A capa da mais recente edição da revista satírica inglesa Private Eye traz um cartum com um grupo de ingleses, de várias classes sociais, postados na fila de uma Zona Eleitoral. Em comum, todos trazem um pregador de roupa tampando o nariz. Acima do desenho, uma chamada: “Especial Eleição – Nivelados.” Abaixo dele, uma tarja preta arremata – “No inverno louco e sombrio”. (Election Special/It’s level pegging – In the bleak madwinter). A capa resume o sentimento de parte dos ingleses – pobres, ricos ou remediados – que saíram nesta quinta-feira (12) para votar nas eleições mais críticas para o Parlamento britânico das últimas décadas. Essa insatisfação dos ingleses com qualquer que seja o resultado das eleições podia ser percebida nos editoriais dos jornais ingleses publicados na véspera da votação.
The Guardian, o jornal mais à esquerda e historicamente apoiador do Labour Party, o Partido Trabalhista, fez uma análise dramática da atual situação. Embora aponte o líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, como a melhor opção para o Reino Unido, do que o Partido Conservador, o Tory, o editorial definiu assim as opções que os ingleses teriam pela frente nessas eleições. “O próximo primeiro-ministro será ou Boris Johnson, que é focado em ‘fazer o Brexit’ quaisquer que sejam as consequências, ou Jeremy Corbyn, que na liderança do Partido Trabalhista tentará remodelar a sociedade com um programa de nacionalização das empresas e aumento dos gastos públicos.”
E continua. “Ambos os partidos estão oferecendo apostas heréticas contra os princípios do pensamento geral […] Ambos são menos pluralistas e mais sectários.” Ao final, porém, sustenta que, apesar de tudo, “o Labour Party oferece uma maior esperança para o país”.
Se existe um lugar no Reino Unido onde a eleição do “nariz tampado” parece mais evidente é na sofisticada, liberal, ultraintelectualizada e internacional Oxford, que se gaba de ser o centro do conhecimento do Reino Unido por abrigar a segunda universidade mais antiga da Europa e uma das mais respeitadas do mundo. Oxford, tradicionalmente, vota pelo Labour Party. Nas últimas eleições, em 2015, o partido em Oxford obteve 65% dos votos, contra 22% dos Conservadores e 9% dos Liberais Democratas, uma dissidência do Labour Party, que perdeu força ao se coligar com o conservador David Cameron no passado.
Por ter o apoio da ampla maioria dos moradores da cidade, Oxford é chamada de safe zone pelos trabalhistas, ou seja, a área em que eles seguramente sempre ganham. A maioria dos eleitores votou contra o Brexit no plebiscito de 2016 e recebeu em choque a notícia de que o Brexit tinha vencido, ainda que por uma margem estreita de votos.
Mas o inconformismo e a preocupação com a decisão de parte da população de deixar a União Europeia (UE) continuam até hoje. E é expressa nos vários e permanentes debates que ocorrem nas mais de cem faculdades da cidade, onde a maioria dos palestrantes alerta para os riscos de isolamento do Reino Unido caso o Brexit seja mesmo referendado em 31 de janeiro de 2020.
É principalmente por causa do Brexit que as eleições de hoje são tão importantes para os ingleses. Eles votarão nos parlamentares que escolherão o próximo primeiro-ministro, e no momento só existem dois no páreo: Johnson e Corbyn. Pelas regras eleitorais britânicas, o vencedor leva tudo – é o winner-takes-all system, como eles chamam. Ou seja, o partido que conseguir o maior número de cadeiras no Parlamento, mesmo que seja com uma diferença de 1%, indica o primeiro-ministro. Daí a conseguir governar é outra história.
Foi por não ter maioria no Parlamento para aprovar o Brexit que Boris Johnson partiu para o tudo ou nada – convocar novas eleições – apostando que vai conquistar cadeiras suficientes para garantir a aprovação de suas propostas.
A principal delas, a efetivação do Brexit. Embora o plebiscito de 2016 tenha decidido pela saída do Reino Unido da União Europeia, o Parlamento dividido não garantiu os votos para o Partido Conservador aprovar os termos da saída. Situação que os ingleses chamam de hung Parliament. Ou seja, o Parlamento pendurado, sem maioria para um lado ou para o outro.
