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    Emanuelly Cavalcante (no abaixo, à esquerda), com a irmã, Emily, o pai, João Joaquim (ambos mortos por Covid), a mãe, Maria Aparecida, e o irmão, Emanuell: família perdeu dois membros em 48 horas - Intervenção de Paula Cardoso em foto de arquivo pessoal/Emanuelly Cavalcante

depoimento

“Em dois dias, perdi meu pai e minha irmã”

Estudante de medicina relata que pai, também médico, já recebera duas doses da vacina

Emanuelly Cavalcante | 05 abr 2021_14h06
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Foram 48 horas de dor. Entre 29 e 31 de março, a estudante de medicina Emanuelly Cavalcante, de 23 anos, perdeu o pai, o médico João Joaquim Cavalcante Neto, de 61 anos, e a irmã, Emilly Cavalcante, de 25 anos, graduanda em medicina. Ambos estavam internados com Covid em um dos hospitais de campanha administrados pela Prefeitura de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Cavalcante Neto trabalhava em três unidades de saúde e em um hospital da capital no setor de pediatria. Em 15 de fevereiro, tomou a segunda dose da CoronaVac. No dia 3 de março, no entanto, começaram a surgir os primeiros sintomas. Pai e filha apresentavam os mesmos sintomas, com pequenos intervalos de diferença. Até 2 de abril, 4.507 pessoas haviam morrido no Rio Grande do Norte em decorrência da Covid-19. Os óbitos cresceram no mês de março, o segundo mais letal desde o começo da pandemia no estado. A Secretaria do Estado de Saúde Pública (Sesap) informou à piauí que a investigação sobre a morte de Joaquim, que foi vacinado, teria de partir do município de Natal, onde ele estava internado, mas que o caso precisará ser submetido a uma avaliação por causa do tempo transcorrido entre a data em que o médico tomou a segunda dose da vacina e a apresentação dos sintomas, para saber “se caberá notificação ou não”. A Secretaria informou que “não há nenhuma recomendação do Ministério da Saúde para fazer sequenciamento genético da amostra de quem já foi vacinado e porventura adoeceu depois, então não é um procedimento padrão”. Já a Secretaria Municipal de Saúde de Natal informou que fará a investigação da morte, e o caso vai passar pela comissão de óbitos e será discutido pela equipe de imunização do município. Em reportagem da piauí sobre o caso de outra paciente que, mesmo vacinada, morreu, cientistas destacaram a importância da imunização e lembraram que os organismos reagem em tempo e modo diferentes na produção de anticorpos. 

(em depoimento a Mariana Ceci)

 

A gente não tem como saber como a doença se manifesta em cada pessoa. Da minha família, das cinco pessoas que pegaram, eu, minha irmã, meu pai, minha tia e meu irmão, duas dessas pessoas contraíram a forma grave da Covid e, infelizmente, chegaram ao óbito. O que eu vejo muita gente falando, gente que trabalha no Hospital de Campanha de Natal, é que é uma roleta russa. Tem pacientes que chegam com nefropatia, já fazendo hemodiálise, doenças crônicas, e saem bem, dentro das condições deles. Enquanto outras pessoas, como minha irmã, que não têm nenhuma comorbidade, acabam não resistindo ao tratamento. Ninguém vai saber até contrair, então a única coisa que a gente pode fazer é se prevenir. 

Os médicos foram enfáticos ao dizer que estavam bem tristes, porque eles estimulavam, faziam de tudo, mas não havia resposta. No começo, os outros órgãos estavam funcionando bem, mas como os pulmões decaíram de forma drástica, os órgãos vitais começaram a falhar. Os rins dela começaram a reclamar por causa das altas doses de sedativos. Isso baixava a pressão dela, e eles precisavam usar o remédio da noradrenalina para aumentar a pressão, o que sobrecarregava muito os rins. Ela não tinha nenhuma comorbidade. Sofreu uma parada cardiorrespiratória. O corpo dela falhou, porque não estava mais recebendo oxigênio. 

Meu pai faleceu no dia 29, às 2h30, e minha irmã, no dia 31, à 1h40 da manhã. 

Apesar de ele não trabalhar na linha de frente, as mesmas unidades tinham as alas de Covid, e um dos hospitais se tornou exclusivo para Covid em fevereiro. Ele tinha contato com outros médicos… a equipe não está isenta de contágio. Ele tomou as duas doses da vacina. Começou a apresentar os sintomas no dia 3. A última dose foi no dia 15 de fevereiro. Como ele estava em contato, a gente sempre soube que ele corria risco de contrair. 

