minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Jair Bolsonaro no Rio de Janeiro neste domingo Foto: Mauro Pimentel / AFP

colunistas

Como punir um ex-presidente

Abre-se em breve nossa última chance para poder dizer que as instituições funcionaram diante dos crimes de Jair Bolsonaro

Rafael Mafei | 30 out 2022_20h29
A+ A- A

Embora ainda haja pouco mais de dois meses até a transmissão formal do cargo, a derrota eleitoral de hoje representa, desde já, o fim político do governo de Jair Bolsonaro. A maioria do eleitorado brasileiro rechaçou, nas urnas, seu projeto para o Brasil. Queremos coisa diversa, mais próxima do que Lula prometeu entregar, ou do que esperamos que ele se empenhará para realizar. A legitimidade que sobra para Bolsonaro, a partir de agora, é bastante limitada: resta-lhe seguir à frente do governo federal, é claro, mas apenas para conduzir uma transição pacífica e colaborativa àqueles que assumirão o país a partir de 1º de janeiro de 2023. 

É dever legal de Bolsonaro, ante seu compromisso com a Constituição e a exigência de probidade, impessoalidade e eficiência que norteiam o exercício da Presidência da República, que ele ofereça à equipe de Lula aquilo que recebeu do time de Michel Temer há quatro anos. Logo após a vitória de Bolsonaro em 2018, Temer acolheu o nome indicado por Bolsonaro, o à época futuro ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni, como condutor da transição dentro da administração federal. Lorenzoni trabalhou diretamente com o então ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, e trouxe consigo outros nomes para imediatamente tomar pé de aspectos gerenciais, administrativos e políticos dos vários projetos e programas em curso, de modo que a mudança de governo não implicasse paralisia ou prejuízo a políticas públicas, nem lentidão do início da nova administração. A sequência de fiascos que se sucederam na Casa Civil, e que levaram Lorenzoni a deixar o cargo pouco mais de um ano depois, não foram ocasionados por sabotagem ou falta de cooperação de membros do governo Temer; foram apenas a expressão primeira da incompetência atávica que marcou todo o governo bolsonarista, hoje castigado pelas urnas.

Bolsonaro poderá gastar os dois meses que ainda tem no cargo dedicando-se ao ócio do qual diz sentir falta, aproveitando as mordomias de seu cargo enquanto o dia da passagem da faixa não chega. Isso nos custará dinheiro, mas sairá mais barato do que a alternativa: humilhado, enfurecido e inconformado, Bolsonaro poderá usar o tempo de poder que ainda lhe resta não para facilitar, mas para dificultar a transição ao novo governo. O prejuízo, nesse caso, seria sensível, pois do trabalho da equipe de transição depende, fundamentalmente, a preparação de todos os atos de governo a serem imediatamente executados após a posse do novo presidente. Restaria-nos então pensar em como reagir a esse ato final de avacalhação institucional eventualmente promovido por Jair Bolsonaro.

 

A primeira coisa a se ter em mente é que a transição de governo é matéria regulada em lei federal. Em 2002, dois dias antes da eleição que deu a primeira vitória presidencial a Lula, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, contra quem o PT fizera oposição combativa – especialmente durante aquele segundo mandato – editou uma medida provisória que disciplinou a transição de governo, prevendo a possibilidade de nomeação de uma equipe, com até cinquenta nomes, que poderia integrar-se imediatamente à administração federal. Ao final daquele ano, com o governo de transição já a pleno vapor, a MP foi convertida na lei 10.609, de 2002. A previsão legal faz toda a diferença, pois ela dá respaldo ao direito de Lula exigir, inclusive judicialmente se necessário for, a integração de sua equipe de transição à administração federal já a partir desta terça-feira. Com isso, o custo para uma estratégia de sabotagem na transição eleva-se bastante, especialmente para as funcionárias e funcionários públicos que tiverem de colocar seus nomes na formalização de atos oficiais. 

Ainda assim, essa é uma proteção limitada. Presidentes da República têm grandes poderes até o fim de seus mandatos. Politicamente, mesmo derrotado, Bolsonaro segue comandando uma legião grande de seguidores, muitos dos quais continuarão atuando no Congresso, e outros tantos na máquina federal. Tratando-se de alguém com espírito público nenhum e lealdade democrática zero, como é o seu caso, devemos nos preparar para a hipótese de que ele use seus poderes inclusive para atrapalhar o eventual trabalho da equipe de transição de Lula. Um punhado de transferências de cargos de alto e médio escalão entre ministérios, por exemplo, poderá criar um cenário de confusão e ignorância administrativa inteiramente prejudiciais à eficiência do trabalho de transição, que não tem como se executar sem genuíno compromisso e boa-fé de ambas as partes – coisa que Jair Bolsonaro não tem em relação a seus adversários.

Nesse quesito, é curioso – e preocupante – notar o quanto as normas e processos vigentes para disciplinar e responsabilizar a Presidência da República nos deixam desprotegidos. Desde que não cometa atos previstos como crimes (comuns), como corrupção ou peculato, e limite-se a atos de improbidade presidencial, como expedir ordens contrárias à Constituição (que comanda impessoalidade, moralidade e eficiência), não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados, ou agir de modo desonrado e indecoroso, é praticamente impossível, à luz da compreensão jurídica hoje prevalecente, que o presidente da República seja punido em fim de mandato. 

Há algum tempo, o STF vem decidindo que a disciplina da improbidade administrativa presidencial é compreendida pelo impeachment, de forma que apenas por essa via esses atos seriam puníveis. Mas como seria possível um impeachment nos meses finais de um mandato? Não há nem condição política nem tempo hábil (à luz do rito) para tanto. Criamos a fórmula para a improbidade perfeita – a não ser que ousemos defender que o fim do mandato implica não a impossibilidade absoluta de punir os ilícitos em final de mandato, mas apenas a perda do foro especial (no Senado) e da necessidade de autorização política (na Câmara), cabendo eventual ação de improbidade no juízo comum, como acontece com todas as demais ex-autoridades políticas do Brasil. Eis uma tese que o Ministério Público eventualmente poderá ensaiar, à luz do comportamento de Bolsonaro a partir de amanhã.

Mas mesmo sem isso, considerando o saldo de seu governo de hoje para trás, é esperado que Jair Bolsonaro gaste tempo e preocupação reunindo-se com sua equipe de defesa a partir de 1º de janeiro de 2023. Com o final de seu mandato, acabará também sua prerrogativa de foro (“foro privilegiado”), que hoje concentra a competência para acusá-lo nas mãos do Procurador-Geral da República – que procurou de tudo, menos trabalhar contra os interesses de Bolsonaro. Ao invés de concentrada nas mãos de um único órgão, os poderes de investigar e denunciar Jair Bolsonaro passarão às mãos de membros do Ministério Público dos vários locais do Brasil onde ele, em tese, cometeu crimes comuns ao longo de seu mandato, que nunca foram devidamente imputados a ele porque a dupla de zaga Aras-Lira trancou bem a defesa. Entram aqui possíveis ameaças, crimes contra a honra e delitos contra a saúde pública nos muitos municípios brasileiros onde ele potencialmente violou normas antipandêmicas. É a nossa última chance de poder dizer, sem cinismo, que as instituições terão funcionado contra os abusos de Jair Bolsonaro.