Domingo, enquanto 34 milhões de americanos e outros milhões de telespectadores mundo afora assistiam à entrega dos Oscars, o cinema brasileiro esteve em destaque por sua ausência.
Apesar do número de espectadores vir diminuindo nos últimos cineos, e ter caído 6 por cento em relação ao ano passado segundo dados da Nielsen e da Academia (Academy of Motion Picture Arts and Sciences), a transmissão pela TV alcança mais de 225 países. E no Brasil, em 2015, mais de 2,5 milhões teriam assistido, no Rio e em São Paulo, à entrega da estatueta.
Este ano, em Los Angeles, um único título produzido no Brasil esteve entre os indicados ao prêmio – O menino e o mundo, filme de animação de longa-metragem, dirigido por Alê Abreu, produzido com orçamento de 500 mil dólares, financiados em parte pelo BNDES. O Oscar foi, porém, para Divertida mente (Inside Out), cujo orçamento de produção foi de 175 milhões de dólares. Já o solitário concorrente produzido no Chile, História de um urso, de Gabriel Osorio e Pato Escala, recebeu o Oscar de melhor filme de animação de curta-metragem.
Coroando a ausência do cinema brasileiro no domingo festivo do Oscar, o Segundo Caderno do Globo informava que a Agência Nacional de Cinema – Ancine tem débitos de R$ 29,2 milhões, sem esclarecer de que forma as atividades-fim da Agência serão afetadas, nem quem são seus credores. A notícia, recebida com aparente indiferença, não provocou nenhuma explicação até hoje.
Depois do monólogo ácido de Chris Rock, a cerimônia do Oscar teve início sublinhando que “todo grande filme começa com um bom roteiro”, e que o roteiro é a “espinha dorsal da indústria”. Coerente com esse lema, na abertura da cerimônia Spotlight – segredos revelados ganhou o Oscar de melhor roteiro original e, quatro horas depois, no encerramento, recebeu também o de melhor filme. Narrativa tão eficiente quanto convencional, Spotlight gratifica a boa consciência da imprensa e da indústria cinematográfica.
Três horas antes de começar a entrega do Oscar, 15 pessoas estavam acomodadas nas poltronas do Espaço Itaú de Cinema, no Rio, para assistirem à única sessão do dia de A vizinhança do tigre. Ao contrário da profissão de fé feita pouco depois, em Los Angeles, o filme de Affonso Uchoa recusa o modelo narrativo convencional, consagrado pela indústria, que levou Spotlight a ser o grande vencedor da noite. Indo contracorrente, a ambição de A vizinhança do tigre é outra. Procura reproduzir de modo fragmentário, em um conjunto de cenas autônomas e intercambiáveis, momentos da vida de um pequeno grupo de adolescentes de um bairro de Contagem. A diferença de perspectiva entre o padrão de roteiro industrial e um projeto existencial, baseado na experiência de vida do realizador, talvez explique, ao menos em parte, tanto o reconhecimento da crítica em Tiradentes e a demora em ser lançado, quanto a ausência de público nos cinemas. No domingo, dois dos 15 espectadores iniciais sairam do cinema antes do fim de A vizinhança do tigre, quando as luzes de acenderem na sala quase vazia.
Para Ilana Feldman, em artigo publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo, no próprio domingo do Oscar, Filho de Saul “é um dos maiores acontecimentos cinematográficos das últimas décadas”. E, adiante, afirma que Nemes [Lászlo Nemes, o diretor de Filho de Saul] recusa “a banalidade realista e a indecência do melodrama no contexto do extermínio”. Ele, “opta por uma linguagem rigorosa, de uma parcialidade radical: assim como o protagonista, não vemos ‘o’ campo, não temos acesso a nenhuma forma de totalidade do que se passa […] todo o resto [além do corpo de Saul] nos chega aos fragmentos […], em geral fora de foco ou fora de campo. Para o espectador, ainda pior do que estar lá, é imaginar.”
Também domingo, no forum The Stone do New York Times, a professora de filosofia húngara Katalin Balog, radicada nos Estados Unidos, escreveu sobre Filho de Saul. Para Belog “a subjetividade do protagonista é o tema principal do filme. Através do seu encontro com o menino, Saul reconquista sua alma. No momento em que Saul testemunha o assassinato do menino, ele se torna – na bela expressão de Kiekegaard – um Cavaleiro de Fé, alguém que assumiu um compromisso, e que pode perseguí-lo com paixão, como se fosse a coisa mais segura, mesmo face a adversidades ímpares. Saul é finalmente capaz de sentir a morte e destruicão à sua volta, comprometendo-se com esse único menino morto; de modo semelhante, o filme leva os espectadores a se relacionarem com o Holocausto como real, comprometendo-os com esse único protagonista quase morto. Tendo assistido ao filme você lembrará, delirantemente, ter estado lá, em alguma pequena parte do seu corpo. É um dever criado pelo Holocausto, sugere o filme. É uma contrapartida sombria do imperativo para judeus de reviverem a experiência de se libertarem da servidão, a cada ano, na Páscoa. Ao mesmo tempo em que retrata a conversão de Saul, Filho da Saul também engaja a subjetividade do espectador através do seu estilo e modo de representação; sua façanha é incorporar a dinâmica que é seu próprio tema. Kierkegaard chamava semelhante comunicação – a única espécie ele acreditava ser adequada a um pensador subjetivo – ‘dupla reflexão’. Ele pensava que essa é a única maneira de assegurar a autenticidade da mensagem – a única maneira de evitar ser um arauto da subjetividade. Desse modo, Filho de Saul é arte e filosofia; ele torna a interiorização visível. Através da sua representação da morte e da destruição nos lembra como viver.” O artigo completo está disponível aqui.
Ainda assim, meu amigo Nilton considera Filho de Saul um “filme tão extraordinário quanto obsceno”.