O ministro da Economia, Paulo Guedes, não mais associado à serventia de um Posto Ipiranga, é mantido pelo presidente Jair Bolsonaro em uma espécie de geladeira, de onde é retirado para acalmar o mercado quando cresce o pessimismo geral com o controle das contas públicas. O próprio ministro, de vez em quando, se mete nesse refrigerador para esfriar as reações a seus destemperos ou a zigue-zagues na gestão da economia – como em meados de setembro, quando Bolsonaro ameaçou com “cartão vermelho” quem falasse em público sobre as propostas da equipe econômica para financiar programas sociais.
Os recolhimentos do ministro são breves, movidos pela mesma obstinação dos raros bilionários que se enfiam em câmaras criogênicas para aguardar, em animação suspensa, a cura de algum mal ainda sem resposta da ciência. Na semana passada, porém, Guedes foi obrigado a sair do frio cuspindo fogo: falando a jornalistas, chamou de “desleal” e “despreparado” o ministro de Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que teria questionado sua competência como economista, em reunião com analistas de uma corretora em São Paulo.
Para desagrado dos executivos financeiros, que consideram indispensável conter a expansão da dívida pública por meio do chamado teto de gastos, Marinho teria ainda avisado que o governo lançará um novo programa de apoio aos pobres, o Renda Cidadã,“da melhor maneira ou da pior”. Se confirmadas as declarações do colega de ministério, ele teria comprovado ser um “fura-teto”, reagiu Guedes com os jornalistas.
Mais tarde, na mesma sexta-feira, porém, Guedes falou de novo à imprensa, em tom mais brando, e chegou a cogitar uma possível mudança do teto de gastos, em caso de nova onda pandêmica da Covid-19. No fim de semana, o presidente almoçou com Guedes no esforço aparente de recolher novamente o ministro à câmara fria. E, para a noite desta segunda-feira, 5, bombeiros improvisados articularam um jantar do ministro com outro recente desafeto, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, na casa do ministro do Tribunal de Contas da União Bruno Dantas, para fazer avançar a agenda econômica no Congresso.
Conflitos no governo entre setores mais ortodoxos e outros mais sensíveis a pressões por medidas de crescimento imediato são uma tradição na crônica da República, que já registrou a briga entre Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen na ditadura militar, Pedro Malan e Clóvis Carvalho, sob Fernando Henrique Cardoso, entre outras disputas, ora vencidas pelos desenvolvimentistas, ora pelos fiscalistas.
A novidade é um presidente visivelmente incapaz de arbitrar entre os dois grupos, e por uma razão muito simples: Bolsonaro quer que seus auxiliares lhe tragam algo como uma cloroquina fiscal, que ele possa exibir como remédio milagroso, sem efeitos colaterais sobre a imagem do governo, capaz de curar, numa só dose, a enxaqueca dos que temem uma explosão incontrolável das contas públicas e as dores de cabeça de quem o pressiona para fazer obras e atender aos pobres (e eleitores) que ficarão sem auxílio emergencial no ano que vem.
Os movimentos de baixa na Bolsa de Valores e as altas das taxas longas de juros e da cotação do dólar, numa economia com investimentos estagnados em torno de 15% do PIB, mostram que os agentes econômicos não se dispõem a engolir qualquer placebo. Bolsonaro parece saber que, apesar de estar relativamente “precificada” no mercado a saída de Guedes, ele não tem a opção de nomear um Pazuello – um ministro que, como o da Saúde, bata continência ao presidente para fazer o que o ministro antecessor recusou, por respeito à ciência.
Mais que defender o teto de gastos, Guedes, no desabafo contra Marinho, saiu em defesa da própria imagem, que as reviravoltas do governo Bolsonaro têm coberto de hematomas. Na quarta-feira, 23, ao falar com jornalistas após uma reunião com a área política, no Palácio do Planalto, o ministro foi interrompido por dois homens de confiança de Bolsonaro que o ladeavam, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), e o ministro-chefe da secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, e conduzido pelo militar, que lhe pôs a mão no ombro, para longe dos repórteres. Dias antes, sua equipe havia sido repreendida publicamente pelo presidente, por ter divulgado estudos sobre o financiamento ao que seria o Renda Brasil, programa social para substituir o Bolsa Família.
A perda do prestígio já abalado acentuou-se na semana passada com a mais recente trapalhada governista: dois dias depois de ouvir, calado, o vice-líder do governo e relator do orçamento Márcio Bittar (MDB-AC) anunciar que o governo cogitava financiar a reformulação do Bolsa Família com dinheiro reservado aos precatórios (dívidas do governo confirmadas pela Justiça), o ministro chamou a medida de “puxadinho” e a rechaçou, por “brincar com calote”, como descreveu a ideia, mais tarde. Bittar, amuado com Guedes, chegou a dizer a amigos que a ideia dos precatórios teria sido lembrada pela própria equipe da Economia.
