Dia 21 de 12 de 2012… : Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar…
Clique aqui para ouvir E o mundo não se acabou, Assis Valente, com Eliete Negreiros
Eu era menina. Papai um amante da cultura, da literatura, do samba. E eu fascinada por tudo isso, esse mundo que eu só podia imaginar ou ver um pedacinho pela janela de nossa casa ou quando íamos passear no centro da cidade, largo São Bento, onde era seu escritório de advocacia, no edifício Martinelli, naquela época o mais alto da cidade. Papai percebia o meu encanto pelo mundo lá fora e sempre que podia me pegava pela mão e me levava com ele, ou então, me mostrava músicas que falavam de uma vida que eu, desde aquela época, queria para mim. Tínhamos em casa, entre nossos discos, dois LPs, duas jóias raras, que escutávamos muito. Um era de Aracy de Almeida cantando Noel Rosa, com aquela capa do Di Cavalcanti. Foi assim que conheci Noel e Aracy, Feitiço da Vila, Pra que mentir, Palpite Infeliz, Conversa de Botequim, X do Problema. O outro, que eu adorava, era Marlene apresenta sucessos de Assis Valente. Na capa, Marlene com pinta de malandra, de lenço no pescoço. Aí conheci E o mundo não se acabou, Boas festas, Uva de Caminhão, Maria Boa, Recenseamento, que adorava cantar e contar aquela estória que parecia notícia de jornal ou de telejornal, Em mil novecentos e quarenta lá no morro começava o recenseamento e o agente recenseador… agente recenseador, que palavra difícil! E eu caprichava para articular direitinho, como a Marlene. Cantávamos o disco inteirinho, do começo ao fim, eu e minha mana Bete. Clique aqui para ouvir o disco.
Com Carmem Miranda, Assis Valente conheceu o primeiro de muitos sucessos, a marchinha de carnaval Good–bye, boy, em 1933. Mas o primeiro samba que Assis Valente compôs foi Tem francesa no morro, também em 1933 e gravado por Aracy Cortes. Diz Assis Valente: “Muita gente pensa que minha primeira música foi Good-bye, boy, mas não é verdade. Essa foi a terceira. Lembro-me do trabalho que tive para conseguir que Aracy Cortes gravasse minha primeira composição. Quando eu componho, aliás, já penso no artista que irá cantar a música. Isso aconteceu com Tem francesa no morro, que fiz especialmente para Aracy – a quem, por sinal, eu nunca havia sido apresentado. Quando consegui encontrá-la, depois de muita luta, ela pediu que eu cantasse o samba. Em seguida, pediu que o passasse no piano. Aí, mesmo sem olhar para mim, Aracy começou a rir com a letra e eu percebi que a coisa estava caminhando bem…”
Tem francesa no morro, com Aracy Cortes
Neste mesmo ano, Assis Valente conheceu Carmem Miranda, que iria impulsionar sua carreira de sambista e transformá-lo rapidamente num compositor muito cantado e procurado. Ele a viu pela primeira vez cantando Sorriso Falso, de Cícero Almeida e ficou encantado, imaginando como faria para se aproximar da cantora. Aí resolveu fazer um samba para ela e fez Etc., samba-exaltação, falando da Bahia. Carmem ouviu, gostou e gravou. A partir daí, estava selada uma parceira musical responsável por grandes sucessos da música popular brasileira.
Estimulado pelo entusiasmo que Carmem demonstrou pela sua canção, Assis fez outro samba para ela, Good-bye, boy
Good-bye,boy, (1933) com Carmem Miranda e Lamartine Babo
Em Good–bye–boy, Assis faz uma crítica bem humorada da mania do brasileiro em querer usar palavras em inglês: Good-bye, good-bye-boy/ Deixa a mania do inglês/ Fica tão feio pra você/ moreno frajola/ Que nunca frequentou/ as aulas da escola. Tem francesa no morro é ainda mais bem humorada, uma aula de antropofagismo, pois usando um francês abrasileirado – Donê muá si vu plê lonér de dancé aveque muá/ Dance Iôiô/ Dance Iaiá/ Si vu frequente macumbe/ Entrê na virada e fini por sambá, Assis devora o francês (e como era gostoso o seu francês!), despreza e debocha da francesa que vai no morro mas não sabe sambar: Si vu nê pà dancé/ pardon mon cherri, adiê, je me vá. Assis critica e goza do brasileiro, da francesa que quer sambar e não consegue, e do americano em Brasil Pandeiro – Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar. A crônica bem humorada é um dos traços do seu estilo, que está presente também, por exemplo, em E o mundo não se acabou, Uva de caminhão, Camisa Listrada.
