“Temos que ter a humildade de admitir que não temos a menor ideia do que está acontecendo”, disse o arqueólogo argentino Luis Alberto Borrero, professor da Universidade de Buenos Aires. Dirigia-se a colegas reunidos em Santa Fé, nos Estados Unidos, num congresso sobre a ocupação da América. Referia-se à falência do modelo de povoamento do continente chamado de Clovis First, segundo o qual os primeiros chegaram ao Alasca por volta de 15 mil anos atrás, vindos da Sibéria. O nome da teoria vem da cidade do Novo México na qual foram encontradas pontas de lança fabricadas por uma população que ocupou parte das Américas do Norte e Central por volta de 13 mil anos atrás.
O modelo de Clóvis é incapaz de explicar um número cada vez maior de sítios arqueológicos muito antigos encontrados em vários pontos do continente americano. Dentre os arqueólogos que trabalham com o povoamento da América, não são poucos os que descrevem a situação como o colapso de um paradigma, usando um termo popularizado por Thomas Kuhn no livro A Estrutura das Revoluções Científicas, de 1962. O golpe de misericórdia no paradigma de Clóvis foi dado com a descoberta do sítio de Monte Verde, no sul do Chile, ocupado há pelo menos 14.600 anos. Se havia humanos ali nessa época, os primeiros americanos não poderiam ter chegado na data anteriormente aceita.
O arqueólogo que liderou as escavações de Monte Verde foi o norte-americano Tom Dillehay, atualmente pesquisador da Universidade Vanderbilt, no Tennessee. Numa entrevista durante o congresso em Santa Fé, ele apontou lacunas que tornam o modelo inviável, como a ausência de sinais da cultura Clóvis no Alasca e no noroeste do continente e a falta de consenso entre os arqueólogos sobre como deve ser um sítio dessa cultura.
“O modelo sequer consegue explicar a si próprio. Como se pode sustentar Clovis First quando há lacunas enormes no argumento baseado nos dados disponíveis?”, questionou Dillehay. “Esse modelo está morto há pelo menos 10 ou 15 anos. É preciso trabalhar com novas questões e novas gerações de estudiosos e mais pesquisa interdisciplinar.”
Os arqueólogos que investigam a ocupação das Américas estão vivendo o momento privilegiado de uma troca de paradigma – um evento raro na trajetória de uma disciplina. Ainda não surgiu um modelo substituto que unifique a comunidade e que permita explicar os sítios anteriores a Clóvis – já são mais de 500 segundo uma estimativa apresentada em Santa Fé.
O sítio da Toca da Tira Peia, no sul do Piauí, onde foram encontradas recentemente pedras lascadas por humanos com até 22 mil anos de idade (foto: Bernardo Esteves).
Essa troca de paradigma é o pano de fundo da reportagem “Os seixos da discórdia”, publicada na piauí 88, atualmente nas bancas. O foco principal da matéria são os sítios anteriores a Clóvis escavados desde o fim dos anos 70 na Serra da Capivara, no sul do Piauí, por uma equipe franco-brasileira liderada pela paulista Niède Guidon. Os artefatos encontrados por ela no sítio do Boqueirão da Pedra Furada, com datação de pelo menos 50 mil anos de idade, despertaram ceticismo de seus colegas. Novos sítios explorados na região pela equipe, no entanto, têm resultados mais consistentes e difíceis de serem contestados. A data dos artefatos encontrados ali é um pouco mais recente – na casa dos 20 mil anos – mas ainda assim alguns milênios anterior a Clóvis.
Poderão os sítios arqueológicos do Piauí contribuir para a formulação de um modelo de ocupação do continente alternativo a Clóvis, capaz de acomodar os resultados discrepantes cada vez mais numerosos nas Américas do Sul e do Norte? A resposta talvez surja nos próximos anos – vale ficar de olho.
A reportagem “Os seixos da discórdia” está disponível para os assinantes da piauí. Espero voltar ao assunto em futuras postagens do blog. Enquanto isso, deixo votos de um ótimo 2014 aos leitores – e o convite para que se manifestem na caixa de comentários abaixo.