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    Colar de unhas de tatu-canastra da tribo Bororo; estatueta de cerâmica Karajá; adornos do grupo Tukano do fim do século XIX; três objetos da área de Antropologia do Museu Nacional, destruída pelo incêndio / REPRODUÇÃO/MUSEU NACIONAL

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“É como se fôssemos extintos novamente”

Índios de quatro etnias correm da Aldeia Maracanã até o Museu Nacional para tentar salvar do fogo registros de linguagem e cantos falados por tribos desaparecidas

Camila Zarur | 03 set 2018_22h02
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Assim que avistaram as chamas no Museu Nacional, indígenas da Aldeia Maracanã correram até o prédio histórico da Quinta da Boa Vista, na Zona Norte do Rio de Janeiro, a dois quilômetros dali. Foram a pé até o prédio, que àquela altura era consumido pelo fogo. Eles eram historiadores e pesquisadores da cultura dos povos originários do Brasil e passaram boa parte dos últimos anos debruçados sobre o acervo do museu. Ao se deparar com os portões trancados, os seis indígenas saltaram as grades e se aproximaram da fachada. Acompanharam de perto a destruição de parte significativa da história de seus povos e do Brasil. Pouco ou nada restou do Centro de Documentação de Línguas Indígenas, o Celin, que preservava referências de povos indígenas documentadas há pelo menos duzentos anos. As línguas faladas por tribos extintas, os cantos, os discursos de seus líderes – agora, perdidos.

Era o que temiam os índios que viram da aldeia o fogo no museu. Um deles, o historiador Daniel Tutushamum Puri, de 42 anos, assistia em silêncio às labaredas que consumiam objetos, fotografias e registros orais de seu povo, os puri, considerados extintos pela Fundação Nacional do Índio. “O material que estava ali servia de base para pesquisas do nosso povo e de muitos outros povos nativos do Brasil. Era uma forma de ter reconhecida nossa cultura e afirmar nossa existência. Sem eles, é como se fôssemos extintos novamente”, disse Tutushamum, que é mestre em Educação pela USP.

Entre os itens do centro de documentação de línguas estava, por exemplo, o mapa original étnico-histórico-linguístico feito na década de 40 pelo etnólogo alemão Curt Nimuendajú, que indicava a localização de todas as etnias dentro do território nacional. O arquivo que leva o nome do pesquisador era um dos mais importantes do país e reunia dados coletados e analisados desde o início do século XX. Agora destruído, o Celin também reunia, além do acervo sonoro com fitas cassetes e de rolo, uma coleção visual com material fotográfico de centenas de tribos do Brasil e de outros países da América Latina ao longo de séculos. 

A seção dos estudos das línguas indígenas ficava no terceiro andar do museu. No momento em que os índios pesquisadores chegaram, o fogo já destruía teto e piso de madeira, o que tornava impossível a entrada de qualquer pessoa para tentar resgatar algum material. Pelas grandes janelas da fachada via-se o desabamento de partes do teto. O piso de madeira do palácio ardia. Tutushamum abraçava a mulher, Mery Nancy Txama Shambé, estudante de História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Outro pesquisador do centro de linguística indígena do Museu Nacional, José Urutau Guajajara, de 57 anos, não escondia a revolta, e repetia que o incêndio, no começo, podia ter sido apagado com um balde d’água. “Isso é a morte da memória dos povos originários, uma negligência com o nosso patrimônio. A memória de todas as línguas da América Latina estava aqui, tínhamos registros sonoros e escritos de povos que já não existem. Estamos vendo a cultura indígena sendo apagada. Uma perda irreparável”, disse Urutau Guajajara, mestre em Linguística e Língua Indígena pela UFRJ. Integrante da tribo Tenetehara-Guajajara, Urutau fez sua tese sobre a estrutura do ze’egté, sua língua ancestral, no Museu Nacional.

Reprodução do mapa étnico-histórico-linguístico, do etnólogo alemão Curt Nimuendaju; o original foi destruído

 

O departamento de Antropologia era outro braço do Museu Nacional que estudava e documentava a cultura dos povos originários. Destruído pelo incêndio, o acervo do setor contava com 130 mil itens. Sem ainda poder precisar a quantidade de artefatos de povos indígenas perdidos, funcionários do setor e pesquisadores independentes criaram uma lista para medir as perdas. Ao longo do dia, atualizaram a planilha, intitulada “O que os povos indígenas perderam com o incêndio”, com as informações que lembravam ou tinham anotadas sobre itens do acervo. Não havia um catálogo online das coleções, e os computadores do departamento foram destruídos.

Entre as peças listadas na planilha estava uma das máscaras da tribo tikuna – uma das etnias retratadas pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret entre 1816 e 1831, publicadas no livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Havia ainda uma trombeta feita a partir de um crânio humano, junto com bambu, fibra vegetal e resina, decorada com penas de araras e pato. O exemplar, que acredita-se pertencer aos povos Yudja e Juruna, do Mato Grosso, foi uma doação de Dom Pedro II ao museu. Um colar de unhas de tatu-canastra coletado da Comissão Rondon entre os Bororo, em 1923, também faz parte da coleção. Ele estava no catálogo desde 1924. As imagens que abrem esta reportagem também estavam na planilha atualizada pelos pesquisadores.

Duas horas depois do início do incêndio, por volta das 21h30, o grupo de indígenas pesquisadores decidiu voltar para a aldeia. Decidiram sair, para não correr o risco de ver o prédio ir ao chão. A essa altura, o primeiro museu do país, o antigo Palácio de São Cristóvão, que serviu de residência à família imperial brasileira no século XIX, era quase totalmente destruído pelo incêndio. Ainda não há um levantamento sobre o que foi salvo das centenas de milhares de itens do que era um dos mais ricos acervos em ciências naturais e antropológicas da América Latina.

Na manhã seguinte ao incêndio, houve um ato em frente à Quinta da Boa Vista, em protesto e luto pela tragédia. Tutushamum e Urutau não quiseram ir. Ficaram na Aldeia Maracanã, de onde avistavam o esqueleto enegrecido do prédio histórico. “Esse incêndio foi uma catástrofe a toda memória dos povos indígenas, mas não foi o primeiro golpe que levamos”, disse Urutau à piauí, enquanto tomavam o café da manhã na ocupação. Em 1967, relembrou o pesquisador, sete andares do prédio do Ministério da Agricultura, em Brasília, pegaram fogo. Lá constavam diversos documentos do Serviço de Proteção a Índio, o SPI, e registros indígenas.

A própria aldeia é um “símbolo da violência contra os índios”, comentou Urutau. Em 2013, os índios que viviam no local foram desalojados pelo governo do Rio. A intenção era que o local, onde fica a sede do primeiro prédio do SPI e que abrigou o antigo Museu do Índio, se tornasse um estacionamento para o Estádio do Maracanã. Desde então, os indígenas que continuam na aldeia tentam recuperar o espaço. “A sensação é que nos odeiam”, disse Tutushamum. “É mais uma destruição para a nossa cultura. Temos a destruição das nossas línguas, dos nossos costumes, das nossas terras e até mesmo dos nossos indivíduos. Então, esse incêndio no Museu Nacional parece parte da mesma agressão. É o que a gente sente.”

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Indígenas que ocupam a Aldeia Maracanã reunidos após o incêndio no Museu Nacional; ao avistar o fogo na noite anterior, eles foram a pé até o prédio em chamas

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