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    ILUSTRAÇÃO: JOÃO BRIZZI

anais do pensamento

Duelo na rede

Antes mais restritos às universidades, intelectuais hoje se digladiam no Facebook. Só não vale bater abaixo da linha do Žižek

Juliana Sayuri | 17 nov 2017_17h10
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No verão francês de 1983, dois anos depois da vitória do socialista François Mitterrand na disputa presidencial, o historiador Max Gallo publicou um artigo famoso no diário Le Monde criticando o momento de descompasso entre a esquerda e a intelligentsia francesa. Gallo criticava a esquerda, que por muitas décadas encarnara as esperanças dos intelectuais por uma transformação radical da sociedade, e estava então encastelada no poder. Na historiografia, o fenômeno ficou conhecido como “o silêncio dos intelectuais”.

No Brasil, por volta de 2005, diante das manchetes do mensalão, fenômeno similar se manifestou em relação ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: apesar das denúncias de corrupção, muitos intelectuais de esquerda se abstiveram de críticas à realidade política da época. Em bom português, tornaram-se “chapa-branca”. Uns romperam com o PT, outros preferiram o silêncio diante do distanciamento da esquerda de seus ideais.

Mas, nos últimos tempos, há tudo, menos silêncio, à esquerda e à direita e a toada da “corrupção” se tornou palavra-chave de muitas das querelas dos maîtres à penser, os mestres do pensamento, na expressão francesa.

Em tempos de Facebook transbordam acusações, críticas irônicas, duelos teóricos e os famosos textões que se desenrolam nas timelines. Antes reunidos principalmente em cafés, redações e universidades, intelectuais agora ocupam as redes sociais como um lugar privilegiado para o debate público, disputando espaço com outros atores que vão do jornalismo ao entretenimento puro, ancorados sobretudo em questões identitárias, como diagnosticou o cientista político Antonio Engelke na piauí de setembro.

Foi no Facebook que se desenrolaram recentemente as preliminares para um duelo intelectual entre os sociólogos Jessé Souza e Ruy Braga um “UFC retórico no campo da esquerda”, conforme definiu um post que passou pela timeline dos dois autores. Nas palavras irônicas do editor Daniel Rodrigues Aurélio: “Vai ter pancadaria verbal das boas, com muito Marx, Gramsci, Lênin, Burawoy, Trotsky, Bourdieu e até uma das armas favoritas de Jessé, sua indefectível leitura de Weber – pelas regras, só não vale bater abaixo da linha do Žižek. No final, como nós da esquerda não perdemos a ternura jamais, todos cantaremos de braços dados a Internacional e gritaremos Fora, Temer.”

Ex-presidente do Ipea, atualmente professor da Universidade Federal do ABC e autor de títulos como A Ralé Brasileira (2009), A Tolice da Inteligência Brasileira (2015) e A Radiografia do Golpe (2016), Souza concedeu uma controversa entrevista à revista Cult de outubro sobre seu novo livro, A Elite do Atraso: da Escravidão à Lava Jato, que confronta teses como o clássico Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda.

Para Souza, não é o patrimonialismo (teorizado por Holanda) que nos define e nos lega persistentes condições de desigualdade socioeconômica e de corrupção, mas a herança histórica da escravidão. A esquerda, defende Souza, nunca explorou essa crítica “porque foi incapaz. Porque não foi inteligente, porque se deixou imbecilizar”.

A carapuça acabou servindo na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, celeiro de pensadores que elaboraram chaves de interpretação importantes sobre a sociedade brasileira.

Um dos críticos ao novo livro de Jessé Souza foi Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e autor de A Política do Precariado: do Populismo à Hegemonia Lulista (2012), Infoproletários (2009) e Por uma Sociologia Pública (2009). Braga foi ao Facebook: “Tá bom… Tá bom… O cargo de ‘Olavo de Carvalho da esquerda’ já está ocupado. Retificando, então: Jessé está a um passo de se transformar no Leandro Narloch da esquerda brasileira”, ironizou, em um post de 22 de outubro.

