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    EDUARDO ANIZELLI/FOLHAPRESS

questões cinematográficas

Eduardo Coutinho, encontros amorosos

Morto há cinco anos, o documentarista valorizava tanto a proximidade física e o olhar quanto a escuta atenta em suas entrevistas

Eduardo Escorel | 01 fev 2019_21h30
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Este texto foi publicado originalmente em duas partes, no site da piauí, nos dias 9 e 16 de março de 2015. E é republicado agora com atualizações do seu autor, por ocasião do aniversário de 5 anos da morte do cineasta Eduardo Coutinho.

Não deveríamos nos surpreender com homicídios. Afinal, apenas em 2016, houve cerca de 62 mil mortes violentas no Brasil – 5,8% mais do que no ano anterior. Para cada 100 mil habitantes foram mais de trinta vítimas, pela primeira vez na história do país. E desde 1990, as chamadas “agressões intencionais a terceiros” passaram a causar mais mortes do que as provocadas por acidentes de trânsito.

Os dados indicam por que o Brasil ocupa o desonroso 9º lugar na lista dos países mais violentos do mundo, entre África do Sul e as Bahamas.

Mas, apesar de conhecermos o alto grau de violência do país, imaginamos estar protegidos – ilusão que agrava o abalo quando alguém próximo é golpeado. Por vivermos iludidos, estamos despreparados para formas de agressão incomuns no círculo mais próximo de nossas relações pessoais.

De 2005 a julho de 2011, foram identificados 246 casos de parricídio no Brasil (não há dados atualizados disponíveis), o que correspondia a 0,08% do total de homicídios cometidos naquele período. Embora a probabilidade de ser atingido por um raio seja considerada infinitamente menor, o inesperado impacto da descarga elétrica parece ser uma metáfora adequada para a comoção causada pelo ato de violência contra o pai ou a mãe.

O perfil típico do parricida e as circunstâncias nas quais costuma cometer o crime confirmam que vivemos em um mundo ilusório. O assassino do próprio pai ou da mãe é descrito como “um homem jovem, solteiro, desempregado, que vive com a vítima, sofre de esquizofrenia, abusa de álcool e drogas, e suspendeu um tratamento”, conforme o estudo “Incidência de Parricídio no Brasil” de Paula Inez Cunha Gomide, Ana Maria Freitas Teche, Simone Maiorki e Singra Mara Nadal Cardoso. A maior parte desses crimes é cometida em casa, utilizando arma branca.

Com semelhante perfil e nessas circunstâncias, surpreendente é o homicídio dos pais ser considerado um imprevisto.

Crentes encontram consolo na fé. Psicólogos e psiquiatras coletam dados, traçam perfis e fazem diagnósticos. Advogados tipificam. Todos têm necessidade de encontrar explicação racional para a irracionalidade – definem a causa e acreditam ter esclarecido o horror incompreensível. Em O Brilho do Bronze (um diário), Boris Fausto escreveu que temos “a necessidade de restaurar a racionalidade, diante do irracional. Estabelecemos a causalidade e explicamos assim o horror incompreensível. Nós e a mídia ficamos satisfeitos”.

Para ímpios e agnósticos, uns sem religião, outros conscientes da própria ignorância, ambos insatisfeitos com diagnósticos e classificações, só resta lidar com suas próprias perplexidades. Como Tchekhov escreveu a um amigo: “Nada é claro neste mundo. Só tolos e charlatães sabem e entendem tudo.”

Mortes violentas, disse um amigo meu, são como bombas de fragmentação – além da vítima, ferem quem está por perto. Atingido pelos fragmentos, o sobrevivente fica marcado para sempre.

No final de Cabeças Falantes (1980), um conhecido curta-metragem de Krzysztof Kieslowski, uma senhora de 100 anos, nascida em 1880, diz que quer “viver mais. Muito mais”. Eduardo Coutinho (11 de maio de 1933 – 2 de fevereiro de 2014) também queria continuar vivo. Em outras palavras, disse isso mais de uma vez. Quando estava com 80 anos foi breve: “[…] infelizmente a gente morre. […] Se eu morrer… Espero que demore”, declarou à pesquisadora Andrea Nestrea. Essa graça, porém, não lhe foi concedida. Poucos meses depois, há exatos cinco anos, foi abatido pelo braço traiçoeiro do seu filho mais moço, em um domingo de manhã. E, no dia seguinte, seu caixão foi posto em um carneiro rente ao chão, na encosta do cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

Falar dos filmes de Coutinho, sem deixar de lado as circunstâncias da sua morte, talvez seja uma forma de lidar com a tragédia e manter viva a lembrança dele.

