O 18º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade apresentará, a partir de 6 de abril, no CCBB-RJ, e, a partir de 10 de abril, no CCBB-SP e na Cinemateca Brasileira, uma seleção de curta-metragens e 7 longa-metragens realizados por Dziga Vertov, entre 1924 e 1937. Com exceção de e Três canções sobre Lenin, este lançado em DVD com o título Réquiem a Lenin, junto com Kinoglaz (Cinema olho), os demais filmes da retrospectiva são pouco conhecidos no Brasil. [veja a programação completa aqui]
Das 43 edições do Kinonedelja, recuperados em versão integral, em 1970, no Instituto de Cinema Sueco, 12 do período 1918-1919 já estão disponíveis online. Neles é possível ver o nascente estado soviético, inclusive alguns de seus principais líderes, como Trotski e Lenin, sem pompa e circunstância. São os passos iniciais de Vertov, anteriores ao seu primeiro manifesto, de 1922, no qual escreve na primeira pessoa do plural: “Nós [os kinoks (homens do cinema olho)] proclamamos que os filmes velhos, baseados em romances, filmes teatrais e que tais, são leprosos. – Fiquem longe deles! – Mantenham seus olhos afastados deles! – Eles são mortalmente perigosos! – Contagiosos! Nós afirmamos o futuro da arte do cinema negando o presente.”
Como tantos jovens iconoclastas antes e depois dele, Vertov começou decretando, aos 26 anos, a morte do cinema existente. Tratava-se, segundo ele, de substituir o olho aperfeiçoável da câmera pelo olho imperfeito do ser humano.
Para ter uma ideia do privilégio que a retrospectiva Vertov representa, basta lembrar que até 1970 não havia possibilidade de assistir a , fora da União Soviética, de maneira que o filme pudesse ser examinado plano a plano. A primeira edição do livro de George Sadoul sobre Vertov, com prefácio de Jean Rouch, é de 1971. E só no ano seguinte foi editada na França a primeira coleção de “Artigos, Diários, Projetos” escritos por Vertov, que haviam começado a ser publicados no Cahiers du Cinéma, em 1963.
No seu prefácio, Rouch assinala que Sadoul não dera o lugar merecido ao pioneiro soviético na sua história do cinema. “Pioneiro genial”, escreve Rouch, “que o cinema oficial soviético tinha conseguido deixar na sombra, como um simples cinegrafista.”
Tendo conseguido assistir a e a O décimo primeiro ano, em uma sessão especial, em Paris, o autor de um artigo publicado na Suiça, em 1929, termina dizendo que “o trabalho de Vertov não é mais lendário. Nos o vimos, outros o viram. Todos devem lutar até que o tenham visto!”
Um ou mais filmes de Vertov escaparam do incêndio no qual a Cinemateca Brasileira perdeu, em 1957, um terço do seu acervo. Paulo Emílio escreveu que as perdas foram “devastadoras” mas “sobrou um núcleo sólido de filmes”, e menciona Vertov entre os que se salvaram.
No Brasil, cópias de A sexta parte do mundo e de foram exibidas, em 1961/62, na mostra História do cinema russo e soviético, promovida pla Cinemateca Brasileira, integrada à VI Bienal de São Paulo, contando com a colaboração da Gosfilmfond (Cinemateca da União Soviética) e do Departamento Cultural do ministério das Relações Exteriores do Brasil. Mas foi preciso esperar o advento do VHS e do DVD para começar a conhecer esses filme de forma mais detida, ainda que, muitas vezes, em cópias de péssima qualidade.
Denis Arkadyevich Kaufman (1896-1954), irmão de Mikhail e Boris, ambos com carreiras próprias como diretores de fotografia, nasceu em Belostock, hoje Bialystock, na fronteira oeste do império tsarista, atualmente em território da Polônia. Estudou música, medicina e fez experiências com gravação e montagem de som. Impressionado pelo futurismo adotou o apelido de Dziga Vertov. Vertov derivando do verbo russo girar. Dziga sendo o nome de uma tampa giratória, além do termo ucraniano para cigano. Cigano rodopia poderíamos chamá-lo, portanto.
Não teve vida fácil. , hoje um clássico, foi mal recebido na União Soviético quando estreou, em 1929. Teria fracassado, assim como teria “fracassado na era do filme silencioso mostrando centenas de exemplos de esperteza artística em revirar: obras primas acrobáticas de quebra-cabeças poéticos, prestidigitação brilhante de associação cinematográfica – mas nunca um trabalho redondo, nunca uma linha clara sendo seguida. Seu grande esforço em relação ao detalhe nunca permitiu que tivesse fôlego para o todo. Seu arabesco encobriu totalmente seu plano de base, suas fugas destruíram todas as melodias.” (reproduzido em A History of the Russian and Soviet Film de Jay Leyda).
Tendo morrido moço, escreveu em “Sobre minha doença”, de 1934, que começou a trabalhar no filme Três canções sobre Lenin “enquanto estava sofrendo perseguição feroz do departamento de cinema da RAPP (Associação russa de escritores proletários) […] acompanhada por uma série de humilhações, insultos, por deliberada falta de consideração, zombaria, picadas de mosquitos dadas por várias pessoas perigosas e sem princípios. Tive que me controlar, controlar meus nervos, suportar tudo internamente, aparentando serenidade e compostura.”
“Minha doença”, escreve Vertov, “foi resultado de uma série de golpes dados no meu sistema nervoso. Sua história é de ‘aborrecimentos’, humilhações, e choques nervosos relacionados à minha recusa em desistir de trabalhar em filmes documentários poéticos. Quando a luta por Três canções sobre Lenin tinha terminado, a doença estava patente externamente na perda, devida aos nervos, de vários dentes saudáveis e fortes.”
A saúde de Vertov melhorou e ele obteve autorização formal para continuar fazendo filmes documentários poéticos, mas as causas dos “choques” persistiram, devidas ao fato, dito a ele, que “eles não gostam de você”.
Isolado, tendo seus projetos recusados nas décadas de 1940 e 1950, Vertov ficou sem saída. A burocracia stalinista o venceu e ele se foi aos 58 anos, vindo a ser chamado, por Annette Michelson, de “o Trotski do cinema”.
Ver, ler e comentar os filmes de Dziga Vertov é uma modesta forma de reagir a essa tragédia.
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Confira a programação completa do É Tudo Verdade 2013