Dois dias depois foi postado o textão “Sobre a temporada de caça a Jessé Souza”, no qual o próprio Souza comenta as críticas (da direita e da esquerda) às suas teses.

À direita, o embate é compreensível, argumentou o autor, dado o conteúdo do livro que se propõe a revelar “os meandros da dominação simbólica que permite a rapina material da ínfima elite brasileira sobre a sociedade como um todo”. Mas foi à esquerda que o tom subiu: “Venho recebendo ataques do mais baixo calão de professores da USP e afins por ter reconstruído os vínculos institucionais da dominação simbólica que mantém a sociedade brasileira, inclusive sua esquerda, colonizada e dominada pelo discurso de seu inimigo. Que a USP participou de modo constitutivo nessa trama e foi criada para isso acho que o livro não deixa lugar a dúvida. É um fato histórico. (…) Mas o que acho que provoca efetiva dor de cotovelo nos meus detratores é o fato de ter conseguido, com muito esforço, expor questões complexas de modo simples e compreensível para a maioria das pessoas. Foi a minha maior vitória como pesquisador ter me livrado de minha couraça escolástica, com tudo de ruim e nocivo que ela representa, e poder transmitir o produto de quase 40 anos de estudo e de pesquisa séria para quem realmente precisa e deseja”, escreveu.

Souza se refere à “couraça escolástica” como uma pomposa pretensão acadêmica de privilegiar uma “linguagem hermética só compreensível para iniciados, com citações recíprocas do círculo de amigos para dar a ilusão de importância”. Defende-se das críticas sobre a falta de rigor científico dizendo que já tinha traçado essas análises nos seus livros anteriores, e que a diferença do novo título era apenas uma linguagem mais simples. “Usei tudo que aprendi em décadas de estudos nas melhores universidades do mundo e com o estímulo de alguns dos melhores pensadores vivos para tornar o mundo social e suas fraudes compreensíveis para um porteiro e para uma enfermeira”, gabou-se o autor.

No parágrafo final do textão de 1 196 palavras, Jessé Souza convida Ruy Braga para um debate público na PUC de São Paulo. “Que sua sanha seja usada para o bem, um possível aprendizado mútuo e certamente produtivo para o público que é o principal”, provocou.

Na manhã do dia 25 de outubro, Braga endereçou um post a Souza, também no Facebook. Na carta, cordial e irônica, pediu desculpas pela demora na resposta. “Soube pelas redes sociais de seu convite para debatermos no dia 21 de novembro em uma conhecida universidade privada da cidade de São Paulo. Antes de mais nada, muito obrigado pela deferência. Naturalmente, aceito com muito prazer”, escreveu.

Na sequência, Braga discute a disponibilidade de agenda para acertar a data e o local do encontro. Quanto ao local, o autor da carta deixa transparecer uma provocação ao destinatário: “(…) tendo em vista o fato de ambos sermos servidores públicos, sugiro que nos encontremos em uma universidade pública. Sei que talvez você não se sinta confortável na universidade onde trabalho entretanto, tenha absoluta certeza que você seria acolhido da maneira mais amistosa e educada possível na USP –, por isso, proponho que nosso encontro se realize (de acordo com o que me informaram amigos em comum, perdoe-me se estiver enganado) em sua nova casa, a Universidade Federal do ABC”.

Discussões sobre o livro à parte, o que se destaca nesse embate é a expressão dos diálogos entre os dois intelectuais: diretos ou indiretos, mas ágeis e absolutamente públicos nas redes sociais e diante dos olhos de todos. Isso sinaliza um dilema que embala as discussões sobre o papel dos intelectuais: falar muito para poucos (compartilhar um conhecimento acadêmico ultraespecializado a respeito de um assunto, mas acessível apenas a interlocutores restritos) ou falar pouco para muitos (transmitir um conhecimento de forma mais “leve” e “ligeira”, ampliando o alcance a um público maior)?