Sei que algumas pessoas compartilham essa sensação. Quase um ano depois de ele ter morrido, Liana Aureliano, uma amiga em comum, contou o sonho que teve e me parece expressar o mesmo sentimento: “Esta noite sonhei com Eduardo Coutinho. Um sonho longo e interessante. Eu ia entrar no elevador de um hotel e ele estava lá dentro. Era ele, bem moço e tentando se esconder de mim. A porta do elevador fechou antes que eu pudesse entrar. Na portaria do hotel me informaram que ele era um hóspede antigo e me deram o número do quarto. Fui falar com ele. Reclamei do susto horrível que ele nos havia dado, se fazendo de morto. Ele respondeu que estava muito cansado do mundo.”

Restaria algo mais a dizer sobre a obra de Eduardo Coutinho? A pergunta pode parecer retórica, mas na verdade poucos cineastas brasileiros receberam, em vida, consagração crítica semelhante à que lhe foi dedicada. Menos ainda são os que foram tão prolíficos na maturidade, tornando-se presente através de oito filmes de longa-metragem lançados em doze anos, entre 1999 e 2011, além de um nono filme, Um Dia na Vida (2010), exibido apenas em sessões privadas, sem lançamento comercial. Além dos vários documentários que dirigiu, à medida que seu prestígio crescia, passou a dar tantas entrevistas e depoimentos gravados que suas declarações acabaram se tornando repetitivas. Diante de tamanha exegese e quantidade de declarações, não há dúvida que todo comentário póstumo sobre Coutinho arrisca naufragar na redundância.

A grande novidade em sete dos nove documentários do Coutinho realizados a partir de Santo Forte, gravado em 1999, quando estava com 66 anos, é mostrarem um conjunto de encontros e conversas breves, em geral sem objetivo pré-estabelecido, realizados em espaços cada vez mais delimitados, quer seja uma favela, um prédio, um município contíguo a São Paulo, outro do interior da Paraíba, um palco ou uma sala. As duas exceções são Moscou (2009) e Um Dia na Vida (2010), que apresentam diferenças marcantes, embora preservem algumas das características comuns aos demais.

Com o passar dos anos, à medida que a saúde declinava e Coutinho perdia vigor físico, locações próximas em espaço circunscrito, além de opção estética, se tornaram condição necessária para que conseguisse continuar a fazer filmes, especialmente depois de O Fim e o Princípio (2005), gravado no Nordeste em 2004.

É verdade que há encontros e conversas nos filmes anteriores do Coutinho. A diferença está no fato de os documentários a partir de Santo Forte deixarem de tratar, em parte, da sua experiência pessoal, como é o caso em Cabra Marcado Para Morrer (1964-1984).

Em 1967, o jovem Coutinho, antes de ter retomado a realização de Cabra Marcado Para Morrer, interrompida em 1º de abril de 1964, disse à revista Cine Cubano esperar que “a nova geração consiga estabelecer certa sintonia entre sua obra e sua vida”. Passados mais de trinta anos, essa relação direta entre vida e obra deixou de existir nos documentários da maturidade de Coutinho. O evento histórico é substituído pelo cotidiano; o mártir por pessoas comuns. A fala, o gesto e o olhar se tornam o foco da observação. O interesse está no “que existe, pelo simples fato de existir”. Daí a afinidade que Coutinho sentiu com Spinoza, via Bourdieu – “assentir com o mundo, concordar com o mundo […] com os ‘fatos naturais’”; e também com Tchekhov –, aceitar as coisas pelo que são, sem fazer julgamentos, observando apenas. Postura que o levou a fazer Moscou, no qual registra uma encenação dos ensaios de As Três Irmãs.

Além de dispositivos pré-determinados, as gravações dos filmes de Coutinho tinham um protocolo estabelecido – eram semelhantes a encontros amorosos, sendo precedidos por acurado processo de seleção e obedeciam a regras precisas, tanto em relação ao modo de gravar, quanto à dinâmica das conversas, nas quais Coutinho mais ouvia do que falava. Fazia perguntas curtas e encarava eleitas e eleitos olhos nos olhos. Nesses termos, para ele a proximidade física e o olhar pesavam tanto quanto a escuta.

