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E se estivermos variolizados?

O uso disseminado de máscaras pode expor a população a quantidades minúsculas de Sars-CoV-2 e aumentar a proporção de casos assintomáticos de Covid-19?

| 25 set 2020_16h01
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No 51º episódio do podcast Luz no fim da quarentena, José Roberto de Toledo e Fernando Reinach falaram sobre uma carta que especula que a exposição das pessoas a pequenas quantidades do Sars-CoV-2 pode produzir uma espécie de vacina. Ouça o episódio completo aqui.

José Roberto de Toledo: Variolização. Esse palavrão causa polêmica há séculos e precede a ciência como a conhecemos hoje. Desde a antiguidade, hindus, chineses e egípcios tentam prevenir uma doença grave inoculando nas pessoas uma versão atenuada dessa mesma doença. É uma prática muito anterior ao desenvolvimento das vacinas e sempre é contestada, porque pode matar o paciente. O debate voltou graças a uma carta de dois professores de medicina da Universidade da Califórnia publicada no New England Journal of Medicine

Eles levantam a hipótese de que a variolização está acontecendo naturalmente durante a pandemia de Covid-19, graças ao uso disseminado de máscaras. Como as máscaras do tipo N95 impedem que a maior parte do coronavírus chegue à garganta de quem as usa, os autores da carta especulam que podem estar se multiplicando os contágios por uma quantidade mínima de Sars-CoV-2, e que provoca uma forma assintomática da Covid. Eles dão uma série de exemplos onde isso teoricamente teria acontecido. Em navios, por exemplo.

Fernando Reinach explica que não é bem assim.

Hoje vamos falar de uma palavra que, eu confesso, nem sabia que existia, chamada variolização. É uma hipótese que foi lançada por dois médicos numa carta para o New England Journal of Medicine, na qual eles especulam que a exposição das pessoas a pequenas quantidades do vírus filtrada pelas máscaras pode produzir uma espécie de vacina.

Não é exatamente uma vacina, mas uma forma assintomática da doença, o que explicaria a diminuição da letalidade, entre outras coisas. Reinach explica direito para a gente, muito melhor do que eu fiz nessa introdução. Do que se trata, qual é o ponto de vista que a Mônica Ghandi e George Rutherford estão defendendo no New England Journal of Medicine?

Fernando Reinach: Isso é uma coisa interessante, porque, em todas as conversas aqui, a gente sempre fala sobre descobertas científicas. São coisas que passaram por revisão dos pares, uma descoberta, um dado sólido.

José Roberto de Toledo: E tem um experimento.

Fernando Reinach: O que também existe nas revistas científicas é a divulgação de ideias. Quer dizer, o cara fala: “Será que a realidade não é assim?”, como Galileu falou: “Será que não é a terra que vive em torno do Sol?” Primeiro você tem a ideia, e depois você vai fazer os experimentos ou vai tentar ver se aquela ideia é verdadeira ou não. Então esse trabalho expõe uma ideia interessante que eu já ouvi de várias pessoas que me escreveram.

A ideia é basicamente o seguinte: será que se eu for infectado com uma quantidade muito pequena de Sars-CoV-2, muito pequena mesmo, eu não vou ter uma infecção muito mais leve, talvez até assintomática? E como é que eu poderia ser infectado por essa quantidade muito pequena?

José Roberto de Toledo: Quer dizer, isso é menos vírus por pessoa.

Fernando Reinach: É. Uma coisa é você dar um beijo na boca de uma pessoa infectada. Outra coisa é uma pessoa infectada respirando, passa pela máscara dela um pouquinho de vírus, passa pela tua, e entra um pouquinho de vírus na sua boca.

Esse conceito – de que quando você tem doses menores de vírus a doença é menos séria – é um conceito controverso em virologia. Primeiro porque tem muito poucos experimentos em seres humanos. Mas tem evidências em animais, em que você vai diminuindo a dose do vírus e a doença fica mais fraca. Isso tem a ver com um conceito que é o LD50 (Lethal Dose 50%). Ele é aplicado para venenos, moléculas não vivas, como arsênico, e qualquer substância química.

Como é que você mede a letalidade ou a gravidade de uma infecção? Você usa esse número LD50. Funciona assim: eu vou pegando uma população de ratos, por exemplo, e vou dando doses crescentes do veneno. Quando eu dou uma dose muito pequena, não acontece nada com ninguém. Eu vou aumentando a dose, vou aumentando, aumentando, e começa a morrer um rato, depois morrem dois, na dose maior morrem dez. Aumento a dose e morrem não sei quantos. Até que chega numa dose que morrem cem por cento dos ratos. 

