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Dona Hermínia, Blake, Schofield e Adoniran Barbosa – as peripécias para conseguir assistir a um filme

Barulho, informação errada e sala em péssimo estão no caminho de quem tenta ver documentário sobre compositor paulista

Eduardo Escorel | 05 fev 2020_10h48
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Ao decidir qual filme assistir para escrever esta coluna, hesitei entre conhecer Dona Hermínia ou admirar Adoniran Barbosa. Optei pelo documentário sobre esse artista nascido em Valinhos, São Paulo – compositor, cantor e humorista –, autor entre tantos sucessos de Samba do Arnesto, Saudosa Maloca, Trem das Onze e Tiro ao Álvaro. Achei que Dona Hermínia (Paulo Gustavo), disponível em mais de 734 cinemas de várias cidades do país, com algumas sessões por dia, e já contemplada por mais de 10 milhões de espectadores em seis semanas, sequer notaria minha ausência. Além do mais, o sucesso comercial alcançado por Minha Mãe É Uma Peça 3, de Susana Garcia, parece ter tornado supérfluas quaisquer considerações críticas sobre o filme. Faria mais sentido, pensei, comentar Adoniran, Meu Nome É João Rubinato que estreara meio escondido há uma semana em dez cinemas, vendera apenas 966 ingressos nos primeiros quatro dias e chegara a modestos 2.277 espectadores até domingo passado.

Acabei sendo levado, porém, a assistir a Minha Mãe É Uma Peça 3! O aplicativo para compra online de ingressos informava que Adoniran, Meu Nome É João Rubinato estava sendo exibido aqui no Rio apenas no Cine Santa Teresa, às 17 horas. Na impossibilidade de subir o morro nesse horário, comprei o primeiro ingresso do dia para conhecer Dona Hermínia em uma das duas salas do Botafogo Praia Shopping, onde ela está em cartaz com cerca de 350 lugares disponíveis.

Shopping é, por si só, uma provação, em especial para o olfato e a audição. Atravessar os corredores e subir as escadas rolantes para chegar ao cinema exige resistência ao cheiro enjoativo e ao barulho atordoante que dominam o ambiente.

Quando a sessão começou havia umas trinta pessoas na sala – senhoras com dificuldade de locomoção, um casal de namorados, duas adolescentes, algumas crianças com suas mães. Fomos todos submetidos a mais de quinze minutos de trailers, ao anúncio da transmissão do Super Bowl, além de um demo das principais atrações de 2020. Entre os trailers, tomei conhecimento da existência de dois filmes brasileiros cujos títulos são evidência de qual deve ser seu nível mental – Solteira Quase Surtando e No Gogó do Paulinho. Quanto a Minha Mãe É Uma Peça 3, confesso que não ri. À minha volta, no entanto, a maioria do pequeno público espalhado na sala quase vazia dava sinais de estar se divertindo muito. As risadas aumentavam, inclusive, à medida que o filme progredia e Dona Hermínia ia se tornando cada vez mais inconveniente, desbocada e insultuosa.

Saí acabrunhado do cinema, sentindo-me derrotado por 10 milhões a um. Confirmava-se a impressão de não haver muito a dizer diante de tamanha receptividade do público e pensei em assistir a outro filme para comentar aqui.

Sexta-feira de manhã, ao folhear o suplemento Rio Show, do jornal O Globo, li, para minha surpresa, que haveria uma sessão de Adoniran, Meu Nome É João Rubinato, às 19h30, no Estação NET Botafogo 2 – horário e local convenientes para mim. O aplicativo para compra online de ingressos continuava oferecendo apenas a exibição no Cine Santa Teresa, mas confiei no jornal e lá fui eu ver Adoniran Barbosa. Ao chegar ao cinema, fui informado que as salas 2 e 3 estavam com “defeito técnico” e não haveria a sessão anunciada. Inquieto diante da falta de assunto para escrever no fim de semana, fui compelido a assistir a um filme que estava para começar na sala 1, mas não entrara nas minhas cogitações – o premiado 1917, concorrente a dez Oscars no próximo domingo.

Inspirado pelas histórias que ouviu de seu avô, o escritor Alfred Mendes, veterano da Primeira Guerra Mundial, o roteiro do diretor Sam Mendes, escrito a quatro mãos com Krysty Wilson-Cairn, transforma a missão dos cabos britânicos Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) em uma gincana pouco verossímil, encenada e filmada com fluência, como se tivesse sido feita em um plano único. Para quem aprecia corridas com obstáculos, 1917 é um prato cheio – os dois jovens soldados devem atravessar o campo de batalha e entregar a tempo a ordem para cancelar a ofensiva planejada, salvando 1 600 de seus colegas da armadilha dos alemães e de serem massacrados.

Com custo de produção orçado em 90 milhões de dólares, 1917 rendeu cerca de 248 milhões de dólares no mercado mundial desde sua estreia há seis semanas. Lançado no Brasil em 23 de janeiro, o filme foi visto em pré-estreias e nos quatro primeiros dias de exibição por 300 990 espectadores. E no final do segundo fim de semana em cartaz chegou a 611.729 ingressos vendidos.