Para Coutinho, as relações estabelecidas nos encontros eram eróticas “no sentido amplo da palavra”, como sentiu necessidade de esclarecer no depoimento a Carlos Nader em 7 de Outubro (2013). Nas suas próprias palavras, eram relações físicas que faziam “uma velha ou uma garota de programa”, que estava com o joelho colado no dele, falarem com ele. Segundo Coutinho, “o corpo fala, e a fala que tá ligada ao corpo, quando é visceral, é por que há uma relação erótica”.

No encontro com Daniela, a professora de inglês que mora sozinha com três gatos em Edifício Master (2002), fica clara a importância do olhar e da ausência de anteparo entre Coutinho e suas eleitas. Há uma mesa baixa entre os dois. E Daniela evita ostensivamente olhar nos olhos dele durante os quase cinco minutos da conversa. Mantendo-se de perfil, o máximo que ela se permite no início são olhadas rápidas. Daniela diz ter “problemas de neurose e sociofobia”. Coutinho pergunta: “Por que que a gente conversa e você não olha pra mim?” Ela continua de perfil, mas a partir dessa pergunta passa a olhar para ele de maneira menos fugidia e chega a sorrir. Diz ter falta de “autoconfiança para encará-lo sem talvez gaguejar ou piscar compulsivamente”. Olhando para Coutinho, admite que o medo a impede de ficar tête-a-tête, e vira o rosto. Ela está na defensiva e recusa o que Coutinho mais quer, uma relação íntima. No final, porém, um elo parece ter sido estabelecido entre os dois. Depois de ler em voz alta, primeiro em inglês, depois em português, seu poema “Opium dreams”, sempre de perfil, Daniela mostra uma pequena tela pintada por ela à qual deu o título “A floresta do meu desespero”. Para ela, “a floresta é um lugar dúbio” e o quadro “fala de paranoia e desamor”.

Exemplar dos jogos de sedução organizados por Coutinho é As Canções (2011), seu último filme lançado, no qual predominam canções de amor. As Canções começa, não por acaso, com versos de Vinícius de Moraes que estabelecem as condições para a mulher ser a amada, “aquela amada pelo amor predestinada/Sem a qual a vida é nada/Sem a qual se quer morrer.” Enquanto canta Minha namorada, Sônia pensa em Luiz Carlos mas olha nos olhos de Coutinho – é para ele que ela canta naquele momento, assim como acontece com a maioria das demais personagens.

“Quanto mais esquecido de si mesmo é o ouvinte, mais fundo o que ele ouve fica gravado na sua memória.” Confrontado pelo jovem diretor Josafá Veloso com o aforisma VIII de Walter Benjamin, em O Narrador, que Coutinho havia citado quatorze anos antes, ele responde: “O resumo do que eu gostaria de ser, do que gostaria de fazer nos filmes está expresso nessa citação.” Isso, depois de ter dito, momentos antes, ser “apaixonado pelo messianismo e pela melancolia de Benjamin”.

As normas da gravação incluíam a imobilidade da câmera e a inexistência de anteparos entre Coutinho e sua interlocutora ou interlocutor, que deviam estar a “justa distância”, conforme declarou a Nader. Embora ele ficasse fora de campo a maior parte do tempo, sua presença e interação eram cruciais.

Para fazer a escolha dos participantes, homens e mulheres, desses encontros, o cupido (ou assistente) conduzia uma conversa prévia gravada sem a participação de Coutinho. Ao fazer a seleção alimentava grande expectativa pelo resultado do encontro, a ponto de ter acessos ocasionais de fúria quando se decepcionava. Nos intervalos das gravações, diante só da equipe, seu pessimismo congênito podia aflorar e chegou a dirigir os piores impropérios às pessoas que acreditava não terem se mostrado na conversa à altura da proposta de estabelecer uma relação com ele através da proximidade física, do olhar e da escuta, componentes essenciais para o sucesso do encontro amoroso.

Coutinho não fazia juízos morais das suas parceiras e dos seus parceiros. Era todo olhos e ouvidos nos encontros. Procurava estabelecer relação harmoniosa com quem conversava, mas não deixava de questionar o sentido das palavras ditas por eles, assim como das suas atitudes.

