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É Tudo Verdade – No centenário das revoluções (II)

Recepção e crítica do cinema de Dziga Vertov na União Soviética

Eduardo Escorel | 22 maio 2017_12h11
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A coletânea de escritos inéditos de Vertov, editada em livro pela revista Cahiers du Cinéma, em 1972, permitiu conhecer trechos do seu diário, inclusive a entrada de 12 de abril de 1926, na qual ele revela ter assistido a Paris Adormecida (1924), primeiro filme do jovem vanguardista René Clair (1898 – 1981). A experiência, nas palavras de Vertov, foi tanto estimulante quanto angustiante: “O filme me feriu. Há dois anos concebi um plano que coincide completamente com a forma técnica desse filme. Tentei várias vezes obter permissão para fazê-lo, mas essa oportunidade me foi negada. E então agora o filme foi feito no exterior. Cine-olho [Kinoglaz é o título do filme de Vertov, concluído em 1924, baseado no princípio de que é possível ver através da câmera mais do que o olho humano é capaz de enxergar; é também o título do manifesto escrito por Vertov no mesmo ano] perdeu uma de suas posições de ataque; a demora entre ideia, projeto e realização é longa demais. A não ser que nos seja permitido realizar nossas inovações à medida que surgem, arriscamos gastar nosso tempo em invenções que nunca são postas em prática.”

Para Vertov, seus filmes “Cineverdade Leninista, Avante, Soviete! e A Sexta Parte do Mundo são de certo modo partes constitutivas de uma só e mesma tarefa”, a edificação da URSS que é “o assunto principal, permanente, do meu trabalho atual e dos meus próximos trabalhos.[…] E eis que quem afogou o Cine-olho na sua desconfiança, aqueles que sufocaram Cineverdade Leninista com sua estúpida indiferença, aqueles que deixaram Avante, Soviete! tomando poeira, encontram-se agora diante da evidência das salas lotadas da rua Malaïa Dimitrovka nestes dias menos cômodos e mais desfavoráveis.”

Não havia meio de conferir com facilidade, até o final da década de 1970, se existiram de fato “salas lotadas”, como Vertov escreveu, para assistir a seus filmes, o que hoje sabemos não parece ter sido bem o caso.

A partir de 1979, as referências a Avante, Soviete! feitas por Richard Taylor em The Politics of the Soviet Cinema 1917-1929, no qual define o filme como um “louvor ao modo de vida soviético”, revelaram que o lançamento do filme de Vertov foi adiado, e o alcance do próprio Encouraçado Potemkin limitado, dada a preferência dos moscovitas, em 1926, por filmes americanos. Entre eles, Nossa Hospitalidade (1923), escrito, dirigido e produzido por Buster Keaton, que também faz o papel principal, e Robin Hood (1922), com Douglas Fairbanks, dirigido por Allan Dwan.

Em uma nota, Taylor cita a reclamação feita por um crítico das “nossas telas de cinema” que “em vez de lançarem filmes como Stachka (Greve) ou Kino-Glaz (Cine-Olho), [este último] de Vertov, no verão ainda mais do que no inverno, são alugadas para a burguesia francesa, para as beldades italianas, para [Harry] Piels, as lágrimas de [Conrad] Veidt e outro ‘lixo’.”

O que a anotação de Vertov, feita no diário em abril de 1926, deixa claro é a dificuldade que desde cedo ele enfrentou para obter permissão dos funcionários responsáveis pelo cinema na URSS para fazer seus filmes à sua maneira.

Foi só a partir de 2004, porém, graças à publicação do monumental Lines of Resistance – Dziga Vertov and the Twenties, editado por Yuri Tsivian, que tivemos acesso tanto à recepção crítica de Avante, Soviete!, em 1926, quanto à polêmica que suscitou e o embate de Vertov com a Presidium do Soviete de Moscou.

Em sua introdução, Tsivian toma Avante, Soviete! como exemplo precoce da tendência polêmica dos filmes de Vertov. Baseado na oposição entre “antes e depois”, o “antes” de Avante, Soviete! eram os dois a três anos de guerra civil, “período de sofrimento e desolação” que se seguiram à revolução de outubro de 1917”. O “depois” era a Moscou da atualidade. Para Tsivian, a carência de imagens de arquivo talvez tenha levado Vertov a resolver refilmar as cenas de “antes”. Para ele, esse procedimento “aparentemente” não era uma “falsificação de fatos (expressão que [Vertov] usava habitualmente para condenar filmes de ficção), mas algo parecido com reencenações factuais.” Uma “diferença inconsistente”, segundo Tsivian, mas ele duvida que o cinema de Vertov “pudesse ter chegado a alcançar sua tão admirada flexibilidade caso ele não tivesse decidido fazer esse pequeno compromisso com sua própria teoria.”

