*Esta reportagem faz parte do Implant Files, projeto do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, o ICIJ, com sede em Washington, DC. O Implant Files reúne 252 profissionais de 59 veículos de 36 países, que investigaram dezenas de fabricantes e distribuidoras de dispositivos médicos em todo o mundo. No Brasil, participam da apuração a revista piauí e a Agência Pública. Esta reportagem foi produzida por Sydney P. Freedberg, Scilla Alecci, Cat Ferguson, Emilia Diaz-Struck, Rigoberto Carvajal, Petra Blum, Christian Baars, Paolo Biondani, Laetitia Cherel, Allan de Abreu, Minna Knus-Galan, Caroline Kubzansky, Jeanne Lenzer, Boyoung Lim, Jesse McLean, Marie Parvex, Kaunain Sheriff, Colm Keena, Giulio Valesini, Christoph Giesen, Holbrook Mohr e Elena Kuch.
Tradução de Simone Campos.
No outono de 2008, a Medtronic, gigante mundial dos dispositivos médicos, se encontrava em sérios apuros. Os lucros declinavam. A empresa lutava contra centenas de processos referentes a um aparelho cardíaco que causava choques desnecessários em alguns pacientes e não conseguia impedir ataques cardíacos em outros.
Autoridades norte-americanas investigavam alegações de que a Medtronic teria subornado médicos em toda a Europa para que usassem seus produtos. E poucos meses antes, a empresa havia concordado em pagar 75 milhões de dólares para encerrar uma ação que a acusava de fazer cobranças excessivas por serviços prestados via programas de saúde governamentais.
Num domingo à noite, 12 de outubro de 2008, o diretor de ética da Medtronic remeteu três pastas de documentos com selo “confidencial” a inspetores do Departamento de Saúde e Serviços Humanos norte-americano, em Washington, DC. Entre os arquivos, entregues ao governo como parte de um dos acordos judiciais, havia um exemplar do código de conduta de dez páginas da Medtronic. Entre outras coisas, ele pregava: “Em hipótese alguma ofereceremos suborno, propinas ou pagaremos qualquer quantia em troca de atos ilícitos.”
Os documentos incluíam a cópia de uma carta de William Hawkins, então diretor executivo da empresa, aos funcionários da Medtronic. “Não podemos permitir que nada – ficar abaixo da meta, instinto de competitividade, e nem mesmo ordens diretas de superiores – prejudique nosso compromisso com a integridade”, escreveu ele.
Durante a década seguinte, o jogo virou. A Medtronic galgou ao pódio da área de dispositivos médicos, mais que dobrando sua receita anual, chegando a 30 bilhões de dólares. Lançou centenas de produtos e abriu filiais em mais de 160 países.
A empresa também transgrediu seu compromisso com a integridade em escala global, conforme apurou o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos como parte da investigação de um ano sobre a indústria de dispositivos médicos que recebeu o nome Implant Files.
Durante os dez anos que a empresa jurou integridade, governos de quatro continentes vêm acusando a Medtronic de promover usos não autorizados de produtos, fraudar programas de saúde governamentais, manipular preços, subornar médicos para obter estudos favoráveis, e manter práticas anticoncorrência.
Nos Estados Unidos, o Departamento de Justiça processou a Medtronic por problemas de segurança nos dispositivos. Na Índia, agências reguladoras descobriram prática de preços extorsivos. As autoridades chinesas aplicaram multas por práticas monopolistas.
A Comissão de Valores Mobiliários e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos investigaram alegações de suborno contra a Medtronic na Turquia, Malásia, França, Alemanha, Grécia e Polônia, embora tenha encerrado a sindicância depois de seis anos sem tomar nenhuma medida. A Medtronic nega todas as acusações e alega estar cumprindo estritamente as leis anticorrupção.
O histórico da empresa permite vislumbrar algumas das práticas comerciais de uma indústria de 400 bilhões de dólares que desenvolveu produtos sofisticados que salvam vidas, porém ao mesmo tempo vem desafiando ou infringindo limites legais e éticos. As rivais da Medtronic, a Johnson & Johnson, Abbott Laboratories e Boston Scientific – ou as suas subsidiárias – também enfrentam acusações de fraude, suborno e outros delitos. Essas empresas disseram seguir práticas comerciais altamente éticas, cumprir todas as leis e ter programas rigorosos para impedir infrações de funcionários.
A Medtronic fabrica dispositivos que ajudam a controlar a diabetes, moderar a dor crônica e aliviar o mal de Parkinson. Inventou um marca-passo sem fio do tamanho de uma pílula de vitamina. Está se expandindo para novas áreas da medicina – administração de salas de operação, empréstimos para cuidar da saúde, monitoramento de pacientes.
Ao mesmo tempo, a empresa ou suas subsidiárias também enfrentam uma sindicância por supostamente manipular licitações no Brasil, inquéritos sobre práticas comerciais relacionadas a aparelhos vasculares nos Estados Unidos e acusações de evasão fiscal na Itália.
Durante um ano, mais de 250 repórteres e especialistas em dados de 59 organizações jornalísticas de 36 países colaboraram na investigação do Implant Files. O projeto incluiu entrevistas ou leitura de depoimentos de mais de cinquenta funcionários da Medtronic e entrevistas com dezenas de autoridades governamentais, pacientes, médicos e especialistas. Repórteres analisaram dezenas de milhares de páginas de autos de processos, arquivos de empresas, relatórios de regulamentação, auditorias do governo, registros de lobby, transcrições de conferências com analistas, artigos em periódicos médicos e outros documentos.
O diretor executivo da Medtronic, Omar Ishrak, não quis fazer comentários para esta reportagem. Em uma nota por escrito, o porta-voz Rob Clark disse que a empresa vê a segurança do paciente como sua maior prioridade e obedece aos “mais altos padrões éticos”.
Clark negou que médicos recebam dinheiro para usar ou promover produtos da Medtronic de maneiras não autorizadas. A Medtronic não respondeu perguntas sobre os processos legais e as acusações específicas mencionadas nesta reportagem, mas declarou que muitas delas se baseavam em “alegações infundadas de litigantes e críticos à indústria”.
“Alegações não são fatos e não devem ser interpretadas de forma a sugerir que a Medtronic infringiu suas obrigações legais, éticas ou regulamentares de maneira alguma”, disse Clark, acrescentando que, nas poucas ocasiões em que funcionários ou afiliados descumpriram as normas da empresa, eles foram penalizados. “Nossa reputação é fruto de nosso compromisso com a segurança do paciente, com a transparência, o cumprimento da lei e práticas comerciais éticas.”
