Para as gerações mais jovens de entusiastas do futebol internacional, pode ser um pouco difícil imaginar o hoje glorioso Manchester City como um clube de pouca expressão. Mas até conquistar a Copa da Inglaterra, na temporada 2010/2011, o time contabilizava 35 anos sem vencer um título de relevância nacional.
Em 2001, o clube de Manchester estava na segunda divisão do campeonato inglês. Voltou para a primeira na temporada seguinte, mas sua grande virada só começou em 2008, ao ser comprado por Mansour bin Zayed Al Nahyan, um xeique árabe bilionário. O City se fortaleceu, faturou sete vezes a Premier League, inclusive as três últimas edições seguidas, levou a Liga dos Campeões da Uefa em 2023, e hoje tem uma das mais reluzentes equipes do futebol mundial, com o treinador catalão Pep Guardiola à beirada do gramado e o norueguês Erling Haaland dentro de campo.
Não foi com pouca euforia, portanto, que os torcedores do Esporte Clube Bahia reagiram à compra de 90% do time pelo Grupo City, que pertence ao mesmo xeique e agrupa clubes como o Melbourne City, New York City e onze outros, em maio do ano passado. O Bahia tem a maior torcida da região Nordeste e a sétima do país (7,7 milhões de devotos, segundo pesquisa do instituto Atlas Intel, divulgada na semana passada), mas não vence um Campeonato Brasileiro desde 1988. A aquisição de 90% do clube foi feita pelo sistema de SAF (Sociedade Anônima de Futebol), com promessa de investimento de 1 bilhão de reais. Desde então, houve um aumento da equipe com nomes de fora do país, como o CEO de futebol, que é peruano.
Em dezembro, a agremiação cheia de novidades anunciou mais uma: seu novo presidente, o ex-goleiro Emerson Ferretti, que ganhou fama nacional em times como Grêmio e Flamengo e também atuou no Bahia. Esse anúncio foi também um marco: Emerson é o primeiro homem abertamente gay a presidir um clube de futebol de destaque no Brasil.
O fato nem seria notícia, não fosse esse esporte um território em que a homossexualidade é um grande tabu. O tricolor baiano (das cores vermelho, azul e branco), porém, tem adotado medidas nos últimos anos para se afastar desses preconceitos. Abraçou projetos da torcida LGBTricolor e, em 2019, criou uma camisa especial com listas verticais nas cores do arco-íris. Em 2020, lançou uma camisa que trazia nas costas o número 24, evitado pelos times devido à associação com o veado, que é simbolizado pelo número no jogo do bicho. Em setembro do ano passado, o clube foi homenageado em um evento na Casa do Carnaval, museu do Centro Histórico de Salvador, com o troféu Honra ao Mérito da Diversidade Cultural LGBT+.
A atual sede administrativa do clube não fica na grandiosa Arena Fonte Nova, onde o Bahia joga, mas um pouco mais longe do Centro Histórico, no bairro Caminho das Árvores, que há alguns anos se consolidou como um polo empresarial de Salvador. Em uma pequena sala ao fundo do oitavo andar do edifício Golden Plaza funciona o escritório de Emerson Ferretti, que trabalha por lá de segunda a sexta.
Em torno das 17 horas do dia 22 de janeiro, uma segunda-feira, após concluir umas das últimas reuniões do dia, ele recebeu a piauí em uma antessala de seu escritório. Ferretti é alto (mede 1,88 metro) e aos 52 anos mantém um porte físico que entrega o histórico de goleiro. Vestia blusa e calça social nos tons azul e branco, duas das cores da paleta do Bahia.
“Quando eu encerrei a carreira [de jogador], já estava na faculdade de administração. Eu sempre gostei de gestão”, lembrou o presidente, com uma xícara de café nas mãos. À vontade, mesmo há poucos dias no cargo, contou sobre as ambições com o Bahia para 2024, como o título da Copa do Nordeste, e de novos projetos, como o investimento em esportes olímpicos. Ferretti tem pela frente três anos como presidente do Bahia e pode ser reeleito. É mais um desafio em uma trajetória na qual sucesso e agruras se entrelaçam.
O ano de 1993 começava com ares de renovação no Grêmio, clube do futebol gaúcho. O time retornava à série A do campeonato brasileiro, depois de amargar a sua primeira passagem pela segunda divisão. Naquele fevereiro, o clube assinou contrato com o experiente volante Júnior, ou Dorival Júnior, hoje técnico da Seleção Brasileira. No gol, o Grêmio tinha uma das grandes promessas do futebol brasileiro à época, o jovem Emerson Ferretti, de apenas 21 anos, que atuava na seleção brasileira sub-20, e já estava sendo cotado para a seleção principal.
No último dia 26 de fevereiro, completaram-se 31 anos de um amistoso preparatório para a temporada 93, contra o Capão da Canoa, um pequeno time do Norte do Rio Grande do Sul, que não deveria ter grande importância. Foi ali, porém, que aconteceu uma virada de chave na carreira do jovem Emerson.
