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    Tarcísio de Freita argumenta câmeras corporais constrangeria policiais, mostra um completo desconhecimento sobre o programa Olho Vivo, que está em sintonia com as melhores práticas de polícias mundo afora Karime Xavier/Folhapress

colunistas

Tarcísio e o sonho dos policiais jagunços

Batalhões da PM que adotaram câmeras corporais reduziram mortes em 84%; denúncias de corrupção também caíram

Samira Bueno | 21 out 2022_09h33
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O plano de governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), candidato ao governo de São Paulo que lidera a corrida eleitoral, prevê a revisão da política de câmeras corporais adotada pela Polícia Militar do estado. Em entrevista no início do mês à Rádio Jovem Pan, o candidato prometeu que, caso eleito, vai retirar a câmera “com certeza”, sob o argumento de que “é uma situação deixar o policial em desvantagem em relação ao bandido”. Tarcísio, candidato de Bolsonaro, parece ter comprado a ideia do chefe, que há anos trava uma batalha pela ampliação do excludente de ilicitude na Câmara. O argumento de ambos é o de que o uso de câmeras corporais constrangeria o policial e que sem a tecnologia os infratores teriam que “respeitar” a polícia. Seguindo essa lógica, os criminosos teriam a certeza de que seriam mortos pelos policiais militares e, por isso, não transgrediriam. Um argumento no mínimo questionável se considerarmos que ambos são do Rio de Janeiro, estado em que as polícias produzem altíssima letalidade e que sofre com uma epidemia de violência e de tiroteios a céu aberto. A política de segurança pública do Rio de Janeiro não é exemplo para São Paulo.

Mas, para além dos bairrismos que circundam esse debate, o fato é que Tarcísio mostra um completo desconhecimento sobre o programa Olho Vivo, que vem sendo prospectado pela Polícia Militar desde 2014 e está em sintonia com as melhores práticas de polícias mundo afora. O primeiro problema da concepção de Tarcísio sobre a PM é a ideia de que o policial é um matador, o jagunço a serviço do governo do estado. Há muitos anos a Polícia Militar do estado de São Paulo tem adotado práticas e políticas que buscam a profissionalização de seus servidores, e os resultados positivos na redução dos indicadores de violência são reflexo disso. Desde 2000, a redução da taxa geral de homicídios é da ordem de 80%, um resultado sem precedentes que coloca o estado com a menor taxa de violência letal do país. O segundo problema do argumento do candidato é que ignora todas as evidências lastreadas pelos dados oficiais da Secretaria de Segurança Pública (aquela que ele quer extinguir, seguindo o modelo carioca).

O Programa Olho Vivo teve início em agosto de 2020 com a implantação de 585 câmeras corporais em três batalhões de Polícia Militar da Região Metropolitana do estado. Em 2021 o programa seria expandido para outros 15 batalhões e até o meio de 2022 já operava em ao menos 47 batalhões. A política, longe de se restringir a um fetiche tecnológico, investiu em outras medidas de compliance como a aquisição de equipamentos menos letais, a criação da Comissão de Mitigação de Não Conformidades, que analisa casos em que haja mortos e feridos em decorrência de intervenções policiais, e o fortalecimento do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar, que cuida do acompanhamento dos policiais envolvidos em situações de alto risco. No mesmo período, a Secretaria da Segurança Pública reativou a Comissão de Monitoramento da Letalidade, espaço que reúne representantes das instituições policiais, Ministério Público, Defensoria Pública e sociedade civil organizada para debater casos de uso da força letal.

E como liderança é algo essencial quando o assunto é Polícia, vale destacar o papel importante que o ex-comandante geral da corporação teve na implementação do programa. O coronel Fernando Alencar, ex-comandante da Rota, assumiu a PMESP em março de 2020 e foi essencial para as medidas adotadas. Alencar foi substituído em maio deste ano pelo coronel Ronaldo Vieira, que comandou o Batalhão de Choque e deu continuidade às medidas. Os resultados preliminares do programa são surpreendentes. Em 2021, quatro policiais morreram durante o serviço no estado de São Paulo, o menor número em 31 anos. A redução da letalidade provocada por policiais militares em serviço também mostrou redução significativa. Após um recorde no primeiro semestre de 2020, quando 435 pessoas foram mortas em intervenções policiais, os números passaram a cair em todo o estado. A comparação entre o primeiro semestre de 2020 e o primeiro semestre de 2022 mostra que a redução na letalidade policial foi de 71,7%, com 123 vítimas nos seis primeiros meses deste ano. A comparação entre os batalhões que já adotaram a política de câmeras corporais com aqueles que não possuem a tecnologia indica que a queda tem se mostrado consistente em todo o estado, mas mais elevada nos que possuem a bodycam. Nos batalhões que adotaram as câmeras as mortes passaram de 271 no primeiro semestre de 2020 para 43 mortes no primeiro semestre deste ano, redução de 84%; nos demais batalhões, as mortes passaram de 164 no primeiro semestre  de 2020 para 80 no primeiro semestre de 2022, redução de 51,2%. Os batalhões que compõem o programa Olho Vivo responderam por 62,3% de toda a letalidade policial do estado no primeiro semestre de 2020, período imediatamente anterior ao início de implementação do programa, mas no primeiro semestre deste ano a letalidade nessas unidades correspondeu a 35% dos casos.

O resultado mais surpreendente ocorreu na Rota, que recebeu as câmeras em junho de 2021. No primeiro semestre de 2020 a unidade tinha sido responsável por 53 mortes em intervenções policiais em serviço e por 39 mortes no primeiro semestre de 2021. No primeiro semestre deste ano, já com o uso das câmeras corporais, apenas uma pessoa foi morta pela unidade.

Mas será que a Polícia Militar deixou de trabalhar nesses dois anos de programa? Segundo um levantamento realizado pela própria corporação, os flagrantes nas unidades que utilizam câmeras cresceram 41,4% e as apreensões de armas de fogo subiram 12,9%. Entre os demais indicadores de violência do estado, o número de vítimas de letalidade violenta caiu 8,4% no primeiro semestre deste ano em comparação ao mesmo período do ano anterior, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz

Outro provável resultado da adoção das câmeras corporais, ainda difícil de medir, é a redução dos casos de corrupção policial. Parece evidente que o policial que utiliza a tecnologia será constrangido a desviar ou corromper se ameaçado de produzir provas contra si mesmo. Segundo dados do relatório da Ouvidoria de Polícia do estado, no ano de 2019 foram protocoladas 115 denúncias de corrupção passiva e 102 denúncias de concussão (crime praticado por funcionário público, consiste em exigir para si vantagem indevida). Em 2021, os casos de corrupção passiva tiveram redução de 16,52%, passando a 96 casos, e os casos de concussão tiveram queda de 40,2%, passando a 61 denúncias. 

Ou seja, diante dos dados apresentados, parece difícil compreender a justificativa dada pelo candidato que lidera a corrida pelo Palácio dos Bandeirantes para remoção das câmeras corporais. Se as estatísticas oficiais do estado de São Paulo indicam êxito na redução de policiais assassinados, no número de pessoas mortas em intervenções de policiais, nos demais assassinatos e nas denúncias de corrupção, qual seria afinal a razão para a revisão da política? A quem interessa uma polícia mais corrupta e violenta?