Em fevereiro, o diretor executivo Ishrak disse a investidores que as terapias da Medtronic melhoram a qualidade de vida de 70 milhões de novos pacientes todo ano – melhorando a vida de duas pessoas a cada segundo.
Uma análise do ICIJ nos relatórios de ocorrências adversas apresentados às agências reguladoras norte-americanas de 2008 a 2017 identificou 9 300 mortes e 292 000 lesões potencialmente ligadas a produtos fabricados pela Medtronic ou suas subsidiárias.
Em 2017, um quinto de todas as ocorrências adversas com dispositivos médicos reportadas estava ligada a um aparelho da Medtronic – mais que o dobro do que qualquer uma das concorrentes. Relatórios apresentados às autoridades no Japão, Noruega e Austrália também colocaram a empresa entre as fabricantes com mais falhas relatadas nos últimos cinco anos.
Em nota da empresa ao ICIJ, o porta-voz Clark destacou o uso de sistemas de segurança modernos e o monitoramento contínuo dos produtos tanto antes como depois das agências reguladoras os liberarem para o público. Ainda assim, declarou ele, todos os produtos médicos – mesmo que bem projetados e exaustivamente testados – contêm riscos inerentes.
Nos dez anos desde a reafirmação de seu compromisso com a ética, a Medtronic gastou 6,7 bilhões de dólares em despesas jurídicas, em parte em acordos legais para dirimir cerca de 20 mil queixas e processos de clientes. Durante o mesmo período, o lucro líquido registrado da empresa totalizava cerca de 34 bilhões de dólares. Seu valor de mercado chegou a 125 bilhões de dólares, tendo sido de 28 bilhões de dólares há uma década.
“É um modelo de negócios de sucesso esse que a Medtronic segue, mesmo que prejudique os pacientes”, disse o Charles Rosen, cirurgião de coluna californiano e cofundador da Association for Medical Ethics, um grupo de defesa dos direitos dos pacientes. Rosen denunciou estudos realizados por consultores pagos pela indústria e fez lobby para que o relacionamento financeiro entre fabricantes de aparelhos e médicos fosse trazido a público. O custo de fazer recall de produtos ou de encerrar uma ação de responsabilidade civil com acordo financeiro é “relativamente menor” quando comparado aos lucros, disse ele, e “são simplesmente o preço de se fazer negócios”.
A Medtronic foi fundada em 1949, numa garagem de Minneapolis, como o segundo emprego de um engenheiro elétrico chamado Earl Bakken. Oito anos depois, Bakken criou um marca-passo a pilha, do tamanho aproximado de um telefone celular atual, que poderia ser colado com fita adesiva ao tórax, libertando pacientes cardíacos antes confinados ao leito.
Bakken, que morreu no mês passado, aos 94 anos, contratou gerentes e pessoal de vendas para atender ao lucrativo e crescente mercado de cirurgiões e cardiologistas.
Em 1977, a Medtronic já havia dominado o mercado de marca-passos e começou a ingressar no de respiradores, removedores de varizes, e estimulantes elétricos que tratam de fraqueza da musculatura abdominal. A empresa abriu o capital nesse ano, e já em 1985 aparecia na lista Fortune 500.
Numa tentativa de abocanhar parte do enorme mercado de tratamentos para dores nas costas, a Medtronic adquiriu a líder da indústria Sofamor Danek em 1999. Situada em Memphis, esta empresa havia criado o Infuse, um enxerto ósseo para tratar de problemas nos discos da coluna, os que absorvem os choques entre as vértebras. O Infuse, conhecido na Europa como InductOs, é composto de duas partes: um preparado biológico em pó que estimula o crescimento ósseo, e uma esponja absorvível para reter o pó. O Infuse é utilizado juntamente com uma grade de metal colocada entre as vértebras, que depois são fundidas.
A Agência de Alimentos e Remédios norte-americana (Food and Drug Administration, o FDA), aprovou o Infuse em 2002 para utilização num pequeno trecho da base da coluna. O resultado dos testes tinha revelado que outras aplicações do produto possivelmente trariam efeitos colaterais nocivos. Desde o princípio, cirurgiões implantaram o Infuse de formas não autorizadas pelo FDA – inclusive para tratar lesões em vértebras do pescoço e crânios.
O uso de um produto por um médico de maneiras não aprovadas pelo FDA é legalizado, mas é vedado aos fabricantes promoverem o chamado “uso extrabula”. Em sua nota ao ICIJ, a Medtronic enfatizou que só promove o uso de seus produtos no âmbito aprovado e negou que médicos sejam pagos para usar ou promover seus produtos de formas não-autorizadas.
No entanto, ex-funcionários alegam, em processos contra a empresa, que os representantes e consultores de venda da Medtronic participaram de uma campanha promocional para fazer os médicos usarem Infuse de formas não indicadas na bula, em outros procedimentos de coluna. Os melhores vendedores faturavam gordas comissões, conforme Bobbie Vaden, ex-contadora da divisão de produtos para coluna, disse em uma entrevista: “Eles ficavam martelando que era para ‘vender mais, vender mais, vender mais’”, recordou ela.
Uma amiga de Vaden, a ex-gerente sênior de viagens Jacqueline Kay Poteet, disse em outra entrevista que seu trabalho consistia em marcar viagens de médicos a resorts e estimular sua fidelidade com presentes como relógios Rolex. “Quando eu conseguia passagem de primeira classe, eu era amiga deles”, disse Poteet. “Depois, não eram mais meus amigos.”
Um dos clínicos com os quais ela trabalhou foi David Polly Jr., ex-chefe da ortopedia no que se chamava então Walter Reed Army Medical Center em Washington. Poteet disse ter marcado viagens de classe econômica para Polly palestrar sobre procedimentos de coluna no Caribe e na Europa. A Medtronic também pagou a Polly quase 600 mil dólares de 2003 a 2005, segundo um livro-caixa entregue aos investigadores do Senado norte-americano.
Atualmente professor na Universidade de Minnesota, Polly não respondeu quando pedimos seus comentários a respeito, mas documentos mostram que ele prestou consultoria e deu cursos para a Medtronic. Em outra ocasião, Polly declarou ao New York Times que os pagamentos da Medtronic não influenciaram suas decisões médicas.