O resultado é que desde 2016 o país vive o dilema de estar metade dentro e metade fora da União Europeia. Uma situação que tem estressado demais os britânicos. Muitos, aliás, estão fartos do noticiário diário sobre o tema. Esse cansaço se expressa na decisão de alguns jornais e redes de tevê entre eles o Guardian e a Sky News, de criar edições especiais para os leitores e telespectadores que não querem saber mais do assunto.
De pouco adianta, porém, fechar os olhos e ouvidos para a situação. O Brexit, se efetivado, sem dúvida alguma vai alterar totalmente a vida dos britânicos. E as primeiras consequências já começaram a aparecer. Algumas fábricas europeias e japonesas, como a montadora Nissan, estão optando por reduzir a operação ou deixar o país, temendo a saída da União Europeia em janeiro. O que vai ficar claro se irá ou não acontecer após o resultado da eleição desta quinta.
Ainda que a votação seja fundamental para o destino do Reino Unido, pelo menos em Oxford o clima nas ruas nesta quinta era de absoluta normalidade. Pode ter a ver com a personalidade dos ingleses de se mostrarem indiferentes ao que quer que seja. Uma forma de mostrar equilíbrio e se afastar das paixões. O fato é que nas ruas da cidade não se via sequer um santinho com a carinha dos candidatos. Ou cabos eleitorais com cartazes ou filas nas cabines de votação.
O 12 de dezembro amanheceu gelado e chuvoso. Mais gelado e chuvoso do que o normal para o severo inverno inglês. A votação vai das sete da manhã às dez da noite, e a movimentação nas Zonas Eleitorais dessa cidade de 150 mil habitantes era pequena. Na paróquia de St. Matthew, na Marlborough Road, a situação não era diferente. Poucos eleitores no galpão contíguo à paróquia, que se assemelha a uma ampla quadra de esportes.
Às 9h30, na entrada do salão, uma mulher beirando seus 80 anos, cabelos totalmente grisalhos e uma expressão vivaz, com um bóton do Partido Trabalhista preso ao casacão de lã, controlava quem entrava para votar. Elisabeth Ledger me disse que não era fiscal oficial, mas estava dando uma ajuda aos mesários. Perguntei por que ela apoiava o Partido Trabalhista. Afirmou que todas as conquistas sociais dos ingleses – sistema de saúde, educação e previdência – foram garantidas pelo partido. E disse temer pelo futuro dos mais jovens caso os conservadores ganhassem a eleição.
Na área em torno da paróquia, uma região de classe média alta, à beira do Rio Tâmisa, a tendência parece ser votar no Labour. Pelo menos é o que mostravam os cartazes nas janelas das casas nas ruas em volta, as townhouses de quatro andares comuns na cidade. Mas na Zona Eleitoral havia os descontentes com os trabalhistas. Uma mulher também na faixa dos 80 anos se compadeceu ao me ver postada na frente da Zona Eleitoral, com o guarda-chuva que não me protegia muito do aguaceiro. “Tenho pena de vocês jornalistas”, me disse, solidária. Aproveitei a deixa e perguntei em quem ela votaria. “Nos conservadores”, respondeu sem pestanejar. “Não sou conservadora. Nem gosto muito deles”, afirmou. “Mas se os ingleses votaram pelo Brexit, tenho que acatar a decisão da maioria”, afirmou, sem me dar o seu nome.
Um homem na faixa dos 70, com um casacão de lã cinza, gorro e óculos, também me justificou seu voto nos conservadores. “Os trabalhistas apoiam os terroristas da Irlanda do Norte que mataram os ingleses.” Um comentário que pareceu estapafúrdio dado que o IRA (Exército Republicano Irlandês), o movimento armado separatista irlandês, entregou as armas em 2005, desde o acordo de paz entre católicos e protestante no país.
Ressuscitar esse sentimento de ódio ao IRA, no entanto, é um dos riscos que os ingleses correm caso o Brexit seja referendado em janeiro. A delicada situação da Irlanda do Norte preocupa muito os analistas. Com o Brexit, a fronteira com a católica República da Irlanda, hoje aberta, será fechada. E isso pode voltar a azedar as frágeis relações entre católicos e protestantes acalmadas após anos de negociação.
