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#eagoraoque – uma experiência transformadora

Filme de Bernardet e Rewald impele espectador a sair da passividade

Eduardo Escorel | 03 fev 2021_09h04
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Jean-Claude Bernardet considera #eagoraoque (2020) uma experiência transformadora, tanto para ele e Rubens Rewald, os codiretores do filme, como para Vladimir Safatle, um dos protagonistas, fazendo dois papéis – o de si mesmo e o do personagem central, um intelectual e músico, como ele. O outro protagonista é o próprio Bernardet, atuando como consciência crítica do intelectual e também como si mesmo.

Essa dualidade dos personagens centrais leva Bernardet e Safatle a participarem ora de encenações, ora de eventos reais do cotidiano, esmaecendo a fronteira entre documentário e ficção. O espectador de #eagoraoque que souber quem eles são é impelido, por sua vez, a se interrogar, durante a projeção, sobre a natureza do que está assistindo – incerteza que o incita a deixar de lado sua passividade habitual e refletir a respeito do que lhe está sendo proposto.

Jean-Claude Bernardet em cena de #eagoraoque – Foto: divulgação

 

Ao participar com Rewald do programa #TerçaAoVivo no canal de YouTube 3 Em Cena, na semana passada (26/1), Bernardet começou falando mais da origem do projeto, deixando meio de lado o fato de considerar a realização de #eagoraoque uma experiência transformadora (gravação disponível na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=06ER-DzuzR0&t=566s). Para esclarecer melhor essa afirmação, Rewald, Safatle e ele atenderam meu pedido e mandaram mensagens de voz explicando como cada um deles foi afetado ao participar do filme. Transcrevo a seguir as gravações com pequenos cortes e ajustes, procurando preservar a espontaneidade da comunicação oral.

Rewald: “Eu e Jean-Claude somos colegas de longa data, a gente tem uma parceria muito intensa. Nessa nossa parceria, já há um tempo a gente se incomoda com o tempo que um filme leva para ficar pronto que, de um certo modo, tira muito da potência da ideia inicial. E a gente começou a cunhar o termo cinema urgente, cinema já – da ideia, da pulsão inicial, de fazer o filme mais intensamente e rapidamente possível para que aquela ideia se comunique com o espectador no momento histórico que a ideia foi gerada, e não dez anos depois. Usando o Youtube como ‘nosso’ acervo (estratégia que já tinha usado em Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa, filme que fiz com Tales Ab’Sáber e Gustavo Aranda, em 2017), trazendo nossas discussões para o campo fílmico. Saindo da mera conversa e, principalmente, transformando o gesto de fazer um filme em um gesto político, carregado de urgência e necessidade. Foi muito bom conceber, escrever, filmar, montar e exibir no período de um ano [entre 2019 e 2020]. E não os cinco, seis, sete, até dez anos que um filme às vezes leva para ficar pronto. E nesse filme quisemos muito isso, tanto que não colocamos o filme em nenhum edital, não queríamos captar nada. Era uma ação política nossa e das pessoas que a gente convidava para trabalhar no filme. E para conseguir narrar o que queríamos, de um certo modo, desde o início trabalhamos com a questão da colagem. Pegando fragmentos do jornal, do YouTube, da televisão, fazendo essa colagem nos ajudar a narrar, a falar sobre o que a gente queria. Então, quando o filme ficou pronto, e vimos que funcionou, para nós…  e que logo que o filme estreou ele já provocou um debate, as pessoas se moveram ao redor do filme…  Isso para nós causou uma sensação de, não só prazer, mas de quero mais, sabe? Temos que continuar nesse caminho. Por isso eu até falei na palavra ‘veio’. Como se a gente encontrasse um veio de ouro aí e tem que continuar cavucando. Tem que continuar indo atrás para ver o que mais tem nesse veio. Então, nesse sentido é que o filme foi transformador. Uma sensação de que temos um caminho estético e político aí para continuar.”

Safatle: “Eu diria que esse filme foi para mim, antes de qualquer coisa, uma grande experiência de pensamento, por que, acredito que pensar é, de uma certa forma, se violentar. Existe uma violência imanente ao pensamento por que ele nos leva a ir a lugares que a gente não quer ir. A se confrontar com situações limite que a gente se esforça sobremaneira a não se confrontar. Então, por isso que eu acho o pensamento uma coisa tão rara e, pelo menos para mim, a experiência desse filme foi exatamente algo dessa natureza. Eu sempre me incomodei com certos filmes documentários sobre intelectuais, onde você acaba vendo, na tela, na verdade, a descrição muito laudatória das suas personalidades, de como eles se formaram, de como eles se tornaram quem eles são. Isso sempre me incomodou por que eu achava que…  eu acreditava nessa ideia do Sartre, não é, de que a classe intelectual, por que ela existe, por que isso não é uma abstração, é uma realidade sociológica, ela é o lugar de uma contradição social e ela é mais do que isso. Ela é expressão da contradição, de contradições fundamentais da sociedade. E eu sentia falta disso, de expressar isso. Expressar as falas que não são compreendidas, que são invertidas, as intenções que não se realizam, as limitações das ações, a impotência, todo esse tipo de coisa que é muito presente na vida de qualquer pessoa ligada à classe intelectual e que, no entanto, é escondido. E eu achei que o filme proposto pelo Bernardet e pelo Rubens, ele realizava o que eu achava que era a única condição honesta, real, para que uma experiência de pensamento que quis ser uma experiência de ação pudesse ser retratada. Então, ter visto isso, ter visto como o processo chega, ele é rebatido, ter permitido que isso ganhasse corpo, uma figura, foi para mim algo muito importante. Pessoalmente também, muito importante, porque, mais uma vez, quer dizer, nos últimos anos eu também me envolvi em várias ações, no campo da política profissional, eu acho que as pessoas sabem um pouco disso. E muito disso não deu certo. Eu não tenho nenhum receio em assumir as coisas dessa maneira. Eu imaginava que pudesse redundar em certos efeitos que não aconteceram. Então esse filme veio muito nesse momento, também, para mim, pessoal, de pensar por que não deu certo, o que não deu certo. Onde os limites apareceram, o que eles significam. Então eu só tenho a agradecer a generosidade do filme nesse sentido.”

