Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, avisa na sequência de abertura que não vai ter happy end. A advertência, na voz de Tom Zé cantando Happy End, de sua autoria com Antônio Pádua, começa no início dos créditos e prossegue, após o título do filme, em imagens do Recife em preto e branco, na década de 1920 – o Farol da Barra e navios cargueiros, trilhos à beira mar, a praia e uma corrida de automóveis. Os versos finais da canção dizem: “…Pra mim não tem jeito/Não tem beijo final/E não vai ter happy end/ E não vai ter happy end/E não vai ter happy/E não vai ter happy end/E não vai ter happy/E não vai ter…”
A narração monocórdica do próprio diretor descreve, em seguida, a fotografia de Alcir Lacerda, da década de 1960, na qual além da praça da Igreja de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife, se vê também o Hotel Boa Viagem, demolido nos anos 2000. “A praça mudou muito”, comenta o narrador. Afirmação comprovada por dois planos coloridos de prédios, alguns deles arranha-céus, que cercam a igreja. É nessa área da cidade que Mendonça Filho diz que sua “pequena família” veio morar na década de 1970, “a 250 metros da praia… onde antes era mangue”.
A forma e o tema de Retratos Fantasmas são definidos com precisão nos 2min34seg dessa abertura – o que se verá depois, no decurso central do filme, é um lamento cinematográfico, como o de certas canções medievais trágicas, em que o habitat urbano do Recife e a vida de seus habitantes são apresentados como resultantes de terríveis forças destruidoras perenes.
Dividido em três partes, a primeira trata do período de quarenta anos, passado no apartamento do Setúbal, durante o qual Mendonça Filho diz ter começado a fazer filmes e foi aprendendo “como o tempo vai alterando os lugares”. Autobiografia, referências aos seus próprios filmes e uma espécie particular de observação etnográfica se destacam nesta e na segunda parte, dedicada aos cinemas do Centro do Recife.
O documentário lança mão de inúmeros registros visuais de diversas procedências, feitos em múltiplos suportes com câmeras variadas. Esse conjunto heterogêneo forma um mosaico amplo de planos muito bem articulados pela montagem de Matheus Farias.
O que vemos em Retratos Fantasmas é o lento, mas implacável processo de transformações destruidoras e fora de controle, ocorridas ao longo de décadas, que incluem ameaças à vida humana e às edificações. O perigo real é indicado em referências a tubarões e à ação de cupins que adquirem conotação simbólica. Na parede do apartamento da família, um cartaz avisa: “Bathers in this area are at a greater than average risk of shark attack” (Banhistas nesta área correm risco acima da média de ataques de tubarão); outro, em português e inglês, está adiante em cena incluída em O Som ao Redor (2012): “Perigo/Área sujeita a ataques de tubarão.” Quanto aos cupins, tomaram a casa dos vizinhos, contaminaram o prédio e o apartamento onde Mendonça Filho morou e “foram parar em Aquarius” (2016), conforme ele esclarece na narração.
A terceira parte de Retratos Fantasmas, dedicada às Igrejas e ao Espírito Santo é, de certa forma, um desdobramento da anterior, embora mais sociológica e menos vinculada à experiência pessoal do realizador. A capela anglicana da Santíssima Trindade ou igrejinha dos Ingleses, construída em 1838, chegou a ser destruída. Em seu lugar foi erguido, em 1952, o luxuoso cinema São Luiz e o prédio acima dele. Mas o que prevaleceu a partir do final dos anos de 1980 foram “cinemas que morreram e voltaram como templos”, sinal da “tomada do poder dos evangélicos”, afirma o narrador. Constatação verdadeira, mas que já se tornou lugar comum.
Um epílogo ficcional coroa Retratos Fantasmas com cerca de seis minutos preciosos que contradizem, de certa forma, o aviso feito na abertura de que não haveria happy end. Kleber Mendonça Filho, no papel do passageiro de táxi, engana o aplicativo para ter o direito de escolher o itinerário para casa. O rolé passa por uma sucessão de farmácias e supermercados enquanto o motorista (Rubens Santos, em atuação marcante) demonstra seus superpoderes.
Ao menos no que diz respeito ao filme em si, pode-se dizer que Retratos Fantasmas tem sim um final feliz.
“Quase todas as grandes cidades têm um cineasta específico com o qual têm uma ligação simbiótica – Roma tem Fellini, Nova York tem Allen e Tóquio tem Ozu. No caso do Recife, a cidade histórica foi captada algumas vezes por Kleber Mendonça Filho, que fez vários filmes ambientados em sua cidade natal, sendo o mais recente talvez o exame mais sincero da cidade em que atingiu a maioridade.”
Começa assim a crítica de Matthew Joseph Jenner, publicada no site da ICS – International Cinephile Society, após a estreia de Retratos Fantasmas na Sessão Especial da Seleção Oficial, fora de competição, do Festival de Cannes, em maio deste ano. E Jenner conclui: “Uma meditação cativante e suavemente excêntrica que justapõe o passado e o presente com notável fluidez, Retratos Fantasmas é uma abordagem única de um conjunto particular de ideias, que Mendonça transmite através deste trabalho atraente que combina imaginação poética com envolvente narrativa não ficcional. Isso resulta em um dos filmes mais significativos do ano, realizado por um artista verdadeiramente engenhoso que demonstrou ser um cineasta contemporâneo de talento, mesmo quando sai de seu estilo usual e busca algo totalmente diferente, mas ainda tão profundamente ligado à sua identidade e curiosidade como um contador de histórias atento a detalhes e ao papel que cada um desempenha na identidade mais ampla de seu trabalho.” (A crítica completa de Jenner está disponível aqui.)
Retratos Fantasmas será exibido fora de competição, em 12 de agosto, na abertura do próximo Festival de Gramado, terá pré-estreia nacional dois dias depois no Cineteatro do Parque, no Recife, e lançamento simultâneo no circuito comercial, no Brasil e em Portugal, em 24 de agosto.