Um casal de meia-idade, ele antropólogo, ela ex-gestora de uma faculdade na cidade, entrou para votar. Não optaram nem pelo Labour nem pelo Tory. Ficaram com a candidata da liberal-democracia. “Não queremos nem Johnson nem Corbyn”, ela me disse, pedindo para não citar seu nome. “São dois radicais, cada um numa extremidade ideológica. Ambos são ruins para o país.” E os liberal-democratas, perguntei? O antropólogo, um homem alto e grisalho, me respondeu. “Eles são uma saída ao centro, a social-democracia.” Para muitos ingleses que optaram pelo Liberal Democrata, as esperanças de vitória são pequenas. Alguns com quem conversei acham o partido amador. Mas preferem votar nos social-democratas do que cair na polarização Labour/Tory. Polarização que se transforma em ataques de ambos os lados, num tom de agressividade nunca visto antes no país.
A Zona Eleitoral de St. Matthew é um microcosmo do que acontece na Inglaterra. Um país polarizado entre ficar e sair da União Europeia. Mas não somente isso. Embora o Brexit seja a mola propulsora dessa eleição, a insatisfação dos ingleses com os partidos, os políticos e a economia, além do desejo de mudança, levou muitos deles às urnas.
No dia da eleição, as manchetes evidenciavam o racha no país. O jornal de centro-esquerda The Guardian trazia a foto de Corbyn estampada com sua proposta de dar um “choque no establishment”. O conservador Daily Telegraph trazia a foto de Boris Johnson com sua frase favorita escrita num cartaz: Get Brexit Done (Faça o Brexit, em tradução literal), e a chamada de que o Tory se elegeria por uma margem pequena de votos. O Times alertava para a ameaça dos tories encararem a concorrência do Partido do Brexit. Já o Independent optou pela neutralidade com uma manchete óbvia: “Futuro dos britânicos, você decide”, acima da foto dos líderes dos seis partidos que disputam a eleição.
Kerenza Hurr, que atendia na loja de conveniências e jornais, tem 22 anos e é estudante universitária em Oxford. Ela disse que votaria assim que acabasse o expediente. Seu voto é dos trabalhistas. Em sua opinião, os conservadores só estão preocupados com os superricos. “Querem só ganhar a eleição. Não se preocupam com a sociedade e os mais necessitados.” Hurr teme pelo fim dos direitos sociais caso os conservadores ganhem. Além disso, ela acha que os tories jogam o país numa indefinição. “O que será do Reino Unido se sairmos da União Europeia? É um risco para todos nós”, questionou.
Um homem de barba ruiva e olhos azuis, abotoando o casaco para se proteger do frio, entrou na conversa. Contou que estava indo votar nos liberal-democratas. “Na verdade, eu sempre votei no Labour. Mas não nesse Labour que está aí”, reclamou. E saiu pronto para depositar o seu protesto contra os trabalhistas na urna.
A poucas quadras dali, num pub, o arquiteto Jacob Paull trabalhava em seu laptop enquanto aguardava pela xícara de café preto. Ainda não tinha ido votar, mas também iria pelos trabalhistas. Seus argumentos se assemelham aos da jovem vendedora. “Não que eles sejam muito bons, mas pelo menos têm uma preocupação maior com a sociedade. Os conservadores só pensam nos ricos e no mercado financeiro”, reclamou. “Essa não é a forma de se administrar o país”, disse. “Quero saúde e educação gratuita para todos”, defendeu. “Boris Johnson só quer saber de proteger os mais ricos.”
O que torna essas eleições mais complicadas é justamente o fato de a discussão sobre o Brexit ter se misturado com o que os ingleses esperam do próximo governo, política e economicamente. Se se limitasse à discussão sobre permanecer ou sair da União Europeia, talvez fosse mais fácil para o eleitor resolver. Mas o resultado das urnas vai desenhar o futuro do Reino Unido em várias outras questões.
Os dois partidos mais fortes – o Trabalhista e o Conservador – foram para os extremos. Boris Johnson representa os interesses da ultradireita radical conservadora. A que apregoa uma Inglaterra forte, livre de imigrantes, poderosa economicamente, como se fosse possível voltar à era colonial vitoriana, submetendo vários países aos seus interesses. Um nacionalismo exacerbado, na mesma linha de Donald Trump, nos Estados Unidos.