Nesta segunda, 5, de manhã, a temperatura já parecia ter baixado novamente. Após encontro com Bittar, que disse tê-lo procurado para “receber orientações”, Guedes apareceu na portaria do ministério da Economia e, sorridente, ouviu o político, ao seu lado, defender o teto de gastos e prometer a apresentação do projeto de Renda Brasil nesta quarta-feira, 7. Terminado o anúncio, Guedes retirou o senador da frente dos repórteres com um abraço amigável e a explicação: “é como fazem comigo”. Detalhe: Bittar havia tomado café da manhã no Palácio da Alvorada, com Bolsonaro, Rodrigo Maia e os ministros Ramos e… Marinho.
O limbo de Guedes e a confusão governista são consequência direta da própria inabilidade política do ministro, mas, principalmente, da maneira como Bolsonaro entende o que seja governar. O ministro ouve poucos conselheiros e é ríspido com quem o contraria. O presidente exibe sua incapacidade – ou desinteresse – de fazer as articulações políticas que se esperariam de um líder, no Congresso e dentro do próprio Executivo.
Guedes e a equipe de executivos privados que levou a Brasília adotaram, ainda na campanha eleitoral, um lema em inglês: “no retreat, no surrender” (sem retirada, sem rendição). De lá para cá, ele já foi obrigado a recuar em várias batalhas, da criação da CPMF a privatizações; mas tem se mostrado pouco disposto a se render e pedir para sair. Até a última rusga com Marinho, seus interlocutores garantiam que a demissão não estava nos planos do ministro. Não parecia ser um Guedes demissionário o que foi à entrevista com Bittar, no fim da manhã de segunda.
A inexperiência de Bolsonaro, político do baixo clero sem história relevante em nenhum partido, ajuda a tornar disfuncional a articulação do governo, especialmente nas vezes em que o presidente deixa seu hábito de terceirizar as decisões. No começo do ano, quando se viu incapaz de arbitrar as pressões dos políticos por mais gastos, nomeou Marinho como ministro do Desenvolvimento Regional, retirando-o da equipe de Guedes, onde era secretário e a principal ponte do governo com os parlamentares durante a reforma da Previdência. Na prática, privou da equipe do corte de gastos um de seus melhores jogadores no campo parlamentar e o escalou para o time dos gastadores.
Marinho engajou-se na elaboração de um plano para investimentos e aumento de despesas públicas, uma pauta típica de seu novo ministério, simpática ao Congresso – e, lembram amigos, mais alinhada com uma eventual candidatura a governador do Rio Grande do Norte, pretensão que ele nega com veemência. Resultado: já em abril, os dois mal se falavam em cerimônias públicas.
Outro político fundamental na aprovação da reforma da Previdência sob Bolsonaro, no ano passado, foi Rodrigo Maia – aliás, um liberal como Guedes, com quem tem muitas ideias coincidentes em economia. O ciúme de Bolsonaro, que passou a ver Maia como possível concorrente à Presidência, em 2022, e a falta de traquejo político de Guedes envenenaram o diálogo com o presidente da Câmara, que, na semana passada, ironizando no Twitter o desprestígio do ministro, recomendou a ele que assistisse o filme A Queda, sobre a derrocada de Hitler.
Os desencontros dos últimos dias mostram, mais uma vez, o grau de improviso da cúpula governista. Para financiar um novo programa social, uma crescente unanimidade entre economistas de diversos credos políticos aponta para medidas impopulares, como o aumento da maior alíquota do imposto de renda com o fim de descontos de gastos com saúde e educação, e a substituição de programas sociais como o abono salarial e o seguro defeso. São ideias que voltaram à mesa de discussões no Planalto com a possibilidade firme de serem anunciadas só após as eleições deste ano, apesar de vetadas publicamente por Bolsonaro. Podem simplesmente somar-se à volumosa lista de recuos em declarações do presidente – que aliás proibiu sua equipe de chamar a reformulação do Bolsa Família de Renda Brasil, termo que continua sendo usado por Guedes.
Guedes se recusa a sair do governo por baixo. Bolsonaro, em seus planos de reeleição, continuará chutando o ministro de volta ao freezer, sem arriscar sua popularidade, toda vez que suas propostas forem rechaçadas pela opinião pública. Mas, de tanto entrar e sair da geladeira, o ministro da Economia faz torcer o nariz de seus interlocutores no Congresso e no setor privado, que não veem nele nem autoridade nem capacidade de acomodar, sem pirotecnias orçamentárias, as variadas demandas sobre o orçamento e os apelos da base política do governo por mais investimentos públicos, em setores como infraestrutura.