A gente imaginava que teria alguma imunidade pelo tempo transcorrido, ao menos para evitar sintomas graves. Por isso que eu digo: não esperem contrair a doença para se proteger.

Meu pai era a base do amor da nossa família. Era de Antônio Martins, no Rio Grande do Norte. Fez faculdade de medicina em Natal e quando se formou começou a trabalhar em vários interiores, mas parou em dois: Sítio Novo e Ruy Barbosa. Ele conheceu minha mãe em Sítio Novo. 

Foi ele que ensinou o amor à minha mãe, que sempre teve uma família bem bruta, bem tradicional, do interior… Foi ele que ensinou o amor em toque, em carinho, em palavras. E a gente conviveu com esse amor, minha irmã por 25 anos, eu por 23. Meu pai e minha mãe ficaram juntos por mais de 25 anos, e fomos muito felizes por poder conviver com esse amor. 

Ele era clínico geral, um médico de família mesmo. Dizia que gostava de atender os amigos, porque conhecia a história deles. Era diferente de ir fazer um plantão em outro lugar em que você via um paciente e podia nunca mais vê-lo novamente, ao contrário do que acontecia em Ruy Barbosa, onde ele atendia gerações de pessoas, de amigos, como ele gostava de dizer. 

Fazia partos, pequenas cirurgias dentro da capacidade do município… era aquele médico que fazia de tudo um pouco. Foi ele que fez o meu parto e o de minha irmã. O que ele gostava de fazer era atender e estudar. Apesar de ele não ter feito residência, estudava muito, procurava sempre se atualizar para levar o melhor atendimento aos amigos dele. 

Começou a trabalhar em Natal, na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] do bairro Potengi. De segunda a quinta, atendia em Ruy Barbosa, e de sexta a domingo no Potengi, em Natal. Em novembro do ano passado, ele pediu licença do interior para ficar apenas em Natal, onde ele trabalhava na UPA da Cidade da Esperança, na UPA Potengi, na Zona Norte, na Unidade Mista de Mãe Luíza e no Hospital dos Pescadores, na Zona Leste. Ele atuava na área da pediatria, mesmo sendo clínico, e trabalhou ao longo de toda a pandemia. 

Minha irmã sempre foi uma criança muito feliz, alegre, determinada. Ela sempre falava o que queria. Com 19 anos, decidiu ir para a Argentina, porque disse que o Enem era uma pressão muito grande, e ela deixou tudo aqui e foi seguir seu sonho de ser médica lá. Estava perto de terminar o curso na Argentina, mas aí começou a pandemia. Veio para o Brasil no meio do ano passado, e decidiu ficar aqui. No início do ano, ela começou a estudar para tentar transferir o curso para o Brasil. 

A ligação deles sempre foi muito forte, inclusive durante a doença. Quando ela apresentava alguns sintomas, ele apresentava da mesma forma. Ele se internou no dia 11, e ela se internou no dia 12. Foi uma coisa atrás da outra. Todos os dias eram assim: o que minha irmã sentia, meu pai sentia. E foi dessa forma até o falecimento. Tudo que foi passado para a gente como possibilidade a gente fez. Fomos atrás de outras medicações, além das dos protocolos que estavam sendo feitos, tudo que foi recomendado e todas as alternativas… infelizmente, eles não sobreviveram. 

É um baque. Afinal, era uma menina de 25 anos, que não tinha nenhum problema de saúde. Apesar de ela ter alcançado muitos dos sonhos dela, ela ainda tinha muitos sonhos para perseguir. Meu pai tinha a questão da obesidade, mas não apresentava outras comorbidades. A gente se conforma, porque eles estavam sofrendo muito. Mas a falta deles a gente continua a sentir. 

O que eu posso dizer é que, se não quiserem passar pela dor que estamos passando, tenham todos os cuidados. Se atentem às restrições. Mantenham distanciamento social. Usem máscara de forma adequada, evitem aglomerações e proximidade. Sigam tudo à risca.

Eu, Emanuelly, não estou triste, porque acredito que eles estão em um lugar melhor do que o nosso, aqui na Terra, mas estou com saudade. E vou ter saudade para sempre.

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