A LD50 é a dose necessária para matar 50%dos ratos, não 100%. Tem LD50 para tudo, tem LD50 para água, tem LD50 para cloreto de sódio, tem LD50 para venenos muito fortes. Quanto menor a LD50, mais tóxica é uma substância. Então uma substância que, com alguns microgramas, eu mato 50% das pessoas que tomaram, aqueles microgramas são um veneno fortíssimo. Então, esses dados do LD50, você pode aplicar para vírus.

Vou pondo um pouquinho de vírus, vou pondo mais e vejo o resultado. Por que esse é um conceito complicado para vírus? Porque o vírus se reproduz no corpo. Teoricamente, um único vírus entrou na sua boca e ele se reproduz, vai se dividindo e acaba te matando. Porque a dose de vírus vai aumentando sozinha, o vírus é um ser vivo. Enquanto uma dose de veneno, não, aquilo que você deu é aquilo que você deu, e aquilo que você ingeriu é aquilo que você ingeriu.

José Roberto de Toledo: Fiquei curioso com esse termo variolização, ele vem da palavra varíola. Era uma prática que existia no século XIX, de você dar uma dose pequena para desenvolver uma forma mais branda da doença e a pessoa evitar pegar a forma pior. É o famoso mal menor.

Fernando Reinach: Exatamente. Mas, no caso da varíola, eles usavam um vírus atenuado. Em geral, uma varíola de vaca. Por isso se chama vacina, porque vem de uma varíola de vaca. E depois teve também a tentativa de usar doses pequenas da própria varíola. Então tem vários experimentos que suportam que, em alguns sistemas de vírus e infecções virais, você consiga esse efeito. Você tem que pensar que a infecção pelo vírus é uma corrida que tem dois corredores: um é o vírus e o outro é o sistema imune. Ao infectar, o vírus começa a se reproduzir, e o sistema imune percebe que o corpo foi invadido. Ele começa a reagir, e o vírus começa a se reproduzir também, enquanto isso o sistema imune reage. Então você sara na hora em que a corrida é ganha pelo sistema imune. O sistema imune reage muito rápido, produz muito anticorpo e acaba com o vírus. Se o vírus ganha a corrida, você morre.

A ideia é que, se você começar com muito pouco vírus, você tem mais tempo e mais chance de ganhar.

José Roberto de Toledo: Isso já foi demonstrado em animais, né?

Fernando Reinach: É, foi demonstrado que a infecção é mais branda se você põe em doses menores e coisas desse tipo. Aqueles hamsters dourados.

José Roberto de Toledo: Já fizemos esse programa.

Fernando Reinach: Já falamos sobre os hamsters dourados. Então, o que esse trabalho está dizendo é que um possível efeito do uso de máscaras por todas as pessoas é que a máscara, como a gente já sabe, não segura todo o vírus, mas ela segura uma boa parte do vírus. Depende do tipo de máscara, depende de um monte de coisa. Mas que, na população, poderia acontecer uma coisa desse tipo. Quer dizer, as pessoas estão se infectando, mas estão se infectando com uma quantidade muito pequena de vírus. Portanto, isso gera mais infecções assintomáticas e as pessoas sem muitos sintomas acabam ficando imunizadas.

José Roberto de Toledo: E tem uma evidência, obviamente não definitiva, de que isso pode acontecer. Porque você tem experimentos naturais em que você compara os 40% de casos assintomáticos, que é o que é estimado que haja na população em geral, com alguns casos que chegam a 80% dos casos assintomáticos, justamente em populações que estavam num ambiente onde todo mundo usava máscaras.

Fernando Reinach: O truque desse tipo de trabalho: nessa carta ele tenta dar todos os argumentos que ele consegue encontrar em qualquer lugar para convencer as pessoas a fazerem o experimento. Então ele lista nesse trabalho, por exemplo, alguns abatedouros de animais onde o vírus se espalhou rapidamente por todo o mundo – tem abatedouros onde as pessoas usavam máscaras e não usavam máscaras. Onde eles não usavam máscaras há mais casos sintomáticos. Então se eles usavam máscaras, a maior parte dos casos era assintomática. Mas são comparações imperfeitas, porque pode ter um abatedouro de jovens num clima quente ou um abatedouro de velhinhos com comorbidades em outro lugar. Tem tanta coisa para complicar que é muito difícil.

José Roberto de Toledo: Eles dão o exemplo de um navio de cruzeiro argentino que teve um surto. Como foi mais recente, todo mundo já usava máscara N95, que é aquela que dá maior proteção. E a taxa de assintomáticos foi de 81%, enquanto naqueles primeiros cruzeiros, tipo o Diamond Princess, só 20% das pessoas eram assintomáticas. Mas é episódico, é isso que você falou.

Fernando Reinach: É, tudo episódico. Você teria que comparar se os argentinos eram mais novos, você pode imaginar que o argentino era um navio com tour de bandas de rock e todo mundo com 25, 30 anos. E o outro era com um monte de velhinhos na cadeira de rodas.