Fica o registro de que nem o próprio Vertov levou ao pé da letra seu princípio de “captar a vida sem aviso”, expresso no manifesto O Nascimento do Cine-Olho, de 1924, “para mostrar pessoas sem máscaras, sem maquiagem, para captá-las através do olho da câmera em um momento quando não estão atuando, para ler seus pensamentos, postos a nu pela câmera”.

A origem da tragédia de Vertov fica clara lendo o excerto da ata da discussão do Presidium do Soviete de Moscou sobre Avante, Soviete!, em março de 1926, reproduzido por Tsivian. Além de diversas críticas ao filme, cortes são propostos e alterações ordenadas: “Fortaleça os elementos positivos: construção, máquinas, o Comissariado da Saúde, clínicas, quartos, sanatórios, casas, e palácios de repouso. Providencie para tornar mais lenta a velocidade da projeção e a montagem.”

No memorando de Vertov sobre as correções feitas em Avante, Soviete!, levando em conta os comentários do Presidium, ele declara estar substituindo planos, trocando legendas, alterando a montagem, fazendo cortes, acrescentando “elementos industriais” etc. A única ressalva que faz é dizer que não pode “cumprir a instrução para acrescentar datas cronológicas (a época do ano) pois isso iria contra a maneira que o filme é construído e é essencialmente impossível.”

Através da exibição de Avante, Soviete! e Moscou, sem menosprezar os demais filmes da retrospectiva 100: De volta à URSS, os curadores Amir e Luis Felipe Labaki nos deram a excepcional oportunidade de conhecer não só a origem do percurso que levaria a Berlim, Sinfonia de uma Grande Cidade (1927), de Walther Ruttmann, e a Um Homem com uma Câmera (1928), mas também ao drama de Vertov.

Quase todos seus projetos, a partir da segunda metade dos anos 1930, foram recusados e seus filmes anteriores não eram exibidos. Fez Canção de Ninar, em 1937, considerado “excelente” pelo jovem pesquisador russo Nicole Izvolov, e que agradou aos homens no poder (essas declarações de Izvolov foram dadas a Chris Marker e incluídas como extra do DVD Elegia a Alexandre, de 1993).

A partir de 1935, ainda segundo Izvolov, a imprensa ignorou Vertov e “outros cineastas perderam o interesse por ele. Ele se tornou apenas um empregado do Estado soviético”. Ia trabalhar, mas, como disse Alexandre Ivanovitch Medvedkine (1900 – 1989), conhecido como o cineasta do trem, “era como esmurrar um travesseiro: não havia reação. Eles continuavam tentando, dando socos, mas o travesseiro era macio e não havia nenhuma reação”.

Quando Vertov e Medvedkine se tornaram vizinhos, em 1937, “não poderiam se encontrar de dia, porque estavam no trabalho. E se reunir à noite para discutir questões artísticas era inútil e, acima de tudo, perigoso”, de acordo com Izvolov: “Por isso, eu acho que nunca houve contato entre os dois. Era impossível, e eles faziam de tudo para evitar. Então a vida os separou de novo. Durante a guerra, Vertov editava cinejornais no Estúdio de Documentários e seu trabalho como diretor não interessava a ninguém. Medvedkine comandava um batalhão, depois de ter trabalhado no Azerbaijão. Vertov morreu em 1954. E foi nesse momento que Medvedkine entrou no Estúdio de Documentários. Ironicamente, o local em que os dois poderiam [se encontrar] e trabalhar juntos, estava vazio. Vertov tinha morrido.”

Até a década de 1970, Um Homem com uma Câmera não estava disponível para ser visto e estudado na União Soviética nem no exterior. Quanto aos demais filmes de Vertov, demorou ainda mais para poderem ser assistidos, o que só ocorreu após o lançamento dos magníficos DVDs do filmmuseum austríaco, iniciado em 2009 (www.edition-filmmuseum.com).BANNERMARATONA

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