Elisete Cardoso*, “a divina”, grande dama da música popular brasileira, foi pioneira da bossa-nova: em 1958 participou do antológico LP Canção do amor demais, com músicas dos então novos compositores Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, onde se ouviria pela primeira vez a batida de violão de João Gilberto na faixa Chega de saudade. Ambas entrariam para a história, a música e a batida, a partir de então, totalmente amalgamadas. Dentre as músicas gravadas, As praias desertas, Janelas abertas, Eu não existo sem você, Outra vez, Estrada Branca, Modinha, todas de Vinicius e Tom. Apesar de Elisete não ser uma cantora cool, foi ela a primeira que gravou as canções do que seria em breve chamado de bossa nova.
Quando Elisete ouviu as canções de Tom e Vinicius ficou preocupada, conta Sérgio Cabral, na biografia Elisete Cardoso, uma vida. Ela achou as músicas sofisticadas demais, até pareciam eruditas, ainda mais com os lindos arranjos que o Tom escreveu, usando uma instrumentação rara para a música popular – harpa, fagotes, trompas. Um luxo só! Mas passado o estranhamento, cantou divinamente.
No entanto, é bom ressaltar que sua forma de cantar não era cool, pois sua voz tinha um maravilhoso vibrato e também muita potência, volume; suas interpretações eram “quentes” exalavam sentimentos, emoções. Vinicius escreveu: “Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos acrescenta ainda mais, pois fica sendo a obra conjunta de três grandes amigos; gente que se quer bem para valer, gente que pode, em qualquer circunstância, contar um com outro; gente, sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas a diversidade dos sambas e canções exigia uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular, com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se para uma noite de serenata.”
Eu não existo sem você, com Elisete e João Gilberto
Elisete nasceu em 16 de julho de 1920. Aos cinco anos de idade, “estreou” como cantora no palco da Kananga do Japão, uma casa de festas que ficava na Praça Onze e que tinha como frequentadores Sinhô, Pixinguinha e João da Baiana. Desde menina, já tinha desejo de ser cantora. Aos dez anos, por causa das dificuldades econômicas da família, precisou abandonar os estudos, coisa que sempre lamentou.
Elisete teve ligação com a comunidade baiana, tão fundamental para a formação e consolidação do samba carioca. Menina ainda, frequentava a casa de Tia Ciata. Donga descreve as festas na casa da famosa baiana: “Conforme a quantidade de pessoas, uns – principalmente, os mais velhos – preferiam brincar no quintal, onde se realizavam os batuques. Os homens, geralmente, tocavam pandeiro, prato e faca de mesa, violão e cavaquinho (sem palheta). Quando o samba era importante, aparecia o maior flautista do gênero, João Flautim. As mulheres, por sua vez, ostentavam balangandãs, camisu, cabeção de crivo, saias bordadas e anáguas de crivo gomadas. Os calcanhares sempre bem arranhados com cacos de telha. Combinava-se se o samba seria corrido ou partido alto. Se fosse partido alto, os veteranos ficavam perto dos tocadores, raiadores e das cantoras de chulas, estas com seus panos de costa ou xales, geralmente de rica confecção. Assim que acabava a parte cantada, as baianas davam início à dança, rodando três vezes em torno dos músicos, fazendo o miudinho (mexendo os quadris), deixando cair o xale até a cintura. Os sapateados das baianas arrancavam aplausos”.
Miudinho – motivo popular recolhido e adaptado por Bucy Moreira, Raul Marques e Monarco, com Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela
Quando Elisete fez dezesseis anos, morava com os pais e os tios, Ivone e Pedro. Tio Pedro era seresteiro e frequentador das rodas de choro, amigo de músicos importantes. Por causa dele é que em sua festa de aniversário compareceram Jacob do Bandolim, Pixinguinha, João da Baiana e Dilermando Reis. Pois bem, foi então que ela cantou Duas lágrimas, acompanhada por Jacob e sua Gente: “Você é uma cantora extraordinária”, foi o que Jacob falou depois que Elisete cantou.
Seu primeiro sucesso foi a gravação de Canção de amor (1950). Em 1953 Vinicius de Moraes escreveu, numa crônica, que se surpreendera com o canto de Elisete: “com a sua magistral interpretação de Canção de amor, um samba com uma linda melodia e uma letra fraca, mas que, na voz dessa grande dama da música popular carioca, conseguiu me revirar completamente. A verdade é que Elisete dava aula de canto no disco em questão e eu me pus a ouvi-la furiosamente, dezenas de vezes por dia. A música me fazia sofrer, me colocava num espaço diferente do mundo, me abraçava como uma mulher, sei lá.”
Canção de amor – Chocolate e Elano de Paula
Elisete foi também a primeira cantora popular a interpretar Villa-Lobos. Isso aconteceu no Teatro Municipal de São Paulo e do Rio em 1963. Ela cantou as Bachianas número 5, um sucesso estrondoso: “Entrou de branco, devagar, sorrindo com os olhos, senhora de todos nós” escreveu um jornalista da época.
Em 1965, depois de assistir ao show Rosa de Ouro, idealizado, escrito e dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, do qual faziam parte Clementina de Jesus, Araci Cortes, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Anescar e Nelson Sargento, Elisete ficou absolutamente fascinada pelo que acabara de ouvir e ver. O resultado disso foi o LP Elizeth sobe o morro (1963) onde gravou Cartola, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Zé Kéti.
A flor e o espinho, Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Alcides Caminha
Luz Negra, Nelson Cavaquinho, Amâncio Cardoso
O sol nascerá, Cartola e Elton Medeiros
Sim – Cartola, Osvaldo Martins – com Elisete, Cartola, Paulinho da Viola
Em 19 de fevereiro de 1968 reúnem-se Elisete, Jacob do Bandolin e o conjunto Época de Ouro e Zimbo Trio, sob a direção de Hermínio Bello de Carvalho num show histórico no teatro João Caetano do Rio. O show foi gravado em três LPs históricos.
Mulata Assanhada, Ataulfo Alves – com Elisete, Jacó e Época de Ouro, Zimbo Trio
Lamentos – Pixinguinha, Vinicius de Moraes
Chão de estrelas – Silvio Caldas, Orestes Barbosa
E agora vamos ouvir – um luxo só! – esta grande dama da música popular brasileira. Sobre ela escreveu Antonio Maria numa crônica: “Elisete é, sobretudo, uma pessoa fina.” Considerada a primeira dama da canção popular, Elisete nunca quis ser mais que ninguém. Numa entrevista declarou: “Quero apenas ser uma cantora brasileira”.
É luxo só – Ari Barroso, Luiz Peixoto
*Escolhemos a grafia Elisete Cardoso em vez de Eliseth Cardoso por que é assim que Sérgio Cabral, seu biógrafo, se refere a ela.