No caso específico do embate entre Braga e Souza, por exemplo, a discussão saiu do alfinete e das provocações e passou para um debate de maior fôlego, a ser realizado tête-à-tête em um lugar público – o desafio deve acontecer no dia 23 de novembro. Em outras palavras, a discussão teórica saiu da universidade, quicou na imprensa, foi catapultada nas redes sociais e retornará à universidade.

 

Diferentes interpretações marcaram a ideia de “intelectual” ao longo da história. No século XX, autores como Antonio Gramsci, Julien Benda, Jean-Paul Sartre, Raymond Aron, Benedetto Croce, Norberto Bobbio, Jean-François Sirinelli, Pascal Ory, Pierre Bourdieu e Edward Said dedicaram páginas e mais páginas para discutir o papel dos pensadores.

Amadores, críticos, engajados, outsiders, utópicos, subversivos, revolucionários, românticos, essas cabeças incorporaram diferentes representações. Para Edward Said, no livro Representações do Intelectual: As Conferências Reith de 1993, o pensador moderno deveria ser um perturbador do “status quo”, um “outsider” livre de amarras para manifestar suas críticas. Sua razão de ser é levantar questões delicadas, esquecidas ou varridas para debaixo do tapete. Ele deveria confrontar ortodoxias, pautado por princípios universais como os direitos à liberdade e à justiça – e violações deveriam ser corajosamente combatidas. Na leitura do pensador palestino, o intelectual deve articular uma opinião sempre em benefício de um público – os atuais isentões das redes não teriam vez nesse contexto. “Nada deforma mais o desempenho público do intelectual do que os floreados, o silêncio cauteloso, a jactância patriótica e a apostasia retrospectiva acompanhada de autodramatização”, escreveu Said no livro.

Se o que define um intelectual não é um título acadêmico ou uma atuação no campo das humanidades, e sim seu posicionamento na esfera pública sobre questões contemporâneas, a novidade é a expansão dessa arena. Antes, eles encontravam eco para suas ideias na imprensa tradicional. Agora, empunham teclados direcionados às redes sociais. Em busca de novas tribunas (e audiências), o principal púlpito encontrado foi o Facebook.

Num de seus últimos livros, o historiador britânico Eric Hobsbawm, morto em 2012, também lamentou a condição atual dos intelectuais: “Estão calados ou mortos”, sentenciou. Em Tempos Fraturados (2013), o autor diz que os pensadores já não têm condições de competir com um Bono Vox, a menos que se reposicionem no novo mundo do espetáculo midiático. “Vivemos uma nova era, ao menos até que o ruído universal de autoexpressão do Facebook e os ideais igualitários da internet produzam seu pleno efeito público”, pontuou.

Palco de celebridades instantâneas (os “influencers”), conflitos verborrágicos e tagalerice, a internet deu voz a legiões de “imbecis”, como criticou o filósofo italiano Umberto Eco. Ao mesmo tempo, porém, abriu a arena de intervenções dos intelectuais a um público maior, seja para publicizar livros novos e comentários críticos, seja para manifestar posições políticas sobre o que acontece na atualidade. Depois de muitas críticas sobre seu eclipse na sociedade – como acidamente lamenta o historiador americano Russell Jacoby, autor de O Fim da Utopia (2001) –, os intelectuais estão de volta, reconquistando protagonismo no admirável mundo da internet? Para Jacoby, os últimos intelectuais estão “perdidos nas universidades”, inacessíveis para a sociedade, o que empobrece a cultura pública. Sua questão central é: onde estão esses pensadores?

Entre palavras e silêncios, nas suas produções acadêmicas, artísticas e políticas, dentro e fora dos campi, os intelectuais disputam espaço, obviamente, com outras vozes, em uma esfera pública repleta de conflitos. É do jogo: historicamente, não é este o próprio desafio dos intelectuais, tentar fazer-se ouvir em meio ao ruído?

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