Vladimir Safatle em cena de #eagoraoque – Foto: divulgação

 

Bernardet: “Tenho impressão de que o filme foi transformador no seguinte sentido: ele não é a execução de um projeto inteiramente previsto antes de sua realização. A execução, tanto a filmagem, quanto as relações com o grupo, como a montagem, tudo isso foi sendo feito e sendo descoberto, com ideias novas, no decorrer de sua realização. Pontos transformadores que eu destacaria: com certeza, o orçamento de 13 mil reais. O filme entrou assim mesmo na Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, em que os orçamentos são bem diferentes. O que significam esses 13 mil reais? Não significam apenas que é pouco dinheiro. Mas, significam que nós não nos dobramos, não entramos nas formas convencionais, tradicionais, da produção cinematográfica, tal como ela é feita no Brasil. Não entramos em edital, não esperamos a autorização de ninguém. Então, esse trabalho urgente, vamos fazer, revela da nossa parte um poder de ação e uma vontade política que nos levou a uma obra. Essa obra não se encaixa, evidentemente, nas exigências do mercado etc., não é? Mas ela existe, não foi engavetada, tem uma reação social de pessoas que reagem, que escrevem etc. Quer dizer, se tornou um certo fato social que provoca ações e interações. Então isso é, acho que é, muito importante e transformador. Eu acho também que a relação com as pessoas, essa colaboração que nós recebemos…  E também a transformação das relações entre o Rubens e eu. Não saberia muito dizer, mas eu acho que o Rubens é diferente hoje do que quando iniciamos o projeto e acho que as nossas relações se estreitaram muito. Que houve talvez uma aproximação estilística entre nós, e uma aproximação política. Então isso também é transformação provocada pelo filme. Uma coisa muito importante e até decisiva, posterior ao filme, é a reação do Vladimir Safatle, que considera que o filme e a feitura do filme foi motivo de questionamento da sua carreira, ter que repensar umas coisas etc. Uma outra coisa que é importante é a vontade de não se deixar submergir pela hierarquia. Então, a cena do encontro das mulheres…  essa cena em que a Palomaris [Mathias, personagem do filme] fala da expulsão do padrasto pela mãe dela, foi dirigida pela Emily [Hozokawa, assistente de direção]. Foi decidido que nem Rubens nem eu botaríamos os pés nessa…  durante a gravação. Houve, evidentemente, uma situação, criada por nós, mas essa situação é desenvolvida por outra pessoa que é a Emily, evidentemente que nós retomamos, no final, a montagem. E as cenas do Capão Redondo foram produzidas, articuladas, pelo Lincoln [Péricles], morador da quebrada. Ele que escolheu os participantes, deslanchou os temas. Então há um questionamento também da autoria, da autoridade, da equipe. Eu acho que não fomos muito longe, nesse sentido, na medida em que conservamos o corte final.”

No #TerçaAoVivo, Bernardet contou que Lincoln não assistiu à versão atual do filme e que “vai fazer a versão dele”. Ou seja, trata-se de um projeto que permanece aberto.

Depois de ser exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, e na 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, enquanto aguarda a seleção de novos festivais nos quais está inscrito e outras oportunidades de exibição, #eagoraoque tem sido exibido em plataformas de universidades com debates. Em janeiro, uma dessas projeções foi feita na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB) e este mês haverá uma na Simon Fraser University, em Vancouver.

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Como se não tivéssemos motivos suficientes para lamentar, temos a lastimar que as projeções da mostra “De Portugal para o mundo”, realizada a partir de hoje, no CCBB Rio de Janeiro, até 1º de março, não serão online. Entre os 28 filmes a serem exibidos estão Vitalina Varela (2019), de Pedro Costa, Redenção (2013), de Miguel Gomes e Fordlandia Malaise (2019), de Susana de Sousa Dias. Projetar esses filmes e os demais na sala de cinema do Centro Cultural com público, neste momento, é uma insensatez contra a qual é preciso protestar e pela qual a direção do Centro Cultural deve ser responsabilizada. Os “bate-papos online” programados nem de longe atenuam o desvario de um evento presencial, por maiores que possam ser as precauções tomadas.

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Na próxima terça-feira, 9 de fevereiro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam, no programa #TerçaAoVivo do canal de YouTube 3 Em Cena, com Emílio Domingos, diretor de Favela É Moda, documentário que completa a trilogia do corpo, formada também por A Batalha do Passinho (2012) e Deixa na Régua (2016). Favela É Moda recebeu o prêmio de Melhor Documentário pelo voto popular no Festival do Rio, em 2019, e de Melhor Longa Metragem, em 2020, na XIII Edição de Filme Etnográfico do Prêmio Pierre Verger, atribuído pela Associação Brasileira de Antropologia. O filme estreou em 22 de janeiro no Curta! e pode ser visto no Curta!On, novo clube de documentários do Now. O acesso à conversa de terça-feira, 9 de fevereiro, pode ser feito através do link https://youtu.be/9vzGMWhXMcg .

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