Em março de 2020, o governador Carlos Moisés (PSL) decretou lockdown em Santa Catarina. Era o início da pandemia, e ele se notabilizou pela condução firme em seu estado. Fechou shoppings, academias e cinemas, proibiu a permanência das pessoas em restaurantes e parques. Se disse “estarrecido” com o discurso em que o presidente Jair Bolsonaro chamou a Covid-19 de “gripezinha”. Em março de 2021, Moisés era outro. Liberou academias, shoppings, restaurantes e até parques aquáticos, desde que com capacidade reduzida, e tudo isso no pior momento da pandemia.
A guinada negacionista visava a salvar o seu mandato. Alvo de um segundo processo de impeachment, o governador resolveu se mostrar bolsonarista e amealhar apoio suficiente para se manter no cargo. Não funcionou, e na semana passada ele foi afastado pela segunda vez. Assumiu a vice, Daniela Reinehr (sem partido), cuja abordagem a população catarinense já conhecia de sua primeira passagem interina pelo governo estadual. “A minha propensão é de que não haja medidas proibitivas e que as medidas restritivas sejam de prevenção, de conscientização”, disse ela assim que assumiu o cargo a jornalistas selecionados a dedo para uma entrevista. Reinehr e Moisés romperam publicamente desde o primeiro afastamento do governador, em 2020.
Sacrificados pela disputa política local, os catarinenses já enterraram 11 mil dos seus. Mais de duzentas pessoas estão na fila de espera por um leito de UTI. Nos hospitais não há mais espaço físico para novos pacientes, que chegam a ser internados em poltronas ou em alas improvisadas. Unidades de pronto atendimento abrigam leitos de internação. Há risco iminente de faltarem medicamentos para o kit intubação e oxigênio, e o Ministério Público Estadual solicitou ao governo medidas para garantir os estoques.
Com o colapso, pacientes são preteridos em detrimento de outros com maior chance de recuperação. Maria Faustino Monteiro, de 84 anos, foi internada no pronto atendimento de Biguaçu, na Grande Florianópolis, no início de março. Logo que deu entrada, os médicos disseram que precisava ir para a UTI. Foram dez dias de espera em um leito improvisado. A paciente não resistiu e morreu na fila. “Cruelmente, usaram esse protocolo com minha avó”, lamentou sua neta, Noemi Martins, de 38 anos. Quatro dias depois da morte de Monteiro, um filho dela também morreu de Covid.
Procurada pela piauí, Reinehr não se manifestou. Moisés, por sua vez, afirmou que o primeiro decreto era “mais rigoroso por exigência das circunstâncias do momento, já que era preciso tempo para, em primeiro lugar, entender a doença”, necessidade depois superada pelo conhecimento da doença (leia mais abaixo).
Nesta quarta-feira, dia 7, Bolsonaro passa por Chapecó. Embora tenha a quinta maior população do estado, o município é o terceiro com mais óbitos, 77% deles ocorridos apenas neste ano (411). Na região Oeste, que tem Chapecó como referência, foram 1.009 óbitos desde 1º de janeiro, 70% das mortes registradas desde o início da pandemia, sendo mais da metade (535) de pacientes em leitos comuns, sem chegar a uma UTI.
Ao anunciar a visita, Bolsonaro compartilhou vídeo do prefeito de Chapecó, João Rodrigues (PSD), no qual ele aparece anunciando leitos vazios e dizendo que a cidade reduziu drasticamente o número de casos. “É um exemplo a ser seguido, por isso estou indo para lá”, justificou Bolsonaro. “Para exatamente não só ver, mas mostrar a todo o Brasil que o vírus é grave, mas seus efeitos têm como ser combatidos. Mais ainda, naquele município, com toda certeza em mais [cidades], em alguns estados também, o médico tem a liberdade total para trabalhar com o paciente, total. Esse é dever do médico, uma obrigação e direito dele”, disse o presidente.
Como Bolsonaro, o prefeito defende o “tratamento precoce” com medicamentos que não apenas não combatem a Covid como têm severos efeitos colaterais, às vezes fatais. Os dois fazem propaganda enganosa de hidroxicloroquina, mas não mencionaram o lockdown parcial de catorze dias em Chapecó no momento mais crítico da pandemia na cidade, quando pacientes precisaram ser transferidos para outros estados e morreram em poltronas esperando leito de UTI. Por duas semanas, atividades em escolas e no comércio não essencial ficaram suspensas.
“É fato que não tem mais pacientes aguardando leito no Centro de Eventos”, afirmou a epidemiologista Carolina Ponzi, professora da Unochapecó e médica no Hospital da Unimed local. “Mas as UTIs seguem lotadas. Isso se deve ao distanciamento social e a medidas mais restritivas que ainda estão em prática, e não por conta do tratamento precoce.”
No início de dezembro de 2020, o governo catarinense foi avisado pelos órgãos técnicos sobre o risco de colapso no sistema de saúde. No momento, o grupo alertava para o aumento de casos e de mortes, e cobrou adoção de medidas mais rígidas de isolamento, principalmente durante as festas de fim de ano. Àquela altura, Carlos Moisés já não pedia mais que as pessoas ficassem em casa. Ele acabava de retomar o governo após afastamento de 31 dias no primeiro processo de impeachment, no qual foi investigado por ilegalidades no aumento de salário dos procuradores do estado. E reassumiu buscando se reaproximar do bolsonarismo. Aliou-se a grupos políticos que antes criticava e ignorou as orientações técnicas. Ao contrário, cedeu a apelos de deputados estaduais, que o ameaçavam com um segundo processo de impeachment, este por crime de responsabilidade na compra de duzentos respiradores da China, pagos antecipadamente e nunca entregues. O caso foi revelado pelo site The Intercept Brasil.
