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    Ilustração: Carvall

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O ano em que votamos em perigo

Violência política abala democracia brasileira, e pleito de 2022 será um dos mais perigosos da história

Flavia Rios | 15 set 2022_09h18
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Há muitas razões para acreditar que as eleições de 2022 serão decisivas para os rumos da democracia brasileira. Muitos têm argumentado que, mais do que um ano eleitoral de confrontação com a extrema direita, esse pleito será definidor da própria identidade da nação. Pode até parecer exagerada uma afirmativa como essa, contudo aspectos do nosso convívio social e a dinâmica política fazem com que este ano seja lembrado não apenas como aquele que uniu os velhos rivais tucanos e petistas, ou que foi palco para a luta entre dois grandes gladiadores, Bolsonaro e Lula, ou mesmo como o ano do bicentenário da Independência do Brasil (com o coração de dom Pedro I e tudo). Especialmente, 2022 ganha fortes evidências de que se tornará o ano mais perigoso para o exercício dos direitos políticos ao menos desde o fim da ditadura militar (1964-85).

A essa altura do campeonato ninguém mais acredita que o Brasil de 2022 tem semelhanças com aquele país tropical e encantado escrito em prosa e verso pela nossa escola romântica ou retocado na lírica miscigenada dos já centenários modernistas brasileiros. A violência gerada e retroalimentada pelas fortes desigualdades sociais, raciais e de gênero corrói nosso tecido social faz mais de décadas. Já nos vemos e somos vistos como um dos países mais violentos do planeta. Não mais como a nação imaginada como cordial, festiva e pacífica de outrora. O país já é ranqueado como um dos lugares mais inseguros para se viver no mundo. Já se sabe também que a violência no Brasil tem cor, idade, endereço e gênero. 

Se o fenômeno da violência faz parte da paisagem da sociedade brasileira e já pode ser visto pelos quatro cantos do globo terrestre, o que dizer da violência política?

O fenômeno da violência política, embora velho de guerra no país, só agora ganha contornos mais visíveis. Para a sociedade, os meios de comunicação e até para a academia, deixa de ser um assunto episódico da vida política e vira fato incontornável no Brasil, porque se tornou corriqueiro, generalizado e ascendente. 

Não são apenas os episódios de violência por motivação política que se avolumam nos noticiários Brasil afora. Legislações e medidas inéditas na história nacional foram criadas nesses dois últimos anos com o objetivo de barrar o avanço da violência política, verdadeiro abalo sísmico na democracia brasileira.

Em 2021 foi criada a lei 14.197, que inseriu a violência política no âmbito dos crimes contra o estado democrático de direito. Com ela, revogou-se a lei de segurança nacional, criada durante a ditadura militar para legitimar a violência política de Estado contra opositores ao regime. Um mês antes foi sancionada a lei 14.192, que torna crime a violência política contra as mulheres. Na América Latina, a Bolívia saiu na dianteira, sancionando a sua legislação em 2012. Antes do Brasil, o México também sancionou lei de combate à violência de gênero na política. No Brasil, mal a legislação entrou em vigor e já tramita o primeiro caso enquadrado pela legislação. Trata-se da denúncia da vereadora de Niterói Benny Briolly (Psol) contra o deputado bolsonarista Rodrigo Amorim (PTB). A experiência traumática da parlamentar não data de hoje. Vítima de ameaças de morte desde o início de seu mandato, Benny precisou sair do país em 2021 para não ter o mesmo destino de sua colega de partido morta na cidade do Rio de Janeiro três anos antes.

De fato, em 2018 abrimos a caixa de pandora. Em 14 de março, estampamos nos jornais do mundo o estarrecedor assassinato político da vereadora carioca Marielle Franco (Psol), morta em uma emboscada ao sair de evento na Casa das Pretas, Centro do Rio de Janeiro. Em seguida, no dia 27 de março de 2018, dois ônibus da caravana de Lula foram atingidos por  tiros no Paraná. Esse caso marcou o primeiro atentado contra um candidato a presidente na história brasileira pós-abertura democrática. Durante as campanhas presidenciais, Bolsonaro sofreu uma facada. No mesmo ano de 2018, contabilizamos o segundo atentado contra um presidenciável.

