O Brasil está se desfazendo. Não há novidade nessa constatação. Estamos assistindo, impotentes, ao desmanche do país, do arremedo de sociedade que acreditávamos ainda ser, da ideia (que sempre considerei ingênua e tola) de que aqui iria brotar uma civilização diferente, alegre, tolerante, com contribuições a dar ao mundo. Estamos vendo a face real desse recanto do aconchego. Nossas iniquidades de sempre estão em alta. Violência e ignorância são os traços definidores de uma sociedade que se arma e se fanatiza progressivamente. Mais do que traços que nos distinguem, violência e ignorância são o fundamento do projeto político de Jair Bolsonaro. São o seu ideal de nação. Até agora esse projeto e esse ideal têm ganhado de goleada. Jamais fomos tão estúpidos e tão brutais. A cruzada do obscurantismo segue sua marcha derrubando obstáculos.
Escrevo sob o impacto da pesquisa Datafolha publicada nos últimos dias. Os resultados escandalizam, mas não surpreendem. Passei algum tempo digerindo a primeira página da Folha de domingo, 13 de dezembro. A manchete dizia: “Cresce parcela que não quer se vacinar contra a Covid-19.” Ancorado no Datafolha, o jornal informava que 22% dos brasileiros simplesmente não querem tomar vacina nenhuma. Em agosto, o universo refratário à imunização somava 9% da população. Vitória de Bolsonaro. O Datafolha aferiu ainda que metade dos brasileiros – sim, 50% – rejeita para si o imunizante desenvolvido pela China. Outra derrota para o país e mais uma vitória acachapante de Bolsonaro. Não por acaso, 52% dos entrevistados consideram que o presidente não teve culpa nenhuma pelo morticínio que a pandemia provocou no Brasil. A eles se somam outros 38%, para os quais Bolsonaro tem alguma responsabilidade, mas não é o principal culpado pelas mortes. Outra vitória retumbante de Jair Messias.
Desnecessário enumerar aqui a cadeia de fatos e de razões que fazem de Bolsonaro e de seu governo os grandes responsáveis pela tragédia em curso no país. Não houve apenas negligência e omissão. O presidente que agora sabota a vacinação agravou o problema de várias maneiras – deixando de usar máscara, aglomerando as pessoas, fazendo propaganda de remédios refutados pela medicina, induzindo a população a sair de casa, trocando duas vezes o ministro da Saúde ao longo da pandemia para colocar lá, primeiro interinamente, e bem depois de maneira efetiva, um general inepto que confessou, entre outras coisas, desconhecer o SUS. A lista de desmandos é longa. As atrocidades de Bolsonaro, no entanto, vão sendo metabolizadas pela sociedade, que se envenena. Estamos, de fato, sendo corroídos por um bicho novo e terrível. Bolsonaro é um vírus que se alimenta das crises que ele permanentemente cria ou agrava – vírus para o qual não há vacina à vista. O sistema político parece tratá-lo como uma gripezinha e espera que ela passe sozinha. Não vai passar.
Volto à capa da Folha de domingo porque nela vejo estampada a nossa impotência. Acima da manchete, atravessando a página de ponta a ponta, há a tarja amarela, no meio da qual se lê “#Use Amarelo pela Democracia”. Não me dei ao trabalho de saber quem inventou a campanha, que se arrasta há meses nas edições dominicais do jornal. Sua inspiração, como é óbvio aos senhores grisalhos da minha geração, está na campanha pelas Diretas Já, que inflamou o país no início dos anos 1980. Todos os que eram pelo fim da ditadura militar usávamos camiseta amarela no idos de 1984. Encampando o movimento popular, a Folha se transformou no veículo de imprensa mais identificado com a causa democrática. A campanha pelas Diretas Já foi o lastro político que deu legitimidade às mudanças internas que o jornal começava a fazer para se transformar na grande referência da imprensa brasileira nas décadas seguintes.
Tudo isso é história.
O remake publicitário da camisa amarela remete a Adeus, Lênin. Parece que alguém foi acordado de um sono profundo depois de quarenta anos com a missão de fazer às pressas alguma coisa parecida com “aquela peça a favor das Diretas”. Deu nisso. Entre a indiferença do meio empresarial, à vontade com Bolsonaro, e a desconfiança do público progressista, pouco à vontade com as ambiguidades do jornal, a campanha caiu no vazio. Parece apenas um golpe de marketing mal pensado, não um chamamento em defesa de valores fundamentais que estão sendo ameaçados. Faltou inclusive sensibilidade para as circunstâncias que estamos vivendo. Se a ideia é apelar em plena pandemia, seria melhor dizer #Fique em Casa e Use Pijama Amarelo pela Democracia. Talvez eu pagasse esse mico.
O efeito de comparação com os anos 1980 se torna ainda mais inevitável quando lemos o editorial que o jornal publicou na mesma capa de domingo. O título “Vacinação Já” remete, de forma consciente ou não, às Diretas Já. Num e noutro caso, a Folha se coloca do lado certo. Ao se pronunciar pela vacinação obrigatória o quanto antes, o jornal está endossando uma obviedade, mas isso deixou de ser banal a partir do momento que uma parte da população está sendo abduzida pela cruzada contra a imunização. Não se trata, portanto, de diminuir o gesto político do editorial. Meu ponto é outro.
