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Dziga Viértov – escritos do homem com a câmera

Livro organizado por Labaki traduziu do russo noventa textos do cineasta

Eduardo Escorel | 23 mar 2022_09h01
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David Ábelevitch Kaufman (1896-1954) “russificou” seu nome, passando a se chamar Denis Arkádevitch Kaufman por volta de 1918-1919, “prática comum entre cidadãos de origem judaica no contexto do violento antissemitismo que marcou as primeiras décadas do século XX na Rússia”. A citação é da nota de rodapé da página 31 do admirável Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos, de Dziga Viértov, recém-publicado pela Editora 34. Luis Felipe Labaki escolheu, organizou e traduziu direto do russo os noventa textos reunidos nas 704 páginas do volume, além de ter escrito a apresentação e as notas. Só não qualifico o livro como “extraordinário” para não repetir o adjetivo correto usado por Ismail Xavier no texto da orelha. Trata-se, sem dúvida, de uma proeza intelectual assombrosa com a qual Labaki eleva a cultura cinematográfica no Brasil a um novo patamar de excelência.

Capa do livro – Foto: Reprodução

O famoso pseudônimo de David Kaufman – Dziga Viértov, conforme a grafia que Labaki propõe em vez da usual Vertov, teria origem na palavra ucraniana para pião, dziga, e no verbo vertiét que significa girar ou rodar.

Ao comentar, em 2019, o primeiro volume de Dziga Vertov Life and Work, Volume 1: 1896-1921, biografia definitiva de John MacKay, traduzi do inglês a versão resumida, publicada por MacKay, de um texto pouco conhecido de Viértov, “Ele e Eu”, que até 2018 havia sido traduzido apenas para o alemão: “Cineasta iniciante, com 26 anos na época da publicação, [Viértov] demonstra já estar cindido, vivendo o drama com o qual iria conviver até o final da vida, em 1954. [Lidara] desde cedo com a burocracia cinematográfica da União Soviética e, mesmo tendo feito filmes laudatórios ao regime e a seus dois principais líderes – Lênin e Stálin –, foi relegado ao ostracismo a partir do final da década de 1930.” (https://piaui.folha.uol.com.br/ele-e-eu-dziga-vertov-em-apuros/)

Se me permito essa referência a algo que escrevi, presunção pela qual peço a indulgência dos leitores, é apenas para destacar um pequeno exemplo dos benefícios resultantes da publicação de Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos – passamos a ter não apenas a versão completa de “Ele e Eu” (texto 6) traduzida direto do russo, mas a possibilidade de conferir as diferenças que há com a tradução parcial do inglês.

Frente à dificuldade de fazer a merecida resenha completa do livro de Viértov, traduzido e organizado por Labaki, dado seu tamanho e a diversidade dos textos incluídos, de um lado e, de outro, o tempo disponível para escrever esta coluna, com relação específica a Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos vou me ater aqui a destacar alguns dos comentários de Viértov sobre seu alter-ego, feitos em “Ele e Eu”, mas omitidos por MacKay.

O primeiro trecho omitido se refere aos embates iniciais, e decisivos ao longo da carreira de Viértov, com a burocracia estatal soviética encarregada do cinema:

“Ele filma crônicas por encomenda. Ele também está encarregado de registrar eventos políticos.

Com considerável habilidade, ele extrai do que foi filmado o material para a sua Kino-Pravda [Cine-Verdade], utiliza toda sua astúcia para vencer os obstáculos no trabalho e lançar o cine-jornal dentro do prazo.

Eu lembro de sua raiva e irritação quando o proibiram de filmar o veredicto no processo [dos S-R], apesar de dois dias de esforços e de vigília noturna…”

Na nota 46, Labaki esclarece que o processo mencionado é o dos Socialistas Revolucionários, “principal evento político do verão de 1922”.

Outro trecho, também deixado de lado por MacKay, comenta a expectativa de o Kino-Pravda ser colocado “sob os auspícios do governo”:

“… Tal apoio econômico por parte do governo ao único jornal cinematográfico da RSFSR [República Socialista Federativa Soviética da Rússia] daria a ele a possibilidade de atrair os trabalhadores-correspondentes de que precisamos aqui e no exterior, desataria suas mãos quanto à escolha dos temas. A ‘NEP’ [Nova Política Econômica] diz: filme onde pagam. O filme Castelo de Tamara (um restaurante com gabinetes confortáveis) é preferível a filmes sobre eletrificação.

E ele não pode concordar com isso.