Ele também usou Infuse extrabula para tratar de soldados feridos no Afeganistão e no Iraque, segundo a ação de denúncia de atos ilícitos. Em 2004, Polly e dois outros cirurgiões publicaram um relatório positivo sobre uma grade absorvível utilizada junto ao Infuse para tratar das costas dos soldados e de outros pacientes. O FDA havia aprovado o uso dessas grades, mas não na coluna, pois eram incapazes de aguentar grande peso.
Embora seja permitido aos médicos utilizar dispositivos aprovados pelo FDA extrabula, neste caso os cirurgiões não pediram permissão antes de realizar a pesquisa, conforme levantado por oficiais do Exército.
Em 2008, outro dos três cirurgiões, Timothy Kuklo, publicou um estudo sobre soldados feridos tratados com Infuse no hospital Walter Reed. O estudo foi corrigido depois que o Exército notificou o periódico médico de que Kuklo havia listado diversos cirurgiões como coautores sem que tivessem conhecimento disso. A pesquisa também exagerava os benefícios do Infuse, reportou o New York Times, citando investigadores do Exército. A Medtronic revelou posteriormente que pagara a Kuklo quase 800 mil dólares em serviços de consultoria de 2001 a 2009.
Kuklo não respondeu aos pedidos de entrevista. Seu ex-advogado, Henry Dane, disse que uma vistoria não encontrou provas suficientes para concluir que qualquer resultado do estudo tenha sido fraudado. O Exército também não respondeu aos contatos da reportagem.
Na primavera de 2008, as autoridades estavam a um passo de fechar o cerco à Medtronic por diversos lados. Em maio, a Medtronic concordou em pagar 75 milhões de dólares para dirimir acusações de que outra subsidiária de tratamentos de coluna havia fraudado programas de saúde dos Estados Unidos. A empresa assinou um pacto de integridade corporativa válido por cinco anos com a inspetoria geral no Departamento de Saúde e Serviços Humanos, comprometendo-se a supervisionar com mais afinco, esquadrinhar as transações com médicos e obedecer às leis. Foi esta a promessa detalhada pela Medtronic nos documentos enviados a Washington no fim daquele ano.
Na primavera de 2008, o Infuse tinha sido “utilizado com êxito” para tratar de mais de 500 mil pacientes, anunciou a empresa. Análises mercadológicas citadas em uma investigação interna estimavam que o Infuse tinha sido usado extrabula de 60% a 85% das vezes.
Em 1º de julho de 2008, o FDA emitiu um alerta aos médicos. A agência revelou ter recebido 38 relatos de “complicações com risco de vida” devido ao uso de Infuse em pescoços de pacientes. Os pacientes relatavam inchaços no pescoço e na garganta que prejudicavam a deglutição, a fala e até a respiração. Alguns tiveram que ser submetidos a traqueostomias de emergência.
Shirley Nisbet não chegou a receber este alerta. Na quinta-feira, 21 de agosto de 2008, antes do amanhecer, o marido de Nisbet, Walter, levou-a de carro a um hospital em Baldwin Park, na Califórnia, para realizar uma cirurgia no pescoço. Nisbet vinha sentindo dores constantes. Seu cirurgião-ortopedista, Johannes Bernbeck, lhe dissera que havia tecidos pressionando sua medula espinhal e que eles precisavam ser removidos.
Um representante da Medtronic estava na sala de operação – prática comum na indústria de implantes para procedimentos delicados em que se implantam dispositivos. No meio da cirurgia, segundo uma ação judicial instaurada pela família de Nisbet, o representante da Medtronic incentivou Bernbeck a tratar da coluna cervical dela, trecho que fica no pescoço, com Infuse.
Depois da cirurgia, Nisbet sofreu todas as complicações mencionadas no alerta. Seu pescoço inchou. Ela mal conseguia engolir. Ficou com a respiração difícil. Na manhã de 26 de agosto, aos 74 anos de idade, a mãe de três filhos entrou em coma. Quatro dias depois, ela faleceu.
Bernbeck, que não foi citado como réu no processo, redirecionou as perguntas ao hospital. O hospital não quis comentar, alegando se tratar da privacidade da paciente. À época, a Medtronic negou irregularidades e disse que seu representante não recomendou o uso extrabula do produto para Nisbet. O caso foi indeferido.
Quatro anos após a morte de Nisbet, o Comitê Financeiro do Senado dos Estados Unidos publicou um relatório estarrecedor de 2 300 páginas, com base em 5 mil páginas de registros da empresa que abarcam ocorrências de 1996 a 2011.
O relatório acusava a Medtronic de ocultar 210 milhões de dólares em pagamentos de consultoria e royalties a médicos que redigiram treze estudos em prol do Infuse. Esses estudos não citavam sérios riscos apontados por pesquisadores independentes, como câncer e infertilidade masculina.
A empresa disse que, após o inquérito do Senado, reforçou as políticas que versavam sobre pagamentos a pesquisadores, além de outras medidas para aumentar a transparência. No começo de 2012, a Medtronic contratou James Kirwin, veterano na indústria, para aprimorar o desenvolvimento dos produtos clínicos na divisão de produtos para a coluna. Cerca de um ano depois, conforme Kirwin contou em uma entrevista, um de seus colegas de equipe encontrou um estudo em uma prateleira. Ele documentava relatos de mais de 1 000 lesões e mortes devido ao Infuse que não tinham sido repassados ao FDA.
Kirwin se preocupou com o fato de que a Medtronic tivesse infringido a lei ao não informar as ocorrências adversas em 2008, quando o estudo foi descontinuado. A Medtronic acabou por informar essas ocorrências às agências reguladoras e pôs a culpa da demora em um erro no arquivamento das informações. “A empresa faz todo o possível para notificar imediatamente as agências reguladoras de toda e qualquer ocorrência adversa”, disse o porta-voz Clark.
Kirwin disse que nunca compreendeu exatamente por que o atraso na apresentação dos resultados. “Nunca entendi muito bem se eles foram incompetentes ou malignos”, disse ele.
O pacto ético de 2008 não conseguiu sanar todos os problemas da Medtronic junto ao governo norte-americano. Dois anos depois, enquanto o Senado esquadrinhava os pagamentos da Medtronic aos médicos, Hawkins, o diretor executivo da empresa, anunciou sua aposentadoria aos 56 anos de idade. Engenheiro nascido em Bangladesh que trabalhou na gigantesca unidade de saúde da General Electric, Omar Ishrak o sucedeu.