O tom do texto é bastante raivoso. Mais do que isso, o editorialista abusa dos adjetivos, como se quisesse deixar desenhada a indignação do jornal. Logo na abertura, pode-se ler que “a estupidez assassina” do presidente passou de todos os limites. Na frase seguinte, diz-se que é preciso deixar de lado a “irresponsabilidade delinquente”. Mais adiante, o ministro da Saúde é descrito como um “fantoche apalermado”; no parágrafo final, há um brado: “Basta de descaso homicida!” Em todas essas passagens que citei, as qualificações (desqualificações, na verdade) vêm aos pares – estupidez assassina, irresponsabilidade delinquente, fantoche apalermado, descaso homicida. Parece irônico que o mesmo jornal tenha economizado um adjetivo composto durante a campanha, quando orientou seus repórteres a identificar Bolsonaro como um político de “direita”, e não de “extrema direita”. Agora, no editorial, a Folha diz que “Bolsonaro e seu círculo de patifes” serão enquadrados de alguma forma, pela política ou pela Justiça.
O conjunto do texto cria o efeito de um espancamento – toma aqui, segura essa, e mais essa, agora aguenta mais uma! Ao mesmo tempo, a saraivada de socos e pontapés verbais parece ser um sintoma da saturação do poder das palavras diante da enormidade do momento. Mimetismo e impotência se misturam. De um lado, o jornal acaba falando como Bolsonaro; de outro, permanece aquém de sua figura inominável. Por justa que seja a revolta, que é de todos nós, a retórica gira furiosamente em falso, como se os adjetivos – delinquente, palerma, patifes, homicida, assassino – se transfigurassem em onomatopeias a descrever uma pancadaria fictícia – pow!, bam!, sok!, biff, splatt! O vilão sai ileso e sorridente do massacre.
Que o editorial de capa da Folha não seja memorável é um detalhe irrisório em meio à desgraça que estamos vivendo. Talvez por fazer parte desse ecossistema de futuro incerto, o dos jornalistas, eu exagere na dose de saudosismo e idealize um pouco os tempos em que as engrenagens da imprensa funcionavam melhor. “É bonito ser um grande escritor, ter os homens na frigideira de sua frase e fazê-los saltar como castanhas.” Eu leio esse trecho de uma carta de Flaubert e me lembro da sensação que tinha diante de alguns editoriais de Marcelo Coelho.
Volto ao presente. Vimos ao longo deste ano a imprensa consolidar a imagem de que é um instrumento de defesa da população diante de um governo que atua a favor da morte em larga escala, além de promover o estrangulamento das instituições, entre elas a própria imprensa. A pandemia, em si mesma, e a maneira como foi destratada por Bolsonaro deram ao jornalismo uma oportunidade de ser relevante (isso vale para parte da imprensa, porque é preciso ter em mente a milícia da notícia que está entrincheirada na Record, na Jovem Pan, no SBT e em veículos congêneres). Mas essa é uma janela de relevância dentro de um quadro mais amplo de perda progressiva de influência. A capacidade instalada das redações é cada vez menor, o poder de fogo dos grandes veículos é declinante.
O país em breve chegará aos 200 mil mortos. Em outros tempos, Bolsonaro provavelmente não resistiria à cobertura da pandemia feita pelo JN. Depois do que fez, o presidente apesar de tudo conta hoje com cerca de 35% de aprovação popular. Não estou obviamente sugerindo que bom mesmo era o tempo em que a Globo manipulava a edição de debates presidenciais, fazia e derrubava ministros. Digo apenas que o enfraquecimento da imprensa tradicional, a despeito de todos os seus problemas, imensos, não vem acompanhado de nenhum ganho democrático, pelo contrário.
Ao mesmo tempo em que a internet dinamitou as antigas bases materiais do jornalismo profissional, as redes sociais que brotaram dessa revolução tecnológica são como minas terrestres espalhadas pelo chão da realidade. Estamos permanentemente sujeitos à explosão de uma fake news sob nossos pés. Se não podemos saber de antemão qual será o tamanho do estrago provocado por cada mina, é certo que nenhuma delas é inofensiva. Alguém sempre vai se machucar. Conforme a definição cristalina do historiador Timothy Snyder, fake news é um fato fictício que se faz passar por jornalismo com o duplo objetivo de disseminar confusão a respeito de determinado acontecimento e desacreditar o jornalismo como um todo. É nisso que estamos metidos.
Embora o elogio do jornalismo tenha se tornado um tópico quase obrigatório nesses tempos de guerra (contra a pandemia e contra a máquina de notícias falsas), eu sinceramente não vejo muita razão para confraternizações ou manifestações de heroísmo. Um pouco mais de pudor e senso crítico não nos fariam mal.
Em fevereiro de 2018, seis meses antes de morrer, Otavio Frias Filho escreveu na Ilustríssima uma coluna com o título Jornalismo, Um Mal Necessário. Não vou reproduzir aqui os argumentos que ele mobiliza para defender por que se trata de um mal e por que esse mal é necessário. É fácil encontrar o texto na internet. A definição paradoxal e nada celebrativa, tão caraterística do modo de pensar do autor, deveria nortear um pouco mais nossa atividade. Posso estar enganado, mas Otavio estaria hoje mais preocupado em encontrar uma vacina contra Bolsonaro (para aplicar na testa, ele diria brincando) do que em estampar na capa do jornal que comandou por três décadas uma fitinha amarela.