Minha presença nele se expressa apesar de tudo no seu amor à máquina e suas manifestações, à eletricidade, ao rádio. Gosto de como no Kino-Pravda ele sutilmente enterrou os enterros e paradas de grandes personalidades, tão indispensáveis às crônicas ‘Pathé’ e ‘Gaumont’…”

No manuscrito em folhas numeradas de 1 a 5, de 1953 (texto 90), que Labaki indica talvez ser um dos últimos escritos por Viértov, apesar de estar com apenas 56 ou 57 anos, ele demonstra não ter mais a personalidade esfuziante da mocidade:

“Houve um tempo, quando eu havia acabado de completar 20 anos, em que cheguei ao M.Gniezdnikóvski com a proposta de criar uma nova arte – a cinematografia documentária. Eu era então tanto um autor como um escritor, redator, administrador e montador, diagramador dos anúncios do jornal e até mesmo a pessoa que distribuía as cópias do jornal pelos principais cinemas, e eu fazia tudo isso simultaneamente, uma vez que não havia quem o fizesse. Mas, desde 1918, se passaram 35 anos. Hoje já não posso violentar minha idade. Agora é preciso fazer uma coisa só, única. Não se desconcentrar.”

Deixando de celebrar a publicação de Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos, evoco a trajetória que levou Viértov a se estabelecer em Kiev entre 1927 e 1931, neste momento em que a invasão russa da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro, completa um mês. Foi lá que ele encontrou condições favoráveis para terminar O homem com a câmera (1929), após ter feito O décimo primeiro ano (1928) e antes de realizar Entusiasmo: Sinfonia de Donbass (1930), os três filmes produzidos pela VUFKU (Diretoria Pan-Ucraniana de Fotografia e Cinema). Segue-se, então, um breve perfil biográfico de Viértov, baseado principalmente no primeiro volume de MacKay.

‘O homem com a câmera’ – Foto: Reprodução

Em 1896, quando David Kaufman, futuro Dziga Viértov, nasceu em Bialystok, a cidade ficava no Império Russo. Hoje está localizada no nordeste da Polônia, próxima à fronteira com a Belarus. O pai de David, Abel Kushelevich Kaufman, era dono de uma livraria especializada em livros russos, franceses e alemães, além de literatura infantil. Em setembro de 1893, Abel fez uma petição ao governador da região para ser autorizado a vender também livros em hebraico, uma vez que dois terços da população de Bialystock eram judeus.

Em junho de 1906, quando David tinha 10 anos, cerca de duzentas pessoas foram mortas durante três dias de pogrom, muitas na Rua Nikolaevskaia, onde ficava a livraria de Abel. Houve também cerca de 700 feridos e pelo menos 169 lojas foram pilhadas e destruídas. Segundo MacKay, “o pogrom foi de selvageria extraordinária até para os padrões de eventos semelhantes, e na extensa cobertura mundial dos jornais, relatos escandalizados sobre pessoas atiradas de janelas, línguas amputadas, unhas socadas nos olhos e pernas serradas deram pungência adicional às descrições nessa altura conhecidas de surras, estupros e tiros”.

A família Kaufman continuou a morar em Bialystock, mesmo após o pogrom. David só mudou para Petrogrado (hoje São Petersburgo) em 1914, onde foi estudar no Instituto Psiconeurológico, “uma das instituições de ensino superior mais importantes e inovadoras da Rússia”. Após o intenso bombardeio alemão de Bialystock, iniciado em abril de 1915, “antecipando a ocupação em agosto, mas motivados principalmente pela política de terra arrasada antissemita do Exército russo”, com centenas de milhares de refugiados de guerra, a família Kaufman foi de trem para Petrogrado, onde estava instalada no outono de 1915. Os Kaufman se mudaram para Moscou antes do verão de 1917 e voltaram para Bialystock entre 1917 e 1920.

David foi convocado, no outono de 1916, para integrar a divisão musical da escola militar de Chuguev, na Ucrânia. Após a abdicação do Tsar da Rússia em fevereiro de 1917, David está em Moscou com a família. Começa, então, o período que vai até 1922, em que “Dziga Viértov (em vez de David Kaufman) iria se tornar um importante, embora ainda não renomado participante em uma, até o momento, embrionária cultura cinematográfica soviética.” Nesses cinco anos, os cine-jornais e filmes de Viértov foram produzidos por comitês, departamentos e órgãos estatais. A partir de então, e até 1926, seus filmes passaram a ser produzidos pelo Goskinó (órgão estatal central responsável pela administração do setor cinematográfico) e o Sovkinó (órgão criado em junho de 1924 como uma sociedade por ações, com o objetivo de centralizar a produção e exibição de filmes na Rússia soviética). A tradução das siglas, além das funções desses produtores, provém de Labaki.