José de Assis Valente teve uma existência conturbada e trágica desde seu nascimento, o que me faz pensar nas armadilhas destino e nos caprichos da fortuna que, a seu bel prazer, elege os felizes e os infelizes. Nascido na Bahia em 19 de maio de 1911, há dúvida quanto ao local exato de seu nascimento: foi em Salvador, no Campo da Pólvora? “Por isso é que tenho a pele queimada”, diria ele brincando numa entrevista. Ou “em plena areia quente, no caminho de Bom Jardim a Pateoba”, no município de Santo Amaro da Purificação? As duas versões são dele. Assim, sobre a sua infância e sobre toda a sua vida paira muito mistério, pois ele é o narrador da própria estória e, com humor e ironia, mistura os fatos reais com os da imaginação. Quando tinha seis anos de idade, um tal de Laurindo o tirou de sua família e o entregou para ser criado por uma família de classe média de Alagoinhas: “Eu trabalhava como um condenado durante a semana e, aos sábados, ia à tarde fazer a feira com a minha ‘patroa’. Ela colocava um enorme cesto vazio em minha cabeça e enchia com tudo que comprava, até eu ficar esmagado embaixo. Quando eu estava quase achatado, ela me mandava despejar em casa e voltar para encher de novo”. Na verdade, ele não foi criado por esta família, foi um criado dela. Mais tarde, os pais adotivos foram morar em Salvador e queriam deixar o pequeno pra trás: “Eu chorei e me peguei com meu avô”. O menino foi com eles para a capital baiana, mas, logo em seguida, o casal se mudaria para o Rio de Janeiro e deixaria o pequeno José para trás. Então, ele foi trabalhar num hospital como “lavador de frascos”, estudou desenho e escultura e fez um curso de prótese dentária. Assis, contudo, queria mudar de vida: sozinho, rejeitado, não resistiu quando certa vez o Circo Brasileiro chegou à cidade. Numa noite, ele entrou no picadeiro e declamou estes versos de sua autoria: Essa gente que é de circo/ é tal e qual passarinho/ que arma e desarma o ninho/ sem ter onde construir. Acho que era assim que ele se sentia. Deve ter se identificado com aqueles artistas nômades porque, quando o circo deixou a cidade, José foi com eles, como orador e comediante. Isso duraria um ano.
Provavelmente, foi em 1927 que ele foi para o Rio de Janeiro. Sempre muito talentoso, sensível e inteligente, seus desenhos foram publicados nas revistas Fon–Fon e Shimmy. Como protético, ele era ótimo: “O Assis não era um protético como eu e os outros. Era um artista. Tinha o dom”, disse um amigo.
Dois encontros seriam fundamentais para a vida do futuro grande sambista. O primeiro foi em 1932, quando conheceu Heitor dos Prazeres, pintor e sambista, que ficou impressionado com a facilidade de Assis para fazer versos, o incentivando e aproximando do mundo do samba. O segundo foi com Carmem Miranda.
Durante a década de 30 e o início da de 40, Assis Valente torna-se um dos maiores compositores brasileiros, gravado por grandes intérpretes. Além de Carmem Miranda, Orlando Silva, Marlene, Carlos Galhardo e Bando da Lua cantaram suas músicas.
Em 1935, foi a vez do sucesso de Minha embaixada chegou.
Minha embaixada chegou faz parte da trilha sonora do filme Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues, com Nara Leão, Maria Bethânia e Chico Buarque:
Como disse Jairo Severiano em Uma história da música popular brasileira, “… Assis mostra-se na maioria de suas 154 composições gravadas um comentarista irônico e espirituoso de fatos e costumes. Em Camisa listrada, por exemplo, o focalizado é um doutor que no carnaval livra-se do anel e das preocupações para cair na brincadeira vestido de mulher. Outra de suas personagens pitorescas é a moça retratada em E o mundo não se acabou, que, ouvindo dizer que o mundo ia se acabar, foi tratando de aproveitar os últimos momentos, beijando a boca de quem não devia, pegando na mão de quem não conhecia e dançando um samba em trajes de maiô. Mas, paralelamente ao cronista bem humorado, ele era também um exaltado propagandista de seu país. Prova isso o original Brasil pandeiro, um samba ufanista e, de certa forma, diferente de outras composições do gênero: Salve o morro do Vintém/ pendia a Saia, eu quero ver/ eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar”
No início de 1941, Assis Valente casou-se, mas, apesar de seu casamento não durar muito, teve uma filha, Nara Nadili.
Se a década de 30 marca o esplendor de Assis Valente, a de 40 marca o início de sua queda, que será vertiginosa. Quando seus sambas e marchas deixaram de ser procurados, Assis se desesperou. Contraiu dívidas, foi mais uma vez abandonado, agora pelos intérpretes pelo e público, e entristeceu, chegando a tentar se suicidar. Em 13 de maio de 1941, atira-se do Corcovado, mas fica preso a um galho e é resgatado por bombeiros. Em 10 de março de 1958, tenta novamente o suicídio, e desta vez perdemos nosso grande artista. Em um de seus últimos sambas – Lamento – ele profetizara: Felicidade afogada morreu/ A esperança foi ao fundo e voltou/ Foi ao fundo e ficou. No seu bolso, foi encontrada uma carta que terminava assim: “Vou parar de escrever, pois estou chorando de saudade de todos e de tudo.”
Assis Valente partiu e nos deixou suas canções geniais. Ele soube como ninguém retratar o espírito folião do brasileiro. Criou personagens inesquecíveis, relatou costumes da sociedade da época e também foi um poeta universal, falando de temas que ainda hoje são atuais. Criou um hino brasileiro de natal – Boas festas. E, por uma de suas obras-primas, Uva de caminhão, Assis Valente pode ser considerado um precursor do Tropicalismo. Nessa canção, impera o nonsense bem humorado. Ele usa um procedimento caro aos tropicalistas: a colagem, a montagem de fragmentos diferentes compondo um mosaico carnavalizante, uma geléia geral de termos, personagens, lugares e músicas: “Uva de caminhão é o poeta inventariando uma realidade caótica, onde de repente surgem Branca de Neve e os sete anões, farreando na pensão de Dona Estela…” (Assis Valente, Música Popular Brasileira, vl 14, Abril Cultural, 1970)
Bom, e por falar na atualidade de Assis Valente, vamos chegando ao fim do ano, mas não ao fim do mundo, como muita gente por aí andava anunciando
E o mundo não se acabou, (1938) Assis Valente com Carmem Miranda
Boas festas a todos e Good-bye-boy! Até 2013!