Não à toa, por trás da campanha do Brexit e do suporte a Boris Johnson está o magnata americano ultraconservador Robert Mercer, que também financiou a campanha de Donald Trump à Presidência. Ele é o principal fundador e financiador dos fundos que dão suporte às causas da ultradireita nos Estados Unidos.
A escolha de Boris Johnson como primeiro-ministro contou com sua ajuda, o que levou a uma radicalização sem precedentes do Partido Conservador. Hoje, o partido é dominado por essa ala ideológica e ultraconservadora. O pragmatismo histórico foi deixado de lado. Tanto que muitos políticos do partido acabaram perdendo espaço e deixando a legenda após a eleição de Johnson. A turma que hoje domina o partido não abre espaço para negociações. Seu lema é my way or no way, ou seja, do meu jeito ou de jeito nenhum. Essa radicalização impede qualquer negociação com os opositores que leve em conta os interesses da sociedade.
João Carlos Mendonça é um brasileiro estudioso do populismo na Inglaterra e ex-executivo de uma multinacional inglesa. Durante anos morou no Reino Unido e conquistou cidadania britânica, mas, recentemente, mudou-se para Portugal. Perguntei quais riscos ele via com a saída do Reino Unido da União Europeia. Para ele, o país corre o risco de virar apenas um paraíso fiscal, uma espécie de Singapura da Europa, já que muitas empresas tendem a deixar o país caso o Brexit seja aprovado. “A cadeia de suprimentos das empresas exige que todas estejam unidas no mesmo projeto”, me explicou. “Ao sair da União Europeia o Reino Unido rompe com essa cadeia.”
Federica Mogherini, representante da União Europeia para Assuntos Exteriores e de Política de Segurança, deixou claro que o Reino Unido está correndo riscos ao sair do Brexit. Embora sem citar o país diretamente, ela disse, durante uma conferência em Oxford, em outubro, que a força da Europa está na sua união. “Separados, os países não têm a menor condição de competir com a China ou com os Estados Unidos”, alertou. Outra preocupação da Europa Continental é ter nas suas portas um Reino Unido predador, que, ao reduzir os direitos sociais para garantir maior competitividade, acabe arruinando o mercado europeu.
Mas a radicalização não ocorre apenas do lado conservador. O Partido Trabalhista, sob a liderança de Jeremy Corbyn, seguiu para o outro extremo ideológico. Corbyn é um socialista de ideias ultrapassadas, antimercado, que pretende reestatizar empresas e aumentar os gastos públicos. Suas promessas de abolir as taxas de matrículas no ensino universitário (os ingleses pagam matrícula de cerca de 9 mil libras por ano para estudar em Oxford, algo em torno de 48 mil reais), de construir mais de 100 mil casas para os mais pobres, oferecer serviço de saúde público gratuito para todos, nacionalizando, inclusive, clínicas privadas, é vista com desconfiança por muitos. Os ingleses mais pragmáticos sabem que o país não tem dinheiro para financiar todos esses programas sociais sem provocar um gigantesco rombo nas contas públicas. Além disso, Corbyn é acusado pela comunidade judaica de acobertar parte dos membros do partido com ideias antissemitas.
A polarização entre os dois candidatos com ideias tão díspares levou o Guardian a concluir, em seu editorial de ontem, que a eleição de hoje era um momento de decisão “muito próximo ao desespero”. De qualquer forma, o Guardian considera que sair da União Europeia sem qualquer acordo, como prega Boris Johnson, será mais danoso para a economia britânica do que as propostas descabidas de Corbyn. Para o jornal, embora com ideias ultrapassadas, o Partido Trabalhista, liderado por Corbyn, ainda pode representar alguma esperança para os ingleses, já que uma das propostas do partido é fazer um novo referendo para decidir se o Reino Unido fica ou não na União Europeia. Já uma vitória de Johnson nessas eleições, prevê o editorial, afastará os ingleses da Europa e os colocará “nos braços do reacionário governo dos Estados Unidos”. E chama os eleitores à razão. Essa eleição revelará quem os britânicos, que irão para as urnas de nariz tampado, consideram o menos malcheiroso para o país.
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A repórter é bolsista do Reuters Institute for the Study of Journalism, em Oxford.