No final de 1926, demonstrando saber que estava para ser demitido da Sovkinó, Viértov escreveu carta ao editor do Pravda, pedindo aos demais jornais que a reproduzissem, em que diz, entre outras coisas:

“[…] Até onde sei, antes de um homem ser enforcado lhe é pedido para ficar de pé sobre uma cadeira ou um banco. Aí o banco é puxado de debaixo dos seus pés. Polidamente. Gentilmente. Não é tão fácil assim me enforcar, mas preciso perguntar por que o Camarada Tráinin [chefe da Sovkinó] está projetando suas ‘perspectivas’ tão longe no futuro. […]” Essa carta está em Yuri Tsivian, Lines of Resistance Dziga Vertov and the Twenties, 2004.

Contrariando sua previsão, Viértov não demorou a ser enforcado. Em janeiro de 1927 havia sido demitido. A justificativa do Conselho da Sovkinó para a demissão, publicado também em Lines of Resistance Dziga Vertov and the Twenties, é um documento que vale a pena conhecer:

“[…] O Conselho considera que o cinema não é apenas uma arte, mas uma indústria que requer planejamento e contabilidade financeira rigorosa. Vertov não seguiu um plano, ele trabalhou sem roteiro, e apesar de nossos reiterados pedidos não forneceu um roteiro ou um plano de filmagem, anunciando que o ‘sucesso’ de A sexta parte do mundo [de 1926] o autorizava a trabalhar sem um roteiro ou planos. […]

O Conselho da Sovkinó, após um mês e meio de negociações com Vertov, foi forçado a estipular uma condição para Vertov: ou ele apresentava um plano para a filmagem de O homem com a câmera, ou ele podia se considerar livre de todos os compromissos com relação à Sovkino.”

Viértov refutou com firmeza as alegações da Sovkinó e se transferiu para a Ucrânia, onde, depois de fazer O décimo primeiro ano (1928), concluiu O homem com a câmera, iniciado ainda em Moscou, tendo chegado a escrever, em 1927, que “já estava 50% pronto”. (“Sobre Minha Demissão”, Texto 31, em Cine-Olho: manifestos, projetos e outros escritos). Duramente criticado, após estrear o filme sumiu rapidamente das telas soviéticas. John Grierson escreveu que “não é um filme de maneira alguma: é um álbum de instantâneos” (íntegra em Tsivian). Passadas algumas décadas, porém, O homem com a câmera veio a ser considerado em âmbito mundial a obra-prima definitiva de Dziga Viértov.

*

Na próxima e 27ª edição do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade, de 31 de março a 10 de abril, A História da Guerra Civil (1921), de Dziga Viértov e Nikolai Izvolov, inédito no Brasil, será exibido na mostra Clássicos É Tudo Verdade. Considerado perdido, o filme de 94’ foi recuperado por Izvolov durante dois anos e exibido pela primeira vez em um cinema no IDFA – Festival Internacional de Filmes Documentários Amsterdam, em 2021, onde foi acompanhado de música ao vivo. Exibido antes apenas uma vez no Congresso Mundial da Comintern, em 1921, enquanto podia ser visto ao mesmo tempo do lado de fora pelos passantes, A História da Guerra Civil inclui cenas de líderes bolcheviques como Leon Trótski, Ivar Smilga, Fidor Raskolnikov e Sergo Ordzhonikidze — vítimas dos expurgos stalinistas. No IDFA, o filme foi apresentado por Orwa Nyrabia, diretor artístico do Festival, como um triunfo do cinema, vencendo a censura: “Esperemos que o cinema viva mais do que a censura, e não o contrário”, Nyrabia reiterou.

Escrevendo no site Business Doc Europe, o jornalista Kees Driessen considerou a apresentação de A História da Guerra Civil “um triunfo sobretudo arquivístico. Da redescoberta do que parecia perdido. Da luta contra o tempo, contra o desaparecimento, contra o esquecimento. E contra as forças que continuam a pressionar por cortes nos orçamentos culturais sempre que têm oportunidade. Que maravilhosamente apropriado, pois estrear essa restauração no [cinema] Tuschinski, [em Amsterdam], ele próprio inaugurado em 1921, e portanto tão antigo quanto o filme de Vertov, também recentemente restaurado. Com o seu sentido partilhado de significado histórico, de salvaguarda dos artefatos culturais para as gerações futuras, foi o local perfeito para a redescoberta de A História da Guerra Civil.” (Íntegra disponível em https://businessdoceurope.com/idfa-on-stage-review-the-history-of-the-civil-war-1921-by-dziga-vertov/ .)

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