Às vésperas das festas de fim de ano, e diante da pressão dos setores econômicos, Moisés liberou ocupação máxima em hotéis e autorizou a realização de eventos. Pouco antes do Natal, pela primeira vez na pandemia, todas as regiões de Santa Catarina atingiram o nível de alerta máximo para a Covid-19. A ocupação de leitos também dava sinais de esgotamento. A Assembleia Legislativa de Santa Catarina, Alesc, respondeu adiando o julgamento do segundo impeachment, que estava previsto para dezembro, e deputados ocuparam o governo. O relator do processo de impeachment na Assembleia, Valdir Cobalchini, do MDB, passou a fazer nomeações. José Milton Scheffer, do PP, com poder de voto no Tribunal do Impeachment, assumiu a liderança do governo na Assembleia. Moisés nomeou outros dois deputados para as secretarias de Agricultura e Educação. O presidente da Alesc, Julio Garcia (PSD), indicou o chefe da Casa Civil.
Veio a virada de 2020 para 2021, com praias lotadas, baladas e hotéis a pleno vapor. Nos três primeiros meses deste ano, a Covid matou mais gente em Santa Catarina do que em todo o ano de 2020. Desde janeiro, foram 5.938 registros de óbitos contra 5.386 entre março e dezembro do ano passado. Até a última quinta-feira, dia 1º de abril, 280 pessoas ainda aguardavam na fila por uma vaga em leito de UTI. Em meados de março, a fila chegou a ter mais de quatrocentas pessoas. A média móvel de mortes diárias, que no início de janeiro não passava de 45 óbitos, está desde meados de março acima dos cem sepultamentos diários. No último dia de março, alcançou 131.
Assim como os próprios órgãos técnicos do governo do estado, órgãos de controle como Tribunal de Contas, Defensoria Pública e Ministério Público também pedem a adoção de lockdown. Mas o governo reagiu: o secretário de Saúde de Moisés, André Mota Ribeiro, disse que “lockdown não funciona em nenhum lugar do mundo”. No início de fevereiro deste ano, Moisés recebeu Bolsonaro para a entrega de 225 viaturas para a assistência social e agradeceu a “sensibilidade do presidente por estar em Santa Catarina”, afirmando que ambos foram eleitos sob a mesma bandeira. Diferentemente dele, Bolsonaro não o citou em seu discurso.
Com uma CPI instalada na Alesc para investigar o caso dos respiradores, ao menos sete pedidos de impeachment foram feitos contra Moisés, e dois tiveram prosseguimento. No último dia 30 de março, ele foi afastado do cargo de governador pelo Tribunal de Impeachment – formado por cinco deputados e cinco desembargadores – para responder sobre a compra dos respiradores. O caso também é investigado pelo Ministério Público Federal em inquérito que tramita no Superior Tribunal de Justiça. A corte determinou buscas na residência oficial do governo, onde foram apreendidos celulares e computadores.
A governadora interina, Daniela Reinehr, se aliou à velha política catarinense com quem o antecessor tentou, sem sucesso, negociar sua permanência. Ao assumir pela primeira vez como interina, em outubro, notabilizou-se pela condescendência com as ideias nazistas do pai, o professor aposentado Altair Reinehr, que colaborou com uma editora especializada em livros antissemitas que negavam o holocausto. Em sua primeira entrevista, ela se negou a responder ao jornalista que a questionou sobre o tema. Depois, com a polêmica nacionalizada, emitiu nota se dizendo contrária ao nazismo.
Ainda naquele período, Reinehr aderiu à cartilha bolsonarista na pandemia e chegou a apagar postagens em que pedia para a população usar máscara. Agora, segue com discurso sobre os efeitos danosos da pandemia na economia para descartar medidas de urgência sanitária como lockdown. Publicamente, coloca-se como aliada de Bolsonaro. “A aproximação com o governo federal é extremamente importante. Diante da minha lealdade ao projeto que nos elegeu, agora, com certeza, na condição de governadora, vou ter ainda mais acesso, e eu já pedi para fazer o levantamento de todas as possibilidades que a gente tem de conseguir buscar recursos no governo federal para beneficiar Santa Catarina”, declarou ao tomar posse pela segunda vez.
Reinehr não esclareceu os critérios usados para evitar a tomada de medidas de restrição de circulação diante do aumento das mortes e infecções.
O governador afastado, Carlos Moisés, afirmou ter editado decreto “mais rigoroso” em março de 2020 para ganhar tempo. Além de “entender a doença”, disse em nota à piauí, precisava “organizar as unidades de saúde, ofertar mais leitos de UTI, contratar e treinar pessoal, adquirir insumos e demais equipamentos para reforçar o atendimento à população”.
Após a primeira etapa, prosseguiu Moisés, a gestão deu liberdade para as prefeituras. “Numa segunda etapa, notas técnicas e portarias passaram a nortear a responsabilidade de cada município na luta contra o coronavírus, com ações específicas diante da realidade local com base na Matriz de Risco desenvolvida pelo governo.”
Sobre o pior momento da pandemia, em curso, o governador afastado disse que “novamente o Estado editou decretos mais rigorosos, passando a organizar e restringir as atividades com maior potencial de risco, limitando horários de funcionamento do comércio e atividades ao ar livre”, sem esclarecer por que desta vez até parques de diversão permanecem abertos.