Ishrak entrou no cargo anunciando um compromisso renovado com a ética. A missão da empresa, disse ele, “nos convoca a mantermos um padrão insuperável e a sermos reconhecidos como uma empresa de dedicação, honestidade, integridade e bom serviço”.
Em sua primeira videoconferência com investidores, Ishrak disse que a empresa iria se concentrar em fornecer serviços melhores e mais baratos para os pacientes, criando novos modelos de negócios e acelerando as vendas internacionais, especialmente nos países em desenvolvimento.
A Medtronic enxergava a Índia, com 1,2 bilhão de clientes em potencial, como um de seus maiores alvos. Ishrak, em uma entrevista na ocasião, descreveu-a como o “maior buraco” da empresa.
Um dos desafios que a Medtronic enfrentava era o custo de seus produtos. A maioria dos indianos não tinha planos de saúde, e a média de renda per capita anual era de 1 500 dólares.
No fim de 2010, a unidade indiana da Medtronic lançou a campanha Healthy Heart for All (“Coração saudável para todos”). Seu objetivo era vender marca-passos e stents de coronária para pacientes de baixa renda, reduzindo o preço dos dispositivos e, inclusive, providenciando os empréstimos para os pacientes adquiri-los.
A empresa travou parcerias com hospitais particulares indianos. O primeiro deles foi o Mission Hospital, uma instituição nova com 360 leitos em Durgapur, uma cidade siderúrgica a 160 quilômetros de Kolkata. O hospital procurava oferecer serviços de saúde que todos os indianos pudessem pagar, mas seu objetivo idealista logo foi contrariado pela realidade. “No início nosso lema era saúde para todos”, disse o diretor do hospital, Satyajit Bose, em uma entrevista. “Mas não existe almoço grátis.”
Os executivos da Medtronic na Índia ofereceram-se para ajudar o hospital a atrair novos pacientes com um programa de financiamento para consumidores, endossado por campanhas de marketing à moda norte-americana. Trabalhando junto de uma firma de consultoria contratada pela Medtronic, o hospital pôs anúncios em jornais locais promovendo a campanha Healthy Heart e organizou eventos promocionais no Centro de Durgapur.
A primeira paciente foi uma mãe solteira de Durgapur. Seu rosto sorridente foi estampado em outdoors por toda a cidade. “Cirurgia de marca-passo agora ao alcance de quem está abaixo da linha de pobreza”, dizia um deles.
O hospital realizou exames cardíacos grátis em escolas e templos rurais. Centenas de pacientes perfilaram-se para fazer exames que diagnosticariam problemas cardíacos. Cerca de um décimo foi mandado ao hospital para mais testes ou um marca-passo, stent coronário ou desfibrilador da Medtronic, segundo Bose e os relatórios da empresa.
No hospital, os pacientes podiam dar entrada em empréstimos que cobriam até 85% do custo de um aparelho, com taxa de juros de 8,25%. Os empréstimos eram concedidos pela Matrika Foundation, uma pequena entidade sem fins lucrativos com sede em um prédio de apartamentos em péssimas condições, no norte de Mumbai. Kiran More, um administrador da fundação, disse ao ICIJ que a Medtronic é que fornecia os recursos para os empréstimos. A empresa não respondeu a perguntas sobre o esquema. Afirmou apenas que o programa incluía auxílio financeiro para pacientes que, de outro modo, seriam forçados a usar “alternativas precárias de empréstimo de dinheiro, com juros extremamente altos”.
Nos últimos meses de 2012, segundo a Medtronic, a campanha havia realizado exames em 20 mil pacientes, sendo que 2 mil haviam recebido seus dispositivos cardíacos. Um ano depois, o número de cidades adotando o programa pulou de quatro para vinte.
À época, Sanjay Tarlekar, diretor do Centro de Saúde Cardíaca do Shushrusha Hospital, um parceiro da Medtronic em um subúrbio de Mumbai, elogiou a Healthy Heart for All, chamando-a de “um desafogo tanto para pacientes como para hospitais”.
Porém, o programa recebeu críticas de médicos preocupados com o endividamento de pessoas pobres. Também se preocupavam que o financiamento para consumidores de dispositivos médicos poderia incentivar os médicos a recomendar cirurgias para pacientes que talvez não precisassem delas.
“Levar gente que já é pobre a se endividar não é uma boa ideia”, disse Ajit Mullasari, diretor de cardiologia no Madras Medical Mission. Em 2014, advogados de pacientes começaram a questionar os negócios da Medtronic na Índia. Um grupo de defesa dos direitos do consumidor com sede em Mumbai entrou com uma queixa na Agência de Alimentos e Remédios do estado de Maharashtra. Ele acusava a subsidiária da Medtronic na Índia e seus distribuidores de vender produtos a preços “exorbitantes” e pagar propinas a médicos. Ainda que a agência indiana não tenha encontrado indícios de corrupção, ela declarou em um relatório que pacientes pagaram preços “exagerados” por um stent da Medtronic – chegando a doze vezes o valor que a empresa pagou para importá-los. As agências reguladoras também relataram que a unidade indiana da Medtronic gerou “lucros colossais” às custas de “vítimas pobres”, os pacientes.
Tanto o Mission Hospital, em Durgapur, como o Centro Cardíaco do Shushrusha, no subúrbio de Mumbai, romperam com a campanha Healthy Heart for All depois das acusações de prática de preços abusivos, disseram os diretores em entrevistas. Quatro outros hospitais que o ICIJ identificou como participantes do programa não responderam a nossas solicitações para comentar o assunto. A Medtronic afirmou que extinguiu o programa no ano passado, “por causa de mudanças na dinâmica do setor de saúde e de sua baixa visibilidade”.
Hoje, Tarlekar, diretor do Centro Cardíaco do Shushrusha, diz que a Medtronic não cumpriu a promessa de ajudar médicos a tratarem de pacientes necessitados com aparelhos de baixo custo. “Nós fomos ludibriados”, disse ele.
A pressão mais intensa da Medtronic para aumentar as vendas foi em sua unidade para diabetes, em Northridge, na Califórnia. Essa divisão fabrica dispositivos de monitoramento da glicose, sensores e bombas que aplicam insulina em doses controladas, eliminando a necessidade de furar o dedo a toda hora e tomar diversas injeções diárias.