Naquele ano de eleições presidenciais, essa escalada de atentados não se circunscreveu ao reino dos políticos. A violência política transbordou para o tecido social, gerando mais violência em razão de diferenças ideológicas. Paradigmático foi o caso de Moa do Katendê, assassinado em 08 de outubro de 2018 com doze facadas em Salvador. As cenas bárbaras do assassinato na Bahia não tardaram a reaparecer no pleito de 2022, agora com o tesoureiro petista do Paraná assassinado em sua festa de aniversário e o trabalhador do Mato Grosso morto pelo colega em seu ambiente de trabalho em razão de divergência ideológica.

Disseminada na vida pública, o contexto recente de insegurança democrática levou à renúncia de mandatos e até exílios, como foi o caso do deputado federal eleito Jean Wyllys, ameaçado de morte diversas vezes. Também em 2019, duas outras personalidades deixaram o país: a antropóloga Débora Diniz e Márcia Tiburi, ex-candidata à governadora do estado do Rio de Janeiro. 

 


Pesquisa inédita realizada na Universidade Federal Fluminense e financiada pelo CNPq verificou que o estado do Rio de Janeiro apresentou dados alarmantes de crescimento de assassinatos contra políticos. Cruzando dados do TSE e fontes documentais dos jornais, o pesquisador Huri Paz mostrou escalada de violência contra pré-candidatos, políticos no exercício do mandato ou agentes públicos em cargos executivos, como secretários e assessores. O pesquisador fluminense, em seu trabalho intitulado
Voto de Sangue, revelou que desde o ano da promulgação da nossa Carta Magna em 1988 até 2020 a violência política só aumenta e também ganha formas mais descaradas.

A curva ascendente da violência política também foi notada pelos pesquisadores da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio, que monitora o fenômeno em âmbito nacional. Segundo pesquisa realizada pela instituição, por meio do grupo de investigação eleitoral, os casos de violência política até meados de 2022 já são maiores que os verificados no mesmo período nas últimas eleições municipais, realizadas em 2020, onde já foi identificado um número elevado de denúncias, ameaças de morte, agressões e ataques a agentes civis, jornalistas e candidatos ao pleito eleitoral.

A violência motivada por intolerância política não está longe de nós. Não é caso isolado que aparece em noticiário televisivo. A violência política já passeia nas ruas brasileiras bem descontraída: ameaça pessoas de opiniões opostas, persegue opositores, vocifera injúrias, incita o ódio e o desrespeito, performa abordagens agressivas, manda mensagens de terror por WhatsApp, se apresenta em perfis falsos nas redes sociais, escorraça oponentes em protestos e comícios de ruas, acossa jornalistas (especialmente se forem mulheres), intimida políticos e seus assessores, torna-se, enfim, assunto em conversa de bares, comentários frequentes em redes sociais, tema no almoço de domingo. Perigosamente, a violência política se naturalizou no Brasil desde as últimas eleições presidenciais, e seu lugar cômodo nesse pleito eleitoral dá sinais de que não pretende sair tão logo da política brasileira. 

O cenário de violência política em que vivemos dá mostras de que a corrosão democrática não atingiu apenas os poderes políticos e as instituições. E o que é ainda pior: nem todas as suas formas e extensões podem ser coibidas e enquadradas pelas inovações legais do país. Isso porque a violência política é sintoma da erosão dos valores democráticos no país, isto é, a capacidade de garantir o debate de ideias, de estabelecer diálogo, de conviver com opiniões diversas, de  reconhecer e se relacionar com quem pensa diferente de nós. Escusado é dizer que a violência política é um atentado contra às liberdades civis e políticas, portanto, um risco para o exercício da cidadania, esta, por sua vez, é o oxigênio da democracia. 

Como nos ensina a filósofa Hannah Arendt, onde há violência não há política. Se queremos restaurar a política no país, será preciso antes estancar a fonte da intolerância que gera a violência política. A produção e execução de medidas de combate ao problema são bem-vindas e necessárias. Todavia, sem extirpar as raízes profundas da violência política, o Brasil não deixará tão cedo de ser cenário para esse filme de terror.