, presente no exercício da vida social humana, na qual nós atuamos construindo determinada imagem para influenciar um interlocutor”, sem dúvida um dos pressupostos da obra de Coutinho, presente em Cabra marcado para morrer (1984), e central a partir de Santo forte (1999).
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São 20:27. A maioria decidiu dar outro mandato para a presidente da República. Vamos ver o que nos aguarda.