Buscava estabelecer uma relação intensa, sentir prazer e despertar paixão. Coutinho sabia de antemão que seria um amor fugaz, pois limitado àquela hora e pouco do encontro, depois do qual perdia interesse por suas efêmeras parceiras e parceiros, evitando deliberadamente novos encontros depois da gravação. Comparadas a suas maravilhosas personagens, considerava as pessoas reais uma fraude. “Quando você volta e passa uns dias juntos é rotina. E a rotina é insuportável, a rotina é insuportável”, declarou ainda a Nader.

Por oposição ao historiador, memórias coletivas e fidelidade dos relatos não tinham interesse para Coutinho. Ele centrou sua atenção nas diferentes formas de auto-representação suscitadas nos encontros. O que o entusiasmava eram testemunhos ou memórias individuais, subjetivos e irreprodutíveis por natureza. Para ele, tinham valor em si mesmos pelo simples fato de terem sido contados, conforme declarou a Nader: “num instante dado em que houve uma fricção, um querer se mostrar, medo, se conhecer etc. dos dois lados”.

Encontros e conversas eram demarcados por um anti-romantismo radical. O pressuposto da relação que Coutinho buscava estabelecer era a brevidade. Como para o poeta dos Tableaux parisiens, no famoso soneto “A uma passante”, comentado por Benjamin, para Coutinho “o momento do encantamento coincide com a despedida para sempre”. A exceção foi Elizabeth Teixeira, com quem manteve contato esporádico durante cinco décadas, desde que a conheceu em 1962.

Os breves encontros amorosos e a convivência com sua equipe serviram de antídotos para a solidão de Coutinho. Para ele, gravar era uma necessidade vital. “É o que me mantém vivo”, disse a Nader: “[…] se eu não filmar, eu morro. […] É um meio de estar vivo. Por que o resto não tem a menor importância.” As gravações talvez tenham sido um dos momentos mais felizes da última década de sua vida. Mesmo assim, sem se deixar levar por sentimentalismos, Coutinho fez questão de dizer a Nader que continuava “tão infeliz quanto antes”.

Nas inúmeras ocasiões nos últimos anos de vida em que mudou de lugar e sentou diante da câmera ou apenas do microfone, Coutinho parece ter tentado compensar seu relativo mutismo quando estava na posição de diretor. O ritual era sempre o mesmo. Chegava de mau humor, começava com má vontade, rejeitava a primeira pergunta, às vezes de forma agressiva. Depois, costumava aderir ao jogo e falar muito. Às vezes de maneira incompreensível, articulando mal, atropelava as palavras e omitia a frase usual que introduz o assunto. Outras vezes era inconveniente. Recorria a impropérios à vontade. Errava nomes e datas, sem deixar de dizer também muita coisa reveladora não mencionada em entrevistas anteriores.

Na tarde de sua última quinta-feira, por exemplo, falou com veemência incomum do seu medo, da utilização dos cadáveres e dos mártires pela esquerda e pela direita, da sua prisão no Recife, em 1964, após a interrupção da filmagem de Cabra Marcado Para Morrer, com a qual sonhou durante anos, do regime de terror instaurado na Paraíba e em Pernambuco depois do golpe, do assassinato de um filho de Elizabeth Teixeira, morto por seu irmão diante da mãe.

Meses antes, fora profético ao dizer que seu ideal era “morrer no meio de um filme”. Sonhava “fazer filmes inacabados”, declarou a Nestrea.

Por razões legais, Coutinho não pode realizar um de seus últimos projetos. Dessa vez os encontros seriam com meninos e meninas, pista segura para situar a origem da sua inspiração no encantamento de Benjamin por crianças.

Coutinho deixou um filme gravado sem editar – registro final do seu olhar, da sua voz, da sua escuta e do seu corpo. Montado por Jordana Berg e concluído por João Moreira Salles, Últimas Conversas (2015) preserva vestígios preciosos que nos restaram junto com os filmes anteriores de Coutinho, suas declarações e nossas lembranças.

*

Este texto é a versão completa, revista e atualizada de comunicação de abertura feita em 6 de março de 2015, na mesa-redonda “Listening and Seeing: An Homage to Eduardo Coutinho”, na Universidade de Princeton, promovida pelo Programa de Estudos Latino Americanos, dirigido por Pedro Meira Monteiro.

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