Afinal, no sábado, a nova tentativa de assistir a Adoniran, Meu Nome É João Rubinato foi bem-sucedida. Fui ao Cine Star Special Laura Alvim, em plena Avenida Vieira Souto, na sessão de 15h55. O ambiente nos fundos da Casa de Cultura é algo desolador e o banheiro cheira mal. A sala é pequena, apenas 35 lugares. Tive a companhia de oito pessoas da minha geração – três casais e dois senhores, todos idosos e alguns trôpegos.

Ao contrário de Dona Hermínia, a quem não tive prazer em conhecer, foi um regalo assistir aos 92’ do documentário de Pedro Serrano, ainda que seja um filme informe e desmedido. Peca por falta de forma própria e excesso de materiais heterogêneos, em especial algumas entrevistas. Mesmo assim, ao reunir amplo acervo de gravações e filmagens em excelente estado, parecendo ter passado por um cuidadoso processo de restauro, torna-se um registro musical precioso. As várias apresentações e entrevistas de Adoniran Barbosa são valiosas. O personagem está inteiro na tela, com seu talento, senso de humor, português arrevesado, sua tristeza e mágoa, mas sempre irradiando simpatia.

Adoniran Barbosa
Adoniran Barbosa em cena do documentário – FOTO DE DIVULGAÇÃO

 

Ao inventar o próprio nome, Adoniran “exprimiu a realidade tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro das raízes europeias”, escreveu Antonio Candido na contracapa do LP Adoniran Barbosa (Odeon,1975): “Adoniran é um paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da imaginação alimentada pelas heranças necessárias de fora. […] Da mistura, que é o sal da nossa terra, Adoniran colheu a flor e produziu uma obra radicalmente brasileira, em que as melhores cadências do samba e da canção, alimentadas inclusive pelo terreno fértil das Escolas, se alia com naturalidade às deformações normais de português brasileiro, onde Ernesto vira Arnesto, em cuja casa nós fumo e não encontremo ninguém, exatamente como por todo esse país. Em São Paulo, hoje, o italiano está na filigrana.

A fidelidade à música e à fala do povo permitiram a Adoniran exprimir a sua Cidade de modo completo e perfeito. São Paulo muda muito, e ninguém é capaz de dizer aonde irá. Mas a cidade que nossa geração conheceu (Adoniran é de 1910) foi a que se sobrepôs à velha cidadezinha caipira, entre 1900 e 1950; e que desde então vem cedendo lugar a uma outra, transformada em vasta aglomeração de gente vinda de toda parte. A nossa cidade, que substituiu a São Paulo estudantil e provinciana, foi a dos mestres de obra italianos e portugueses, dos arquitetos de inspiração neoclássica, floral e neocolonial, em camadas sucessivas. São Paulo dos palacetes franco-libaneses do Ipiranga, das vilas uniformes do Brás, das casas meio francesas de Higienópolis, da salada da Avenida Paulista. São Paulo da 25 de Março dos sírios, da Caetano Pinto dos espanhóis, das Rapaziadas do Brás, na qual se apurou um novo modo cantante de falar português, como língua geral na convergência dos dialetos peninsulares e do baixo-contínuo vernáculo. Esta cidade que está acabando, que já acabou com a garoa, os bondes, o trem da Cantareira, o Triângulo, as Cantinas do Bexiga, Adoniran não a deixará acabar, porque graças a ele ela ficará, misturada vivamente com a nova mas, como o quarto do poeta, também intacta, boiando no ar.

A sua poesia e a sua música são ao mesmo tempo brasileiras em geral e paulistanas em particular. Sobretudo quando entram (quase sempre discretamente) as indicações de lugar, para nos porem no Alto da Mooca, na Casa Verde, na Avenida São João, na 23 de Maio, no Brás genérico, no recente metrô, no antes remoto Jaçanã. Quando não há esta indicação, a lembrança de outras composições, a atmosfera lírica cheia de espaço que é a de Adoniran, nos fazem sentir por onde se perdeu Inês ou onde o desastrado Papai Noel da chaminé estreita foi comprar Bala Mistura: nalgum lugar de São Paulo. Sem falar que o único poema em italiano deste disco nos põe no seu âmago, sem necessidade de localização.

Com os seus firmes 65 anos de magro, Adoniran é o homem da São Paulo entre as duas guerras, se prolongando na que surgiu como jiboia fuliginosa dos vales e morros para devorá-la. Lírico e sarcástico, malicioso e logo emocionado, com o encanto insinuante da sua antivoz rouca, o chapeuzinho de aba quebrada sobre a permanência do laço de borboleta dos outros tempos, ele é a voz da Cidade. Talvez a borboleta seja mágica; talvez seja a mariposa que senta no prato das lâmpadas e se transforma na carne noturna das mulheres perdidas. Talvez João Rubinato não exista, porque quem existe é o mágico Adoniran Barbosa, vindo dos carreadores de café para inventar no plano da arte a permanência da sua cidade e depois fugir, com ela e conosco, para a terra da poesia, ao apito fantasmal do trenzinho perdido da Cantareira.” (Um trecho desse texto é citado no documentário e está disponível na íntegra online.)

Ao assistir a Adoniran, Meu Nome É João Rubinato, imagens e sons vêm ao encontro dessas palavras de Antonio Candido, o que por si só torna valioso o documentário de Serrano.

 

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