Quem se interessar por biologia e tiver facilidade para ler em inglês tem uma rara oportunidade para assistir de camarote à negociação de uma fascinante controvérsia da ciência. A bióloga Rosie Redfield, principal contestadora da existência de bactérias capazes de metabolizar arsênio, está relatando em seu blog todos os passos da sua tentativa de convencer a comunidade científica de que está certa.
A controvérsia em questão teve início com a publicação, em dezembro de 2010, de um artigo na revista Science por uma equipe financiada pela Nasa. Eles anunciaram a descoberta de bactérias que tinham arsênio em vez de fósforo em suas moléculas de DNA. Se fosse verdade, seria o único caso conhecido em todas as formas de vida da Terra. Anunciado com alarde, o estudo conduzido por Felisa Wolfe-Simon foi recebido com ceticismo por muitos biólogos – afinal, alegações extraordinárias precisam de provas extraordinárias, como defende um ditado conhecido entre os cientistas.
Dentre os pesquisadores críticos a esse artigo, destacou-se o nome de Rosemary Redfield, uma microbiologista de fisionomia simpática que gosta de pintar os cabelos grisalhos de rosa e comanda um laboratório na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Ela postou em seu blog objeções ao estudo logo depois da sua publicação e assinou uma das oito contestações formais ao trabalho que a Science publicou seis meses depois.
Mas Redfield precisava de uma evidência mais contundente para provar que estava certa. Convencida de que as bactérias de Wolfe-Simon não estavam incorporando arsênio ao seu DNA, ela decidiu replicar o experimento original em seu laboratório. Queria mostrar, com isso, que os resultados relatados por Wolfe-Simon podiam ser explicado por fatores como a contaminação do meio de cultura por fosfato. Conforme ela esperava, sua equipe não conseguiu cultivar as bactérias num meio com arsênio e sem fósforo. Como manda o figurino, eles prepararam um artigo relatando os resultados da tentativa frustrada e submeteram para publicação na mesma Science que publicara o trabalho original.
Num exemplo raro de transparência, Redfield está documentando em seu blog todas as etapas desse processo. No final de janeiro, ela anunciou que submetera o artigo à revista. Paralelamente, disponibilizou uma cópia do texto para quem quisesse lê-lo no arXiv, um repositório de trabalhos ainda não publicados usado principalmente por pesquisadores das ciências exatas. A disponibilização do artigo suscitou vários comentários por parte dos leitores do blog, num exemplo bem sucedido de um modelo aberto de avaliação dos artigos científicos que poderia substituir a revisão por pares tal como é feita hoje.
Em meados de março, Redfield comunicou em seu blog que recebera a avaliação do seu artigo elaborada pelos três pareceristas anônimos designados pela Science. Mais que isso, ela publicou os pareceres na internet. Essa é uma iniciativa especialmente interessante para quem acompanha de fora o dia a dia da ciência, pois essas avaliações não costumam ser divulgadas. Apesar do caráter técnico da discussão, a leitura desses pareceres é fascinante por revelar a natureza das negociações entre autores e revisores.
A última novidade do caso foi anunciada por Redfield na semana passada: sua equipe voltou ao artigo e submeteu uma nova versão à revista Science, levando em conta as observações dos pareceristas (o texto disponível no arXiv também foi atualizado). Reproduziu ainda a carta encaminhada aos editores do periódico, na qual discute a mudança do título sugerida por eles e outros pontos.
A novela não acabou: o próximo passo deve ser o aceite ou a recusa do artigo pela Science. Redfield certamente relatará o desdobramento. A quem quiser acompanhar os próximos capítulos em tempo real, basta assinar o RSS de seu blog.
(foto: Jorge Barrios)
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