O mercado global da diabetes, tanto para os fabricantes de medicamentos como os de aparelhos, é gigantesco. Os governos do mundo todo gastaram 1,3 trilhões de dólares em tratamentos para a diabetes em 2015, e as despesas prometem crescer. Uma bomba infusora de insulina chega a custar 6 mil dólares, e seus suprimentos, entre 3 mil e 6 mil dólares ao ano. Pacientes que trocam muitas injeções de insulina por bombas infusoras podem reduzir seus gastos com insulina em cerca de 650 dólares ao ano.
As bombas infusoras da Medtronic há muito dominam o mercado para o tratamento da diabetes Tipo 1, geralmente a forma mais séria da doença. Ela geralmente se desenvolve em crianças e adultos jovens, e representa 5% a 10% de todos os casos de diabetes.
Nos últimos anos, empresas rivais começaram a apertar o cerco à Medtronic no mercado geral antidiabetes com novos aparelhos de uso intuitivo, corroendo a vantagem tecnológica que ela sustentava há tempos. Aumentou a pressão sobre a unidade de Northridge para vender mais, segundo ex-funcionários alegaram posteriormente à Justiça.
De acordo com um processo de denúncia de atos ilícitos ajuizado por Adam Witkin, ex-gerente regional de vendas no Oregon, a empresa estava tentando expandir sua clientela para pacientes com diabetes Tipo 2, comumente associado à obesidade e à velhice. A ação segue em andamento. Witkin contou que a empresa recompensava médicos que promovessem a bomba infusora de insulina com palestras pagas, equipamento gratuito, financiamento para pesquisas e jantares.
Uma comunicação interna da empresa, admitida como prova na ação, estimulava os representantes comerciais a travar amizade com os funcionários dos médicos e descrevia como foi fácil acessar informações confidenciais de pacientes no consultório de um endocrinologista em Las Vegas. “Você deve gozar de livre acesso ao consultório dele, e eles vão deixar você espiar as fichas”, indicava o documento. “Uma vez eu olhei as fichas de todos os pacientes dele e assinalei os que eram potenciais clientes de bombas de insulina. Hora de fazer isso de novo.”
Como forma de intensificar as vendas das bombas, alega Witkin no processo ainda corrente, ele e outros representantes comerciais da Medtronic às vezes instalavam sensores de monitoramento nos pacientes, um procedimento médico para o qual alguns não estavam licenciados.
“Até onde sei, legalmente não me cabe e nem tenho alvará para realizar ou participar de qualquer procedimento diagnóstico”, escreveu Witkin em carta de fevereiro de 2011 ao Departamento Jurídico da Medtronic.
Witkin disse que foi demitido por ter reclamado ao FDA sobre as práticas da empresa. A Medtronic contestou suas alegações e afirmou, em documentos apresentados em juízo, que Witkin foi demitido por questões relacionadas à sua performance e comportamento. A divisão de diabetes seguia altíssimos padrões éticos, afirmou a empresa. Witkin e todos os demais funcionários receberam treinamento a respeito das normas antipropina, alegou a empresa, e foram informados repetidas vezes de que somente médicos ou funcionários licenciados podiam realizar procedimentos médicos. E clínicos jamais poderiam cobrar por serviços que não haviam prestado, disse a empresa.
Outro ex-funcionário da divisão de diabetes, David Zuzick, disse que havia avisado aos seus supervisores quatro vezes entre 2009 e 2013 de que um novo dispositivo de monitoramento de glicose, o Sentrino, ainda não estava pronto para o uso nos pacientes. Ou, no mínimo, não estava pronto sem “sérias advertências” aos seus usuários sobre as limitações. O dispositivo havia sido introduzido no mercado europeu sem os devidos testes de segurança, segundo uma ação por demissão abusiva, com a qual Zuzick ingressara, num tribunal do estado da Califórnia.
Ex-diretor de planejamento de produto, Zuzick também disse que gerentes da Medtronic lhe haviam mandado suprimir dados clínicos “que não confirmassem a segurança e o desempenho do Sentrino”. A Medtronic negou todas as acusações em juízo até que chegou a um acordo confidencial com Zuzick, no ano passado. Em sua nota ao ICIJ, a empresa negou ter suprimido dados clínicos sobre qualquer produto que seja.
Zuzick disse no processo que sua preocupação quanto à qualidade e aos problemas no desenvolvimento foi confirmada em setembro de 2013, quando o FDA enviou um ofício de advertência à Medtronic. Ele citava problemas semelhantes aos que Zuzick dizia vir relatando à gerência há quase dois anos.
As vendas dos produtos antidiabetes da Medtronic aumentaram quando países como a Alemanha, a Austrália e o Chile aprovaram novos subsídios ou coberturas governamentais para bombas de insulina. Nos Estados Unidos, a Medtronic conseguiu exclusividade para suas bombas infusoras junto à seguradora United Healthcare e ao Departamento de Assuntos dos Veteranos dos EUA.
Nos dez anos que se seguiram a 2008, as bombas de insulina da Medtronic e suas peças foram alvo de vinte recalls e cerca de cem processos alegando mau funcionamento. Em seu ofício de advertência de 2013, o FDA repreendeu a firma por não investigar ou reagir prontamente às queixas dos consumidores ou às mortes relatadas. Em um dos casos relatados com atraso, disse a agência, um possível defeito na bomba pode ter levado a uma aplicação excessiva de insulina, o que teria feito um paciente entrar em coma diabético. A advertência também citava infrações a regras de qualidade para produtos norte-americanos, como vazamentos nas bombas, problemas de fábrica, mudanças no design não testadas, problemas com o software e falhas no treinamento dos funcionários.
A análise do ICIJ dos relatórios de ocorrências adversas da FDA de 2008 a 2017 descobriu que as bombas de insulina da Medtronic estavam potencialmente vinculadas a mais de 2 600 mortes e quase 150 mil lesões – mais do que qualquer tipo de aparelho médico.
A Medtronic disse que relatos de ocorrências adversas sobre lesões e mortes podem induzir ao erro ou talvez tenham como base informações incompletas ou imprecisas, de forma que seria impossível tirar conclusões sobre a culpa ter sido do dispositivo médico. A empresa atribuiu os problemas também ao mau uso do aparelho por parte dos pacientes. Suas bombas de insulina já ajudaram centenas de milhares de pacientes a lidar com sua diabetes e fazer o recall de um aparelho não significa que ele seja defeituoso ou perigoso, segundo a empresa. Quando um recall se faz necessário, segundo o porta-voz Clark, a Medtronic o comunica a médicos e pacientes.