José Roberto de Toledo: Precisa controlar por um monte de variáveis, não só a idade.

Fernando Reinach: Se desse para provar desse jeito, eles estariam escrevendo um paper de epidemiologia provando isso. Agora, o que ele fala que é muito interessante é que ele sugere várias maneiras de isso ser testado. Primeiro em animais, ele dá o exemplo dos hamsters, fala que os epidemiologistas deviam estudar com mais cuidado as populações que usam e não usam máscara. E acha que isso seria uma possibilidade. 

Fala também que, no meio de uma pandemia dessa, vale tudo que ajudar. Ele fala que usar máscara não custa nada, quase. Não tem custo para o governo, não tem custo para a população. Se ajuda, porque é que não vamos fazer? Vamos tentar ver se isso funciona. Mesmo não sabendo se funciona, vamos usar. Tem um componente que é a propaganda das máscaras, principalmente por autores que estão num país onde tem uma briga pelo uso de máscara, o Trump é contra as máscaras, e fica aquela briga.

José Roberto de Toledo: Bom, vale pro Brasil também.

Fernando Reinach: Vale para vários lugares. E eu acho que o problema disso é que vai ser muito difícil de estudar.

José Roberto de Toledo: Aquela máquina de fazer paper, como você chamou – em que os caras montaram uma ferramenta gigantesca para colocar filtro, tirar o filtro -, era justamente sobre máscaras o estudo, talvez pudesse ser usada para esse caso.

Fernando Reinach: Eles faziam isso com os hamsters dourados. É um sistema para tentar medir a transmissão de um hamster para o outro. Eu acho que vai dar para fazer um estudo desse, você pode medir o LD50 do Sars-CoV-2 em hamsters, vai dando mais e vê se, realmente, quanto mais vírus se dá, mais grave é a doença. Isso é um experimento simples de fazer também. Então é uma ideia interessante. Como as pessoas estão acostumadas a ter um pensamento do tipo “envenenamento”, tem esse conceito de que se eu tomar menos veneno, tenho menos chances de morrer. E aí as pessoas extrapolam isso para os vírus, uma tendência natural do ser humano de pegar um modelo que funciona para uma coisa e extrapolar para outra. Muitas pessoas já me falaram isso, então acho que é bem interessante porque vai que é verdade. E aí uma seria uma possível boa notícia.

José Roberto de Toledo: Agora isso vem junto com a aparente diminuição da letalidade da epidemia, não?

Fernando Reinach: No momento que a gente está vendo uma segunda onda na Europa com muito menos gente morrendo. Você tem muitos casos e poucas mortes. Antes a gente tinha o mesmo número de casos e muito mais mortes, que também é uma coisa difícil de entender. Tem várias explicações, que o pessoal mais idoso, com comorbidades, já morreu na primeira onda. Como os médicos dizem, o vírus mata aqueles que já estão na beira da morte, ele dá um último empurrãozinho. Ou então que agora são mais jovens as pessoas que são infectadas. Ou então é porque o vírus mutou e a gente tem versões mais brandas. Agora nós vamos entrar numa fase que vai ser de explicar o porquê das quedas ou por que a primeira subida não foi igual à segunda. Ou por que alguns países vão ter a segunda onda e outros não vão ter. E sem fazer o experimento é muito difícil.

José Roberto de Toledo: Sim. Agora só para terminar, uma coisa que é clara, como você já disse várias vezes, esse é um vírus que veio para ficar, com a presença do Sars-CoV-2 entre nós. O uso da máscara, mesmo que não tenha esse efeito de valorização que os autores estão propondo, ele diminui as oportunidades de contágio. Então incorporá-la na nossa rotina me parece ser algo que não faz mal, pelo menos.

Fernando Reinach: Exatamente, não faz mal, é barato. Mas essa história do novo normal, eu não concordo muito com ela, porque o que vai acontecer: nós vamos conviver com esse vírus pra sempre. Eu acho que disso não tem dúvida nenhuma. Mas depois que todo mundo pegar pela primeira vez ou for imunizado com a vacina, é normal como é com a gripe hoje. Você sabe que ele existe. Seis meses atrás se falava: “Puxa, minha avó foi internada, pegou uma gripe, virou uma pneumonia e morreu no hospital.” Vai ser assim. Você vai falar: “O cara morreu de Sars-CoV-2 lá”, ele vai ser incorporado no normal. Eu não vejo um futuro onde a gente vai usar máscara por dez anos. É um período de transição até o sistema imune da humanidade se acostumar com essa nova realidade. Nosso sistema imune vai ter que lidar com mais um vírus, mas não é uma nova realidade, em que vamos ter que viver em casa morrendo de medo de ser contaminado, usando máscaras, lavando a mão. Isso tende a passar.

José Roberto de Toledo: Esperamos que sim.

 

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