Em entrevistas à ICIJ e a seus parceiros, famílias da Finlândia, Alemanha, Canadá, Índia e dos Estados Unidos disseram que a Medtronic demorou a responder a suas queixas e não informou sobre os riscos e problemas com as bombas de insulina.
Em agosto de 2017, na cidade de Alahärmä, no oeste da Finlândia, Roope Kauppi, um menino de 12 anos, acordou no meio da noite com o índice glicêmico perigosamente baixo. Ele soltou um grito. Enquanto esperava a ambulância, desmaiou, desabando nos braços do pai. O menino se recuperou, mas seus pais dizem suspeitar que a bomba infusora da Medtronic tenha aplicado insulina demais.
A família culpa a empresa por não tê-los informado prontamente a respeito de possíveis problemas de segurança. Os Kauppi disseram que enviaram a bomba à Medtronic para testes e estão aguardando os resultados. “Quando o dispositivo funciona, ele é ótimo”, disse o pai de Roope, Tapani. “Mas quando não funciona, pode ser perigoso. Tudo pode acontecer.”
Em uma conferência do Goldman Sachs no Rancho Palos Verdes, na Califórnia, em junho de 2014, o diretor executivo da Medtronic, Ishrak, tratou com uma multidão de investidores e veteranos do mercado. Eles perguntaram sobre os produtos em desenvolvimento e queriam saber qual inovação iminente viria a incrementar o valor das ações da empresa. Nas palavras de um dos interlocutores: “Cadê o dinheiro?”
Menos de uma semana depois, a Medtronic anunciou um dos maiores negócios da história das empresas de tecnologia médica: a aquisição de uma concorrente, a Covidien PLC, de Dublin, por 42,9 bilhões de dólares. A Medtronic permaneceria com sua sede em Minneapolis e criaria uma nova empresa na Irlanda, como um único andar de um modesto prédio comercial de Dublin. Com esta manobra, a Medtronic pagaria impostos na alíquota de 12,5% da Irlanda, em vez de na alíquota norte-americana, que pode chegar a 35%. Também poderia reter até 14 bilhões de dólares no exterior sem pagar impostos norte-americanos.
Wall Street bateu palmas. Porém, esquemas como esse, à época uma manobra cada vez mais comum de evasão fiscal entre as corporações transnacionais norte-americanas, também vinham sendo criticadas na arena política. O então presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse que esses esquemas, conhecidos como inversão de matriz corporativa, são uma forma de “burlar o sistema” e seu partido propôs uma lei para impor uma moratória.
A Medtronic já possuía equipes lobistas e jurídicas respeitáveis, com conquistas célebres, dentre as quais um caso da Suprema Corte dos Estados Unidos que marcou uma redução dramática na capacidade dos pacientes de entrarem com processos devido a aparelhos defeituosos. Quando um quarto dos congressistas propôs uma lei em coautoria para recuperar esse direito ao litígio, a Medtronic e outras fabricantes de aparelhos fizeram lobby até enterrá-la. Em 2012, a empresa gastou quase 2 milhões de dólares para coibir o poder regulador da FDA e ajudou a facilitar a venda de dispositivos médicos ainda não aprovados para crianças e adultos com opções limitadas de tratamento.
Após ser criticada por sua proposta de se mudar para a Irlanda por causa do imposto mais baixo, a Medtronic contratou o escritório de advocacia dos ex-senadores norte-americanos Trent Lott, ex-líder da maioria republicana no Senado, e John Breaux, um democrata da Louisiana. Pagou 200 mil dólares ao escritório, quase 4% de sua despesa de 5,3 milhões de dólares com lobby em 2014 – o máximo que a Medtronic já gastou com isso num ano – para combater a lei da moratória para inversões de matriz. O projeto de lei, a que muitas grandes empresas dos Estados Unidos se opuseram, pereceu no estágio da comissão avaliadora. E a inversão de matriz da Medtronic estava a caminho da conclusão.
Clark, o porta-voz da Medtronic, alegou que o empenho lobista da empresa faz parte do objetivo de levar tratamentos até pacientes e salvar suas vidas. Para atingir esse objetivo, segundo ele, a Medtronic “precisa manter um diálogo saudável com autoridades governamentais que tenham impacto significativo em políticas de saúde”.
Em outra frente, a Medtronic pagou 862 milhões de dólares de 2014 a 2017 a médicos e instituições de pesquisa por estudos, treinamento e consultoria, segundo dados dos Centros de Serviços do Medicare e Medicaid dos Estados Unidos. O neurocirurgião Kevin Foley, gestor de um laboratório de treinamento em Memphis, recebeu 74 milhões de dólares da Medtronic para suas patentes, pesquisa e consultoria, segundo dados do CMS.
Nesse mesmo período, a Medtronic também doou milhões a grupos de defesa dos direitos comerciais e de pacientes para promover seus produtos. Entre as doações: 5 milhões de dólares à Fundação de Pesquisa Cardiovascular, um grupo de pesquisa sem fins lucrativos que estampou o logotipo da Medtronic em impressos, estandes, e organizou mesas-redondas nas conferências altamente concorridas da fundação.
Ao passo que chegava à liderança da indústria mundial de serviços para a saúde, a Medtronic continuou enfrentando alegações de que violara seu juramento de obediência à lei. No início de 2015, a empresa pagou 7,2 milhões de dólares como acordo judicial em dois casos de denúncia de ilícito junto ao Departamento de Justiça norte-americano. Um deles alegava que a Medtronic subornou médicos para usar estimulantes de coluna extrabula. O outro alegava que a empresa importava da China aparelhos para a coluna, depois os etiquetava com “Fabricado em Memphis”. A Medtronic não admitiu irregularidades em nenhum dos dois casos.
A empresa também foi acossada por questionamentos sobre um de seus maiores sucessos de vendas, uma bomba para controle de dores chamada SynchroMed II. Em abril de 2015, após 22 recalls desde 2004 e a descoberta de que a Medtronic não tinha corrigido as infrações, Ishrak assinou um acordo de 27 páginas com o Departamento de Justiça para restringir severamente as vendas da bomba. Às vezes os defeitos faziam a bomba aplicar mais ou menos medicamento do que o necessário, submetendo pacientes a overdoses ou a abstinências agoniantes.
Um relatório de inspeção do FDA no ano seguinte descobriu que a Medtronic ainda não havia solucionado todos os problemas. Na década transcorrida desde 2008, mais de 800 mortes e 35 mil lesões foram vinculadas a bombas contra a dor em relatórios de ocorrências adversas feitos à FDA.
A Medtronic diz ter trabalhado junto à FDA para resolver os problemas. Atualmente, a empresa está produzindo e promovendo um sistema SynchroMed seguro, disse o porta-voz Clark.
Fora dos Estados Unidos, os problemas se multiplicavam. Em maio de 2015, agências reguladoras indianas descobriram que a Medtronic e algumas de suas concorrentes haviam cobrado a mais por aparelhos, levando o governo a estipular um preço máximo para stents. A empresa anunciou que havia cortado relações com algumas distribuidoras.
Em novembro daquele ano, a filial brasileira da Medtronic forneceu informações ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade, agência antitruste brasileira, detalhando como a empresa participava, junto a três concorrentes, de um esquema de fraude a licitações que já durava duas décadas. A Medtronic teria reconhecido que as fabricantes de dispositivos médicos conspiraram para inflacionar o preço dos aparelhos cardíacos, dividindo em segredo o mercado entre elas e impedindo a entrada de rivais.
A investigação está em andamento, e a Medtronic não deu declarações a respeito. Em um relatório de 119 páginas, o Cade disse que a Medtronic “confessou” o “suposto conluio” como parte do trato para reduzir qualquer possível penalidade.
E, em dezembro de 2016, agências reguladoras chinesas multaram a unidade da Medtronic em Xangai em 17 milhões de dólares por manipulação de preços. Descobriram que, de 2014 a 2016, a empresa impôs preços mínimos de revenda a seus revendedores e distribuidoras chineses. Práticas como essa, segundo a Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reformas, sufocam a concorrência e, pela manutenção de preços altos, prejudicam os pacientes.
Conforme 2016 se aproximava, Ishrak foi traçando um novo curso para sua empresa. A Medtronic não era mais uma mera vendedora de dispositivos médicos. Ela começava a gerir laboratórios de cateterismo cardíaco em hospitais e clínicas de diabetes, supervisionando seus equipamentos e cadeia logística, ajudando a maximizar os pagamentos de reembolso de hospitais, prestando consultoria e outros serviços.
Em suma, a Medtronic estava se transformando no que chamava de “a loja que tem tudo” da comunidade médica, um empreendimento em expansão sem igual na indústria de dispositivos. Nas palavras entusiasmadas de analistas da Price Waterhouse Coopers, no tratamento para problemas cardíacos e diabetes, a Medtronic seria “a dona da doença”.
Ishrak passou aquele ano peregrinando de evento em evento de sua indústria em todo o mundo, apertando a mão de autoridades e passando uma imagem sinistra da situação do sistema de saúde global, que seria ineficiente, caro e muito necessitado de reformas.
Em uma palestra em Cleveland naquele outono, Ishrak disse que a indústria de dispositivos médicos, e todo o sistema de saúde, precisava mudar. “Temos visto uma escalada no preço dos serviços de saúde”, disse ele. “Existe muita ineficácia no sistema, e, pelo que estamos vendo, se isso for ignorado, vai começar a prejudicar as inovações importantes.”
Cortejando investidores, executivos da Medtronic argumentavam que o modelo Integrated Health Solutions da empresa – um fornecedor único para uma série de produtos e serviços – ajudaria os hospitais a estancar gastos e a melhorar a prestação de serviços de saúde. Além disso, isso garantiria dispositivos a um bom preço e transformaria a Medtronic em um colosso da medicina.
Agentes da Medtronic saíram a campo para fazer lobby junto a autoridades do governo e administradores de hospitais, lançando uma série de propostas para atrair pacientes, melhorar os serviços e ampliar a renda das salas de operação. Relógios Rolex e jantares caros foram substituídos por outros incentivos para atiçar possíveis clientes: dispositivos de implante, equipamento médico e equipe seriam todos gratuitos caso os hospitais assinassem contratos com a empresa. A Medtronic receberia uma porcentagem da receita hospitalar majorada como resultado da gestão mais eficiente.
Ishrak diz que, com esses acertos, ambos os lados ganham, e que há administradores de hospital que elogiam a Medtronic por prestar serviços para a saúde de última geração reduzindo despesas e economizando dinheiro.
Um dos primeiros acertos foi realizado em 2013, entre a Medtronic e o Imperial College de Londres. Depois da assinatura do contrato, contou o diretor de cardiologia do hospital, Kevin Fox, começou a “trabalhar num laboratório de cateterismo cardíaco plenamente abastecido de material e de pessoal, fazendo meu trabalho sem ter que me preocupar com coisas como ‘Será que estou com o kit certo [?]’”, disse ele a um site de notícias médicas no ano passado.
Alguns especialistas dizem que esse esquema gera conflitos de interesse por atrelar equipe grátis e melhores preços ao crescimento da receita do hospital. O resultado é que talvez o uso – ou o uso exagerado – de dispositivos da Medtronic seja estimulado mesmo quando outras marcas puderem ser melhores para o paciente.
“O mote do lucro vai transformar esses sistemas de saúde em máquinas de fazer dinheiro em vez de profissões de serviços”, disse Nortin Hadler, professor emérito de medicina na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill e autor de sete livros sobre políticas de saúde. “Posso até imaginar um slogan pro meu hospital, algo como ‘O que é bom para a Medtronic, é bom para o paciente.’”
Ex-funcionários alegam que parcerias semelhantes já criaram incentivos para médicos empregarem mais dispositivos cardíacos e bombas infusoras de insulina da Medtronic.
Em um processo de denúncia de atos ilícitos que corre no Tribunal Estadual da Pennsylvania, Cathleen Forney, ex-gerente regional da Medtronic no estado, disse que o programa da Medtronic forneceu “remuneração na forma de milhões de dólares em serviços terceirizados àqueles que tomavam decisões de compra sobre os produtos da Medtronic”. Sua ação forneceu nomes de médicos em 21 estados que, segundo ela, teriam cobrado indevidamente do Medicare por procedimentos realizados por funcionários da Medtronic, incluindo verificação e programação de dispositivos de pacientes. O sistema era uma forma de suborno, alegou Forney, porque com isso os médicos poderiam deixar de contratar funcionários próprios.
A Medtronic disse em documento apresentado em juízo que a ação de Forney deveria ser julgada improcedente, porque prestar assistência de produtos a médicos e hospitais não é suborno nem ilegalidade. Em sua nota ao ICIJ, a empresa negou que seu novo modelo busque promover uso exagerado ou emprego extrabula de seus produtos. Ela disse que está colaborando de forma estreita com agências reguladoras e legisladores para elaborar “uma estrutura responsável e ética” para as parcerias.
Até agora, a Medtronic selou cerca de 120 negócios no valor de 2,6 bilhões de dólares com hospitais na Europa, Canadá, América Latina, Oriente Médio, África e nos Estados Unidos. Dentre os clientes, o University Hospitals em Cleveland, a Lehigh Valley Health Network na Pennsylvania, o Imperial College Healthcare NHS Trust em Londres, e o Gbagada Cardiac and Renal Centre em Lagos, na Nigéria.
Na Itália, alguns médicos e rivais da Medtronic se queixaram ao Legislativo italiano que o novo modelo de negócios atrofiava a concorrência e favorecia a compra de produtos da empresa. Disseram que a subsidiária italiana da Medtronic, a NGC Medical S.p.A., fornecia apenas seus produtos em alguns laboratórios de cateterismo que gerenciava.
No começo de 2017, o senador Luigi Gaetti, um patologista de Mântua, e outros legisladores apontaram o comportamento da Medtronic como “anticoncorrência” e pediram a ministros do governo para investigar as alegações. A agência antitruste italiana atualmente está examinando a questão, segundo registros apurados pelo Report, um programa jornalístico italiano e parceiro do ICIJ.
O ICIJ e seus parceiros de mídia na Suíça, Itália, Reino Unido, México, Canadá e nos Estados Unidos solicitaram informação sobre os contratos dos hospitais parceiros da Medtronic. Os hospitais se recusaram a comentar. O Lausanne University Hospital, o New Brunswick Heart Center e o University Hospitals Cleveland Medical Center citaram cláusulas contratuais de sigilo.
Porta-voz do hospital Lehigh Valley, Brian Downs disse que a parceria era recente demais para dividir detalhes conosco, mas que os funcionários da Medtronic não estavam participando dos serviços aos pacientes. A Medtronic também não quis fornecer detalhes do contrato, mas o porta-voz Clark negou que as parcerias prejudiquem a concorrência ou os consumidores. “Não controlamos nem instruímos as decisões dos profissionais de saúde no âmbito do cuidado com o paciente, indicações de procedimentos, uso de tecnologia em pacientes nem na seleção de dispositivos médicos específicos”, disse o porta-voz Clark.
Em um dia quente da primavera do ano passado, um envelope grosso chegou à casa de Joe Gartrell em Orlando, na Flórida. Ele o trouxe para dentro e disse para a esposa, Mildred: “Deve ser aquilo.”
Eles foram abrir o envelope no quarto. “Aquilo” era uma declaração final detalhada mostrando sua indenização, com as devidas deduções, após o acordo judicial referente a uma operação de Infuse da Medtronic para corrigir uma doença degenerativa do disco.
Gartrell ficou cabisbaixo. Sua mulher parecia “paralisada pelo choque”, recordou ele numa entrevista. Não era o que estavam esperando. A Medtronic se movimentou para dirimir as últimas queixas a respeito do uso do Infuse para fins que não aparecem na bula. Na década que se seguiu após a advertência do FDA sobre o estimulante de crescimento ósseo, os relatórios registrados na agência o vincularam a vinte mortes e 10 mil lesões.
No ano passado, a empresa chegou a um acordo confidencial em um processo cível de negócios ilícitos aberto pela seguradora norte-americana Humana, acusando a Medtronic de distorcer estudos sobre o Infuse. A Medtronic também extinguiu processos de propaganda enganosa abertos por cinco procuradores-gerais estaduais dos Estados Unidos ao valor de 12 milhões de dólares. E pagou 43 milhões de dólares em julho para encerrar um processo aberto por investidores alegando que os estudos sobre o Infuse manipulados pela empresa tinham inflacionado artificialmente a cotação das ações na bolsa.
A Medtronic negou malfeitos nesses casos. Em sua nota ao ICIJ, a empresa afirmou que continua a buscar novas utilidades para o Infuse, que ela diz ser seguro, extensamente estudado e uma opção importante para pacientes que necessitam de determinados procedimentos na coluna e pós-traumatismo.
Depois de ter sido atropelado por um motorista que fugiu, em maio de 2009, o roteirista de Hollywood Jerome Lew recebeu uma aplicação de Infuse em seu pescoço, extrabula, juntamente com uma tela sintética que não estava aprovada para utilização no pescoço. A operação, realizada por um médico na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, com vínculos financeiros com a Medtronic, o deixou com nevralgia, problemas para deglutir e fraqueza nas mãos e nos braços, disse Lew. “Fui privado de segurar meus filhos no colo em seus primeiros anos, de ajudá-los a dar os primeiros passos”, afirmou. Atualmente com 55 anos, Lew recebeu uma soma não revelada da empresa e 4,2 milhões de dólares da universidade.
A família de Hailey Starr Reuter, de seis meses de idade, recebeu o valor de 650 mil dólares após acordo com o Cincinnati Children’s Hospital Medical Center, por causa das medidas tomadas pelos médicos que haviam operado a bebê. Ela sofreu um procedimento craniano com o Infuse, que não estava autorizado para pacientes pediátricos, sem o consentimento dos pais. O Infuse fez com que a circunferência da cabeça de Hailey parasse de crescer, segundo sua família, porque fez com que uma área de seu crânio se fundisse antes da hora. Isso provocou mais três procedimentos cranianos e faciais na criança. “Agora as cicatrizes dela vão de orelha a orelha”, disse a mãe, Tricia, em uma entrevista.
Gartrell, o ex-executivo da conta da PepsiCo de 55 anos que recebera o informativo do acordo, agora anda com bengala. Sente dormência nas pernas e já não pode mais praticar pesca submarina, nem mergulho autônomo. Ele foi usado como “uma cobaia” na sala de operação em maio de 2006, disse ele, e nenhum dinheiro seria capaz de compensar o que aconteceu com ele – mas ajudaria. No ano passado, a Medtronic afirmou ter realizado acordos para dirimir a maior parte de 6 000 queixas relativas ao uso do Infuse.
Gatrell olhou para o valor final do acordo – 105 mil dólares. Depois leu todas as deduções. Tudo o que ele queria era um cheque grande o suficiente para pagar seus gastos médicos. Isso, disse ele, e um pedido de desculpas. Depois de gastar com advogados, especialistas, fotocópias e ter feito um empréstimo para cobrir suas despesas jurídicas, ele não ganhou absolutamente nada. Nem mesmo o pedido de desculpas.
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