Logo nos primeiros minutos de partida, em um ataque do Capão, Emerson, vendo o avanço de um jogador adversário dentro da pequena área, se chocou contra o atacante para evitar que ele finalizasse. Fez isso num movimento estranho, com um esforço desproporcional e exagerado mesmo levando em consideração o perigo que o lance tinha. Com o choque, Ferretti sofreu uma fratura dupla, na tíbia e no perônio, que o tirou dos gramados por nove meses. Nesse período de afastamento pela lesão, o jogador conseguiu refletir acerca de um aspecto muito pessoal: o silenciamento de sua sexualidade no ambiente machista do futebol. “Nesse processo de recuperação, eu comecei a ir a lugares alternativos de Porto Alegre e a me relacionar com outros homens”, diz Ferretti. Foi uma fase de paradoxos.
“Eu tinha um lado profissional com muito sucesso, e o pessoal, vazio. Quando eu saía do Grêmio, ficava um vazio social. Porque eu não me relacionava com as pessoas que eu queria. Quanto mais eu ficava mais famoso, mais difícil era. Os homens todos me olhavam, mas eu era o Emerson goleiro do Grêmio. Como eu ia retribuir esse olhar de uma outra forma, se eu não sabia ainda se era o olhar de admiração de um torcedor? Não conseguia nem retribuir nem paquerar nem nada.”
No ápice desses conflitos emocionais, veio o episódio da lesão. “Hoje eu entendo que foi um movimento inconsciente para travar aquela ascensão profissional, para eu poder me equilibrar psicologicamente”, conta Ferretti. Ele diz que a terapia, que já faz há vinte anos, foi importante para conseguir compreender esse ocorrido.
Mesmo afastado dos gramados, Ferretti continuava sendo uma personalidade famosa, sobretudo em Porto Alegre. “Um amigo me disse que tinha ido numa boate alternativa e me chamou. Na primeira vez que eu fui, conheci um cara e foi meu primeiro relacionamento”, lembra. Depois desse primeiro contato passou a frequentar bares e boates LGBT de Porto Alegre e, como muitas vezes era visto saindo com outros homens, percebeu que se iniciou um “burburinho” sobre sua intimidade.
“Ficou perigoso porque começou a colocar em risco a minha vida profissional, porque o futebol não aceitava um gay, e isso me desequilibrou de novo”, recorda. Depois que retornou aos gramados, não demorou muito para sofrer uma nova lesão, que o afastou por seis meses. “E eu ia parar lá [na seleção brasileira]. Mas como é que eu ia ser goleiro da seleção brasileira, e gay?”
Em agosto de 2022, ao participar do podcast Nos Armários dos Vestiários, apresentado por Joana de Assis e William de Lucca, do Globo Esporte, Ferretti se tornou o primeiro ex-atleta do futebol brasileiro da primeira divisão a falar abertamente que é gay (Richarlyson, ídolo do São Paulo, havia contado no mesmo podcast que é bissexual).
Ferretti tinha o receio de que as portas profissionais se fechassem depois de sua declaração, o que não aconteceu. “Só tive coisa boa. Muitas pessoas me ligaram, falando que o respeito aumentava, pela coragem. Não houve nenhum tipo de agressão verbal, nem na rua, brincadeiras, nada. Absolutamente nada.”
Um alívio, dado o histórico de vida. Ferretti teve uma juventude solitária e isolada na capital gaúcha, dentro e fora do clube que o revelou. Não tinha abertura para conversar sobre sexualidade dentro de casa. A família conservadora não aceitaria um filho gay, ele diz. Já profissional de futebol, o silenciamento se reforçou. Nos clubes por onde passou tinha o receio de se abrir com alguém, a informação vazar e a polêmica tirá-lo de cena. “Sempre foi um processo solitário.”
A solidão, ele diz, não vinha da rejeição, mas da introspecção pelo medo de ser descoberto. “Na adolescência, nas festas, eu era muito assediado pelas mulheres e comecei a ficar incomodado com isso. Comecei a recusar essas saídas”, conta. O próprio jogador se afastava dos companheiros de clube. “Eu ficava na superficialidade com as pessoas por receio de confirmarem a suspeita, porque a pessoa poderia passar a informação para todo mundo e minha carreira estaria comprometida, né?”, conta, emocionado.
Ele defende que os clubes ofereçam assistência psicológica para os atletas. A legislação do futebol exige que as divisões de base dos clubes tenham terapeutas para amparar os jogadores ainda em formação, caso necessário. A maioria dos grandes clubes profissionais já recruta esses profissionais, mas Ferretti acredita que esse trabalho nem sempre dá certo. “Às vezes o treinador não está alinhado com o psicólogo. Além disso, tem uma resistência do próprio atleta em se abrir, com receio de irem para a diretoria e contar pro treinador”, diz.
A cultura machista do futebol também é um obstáculo, segundo o presidente. “A gente aprende desde pequenininho que pra jogar futebol você precisa ser forte. Se tiver doendo vai com dor, se estiver triste vai triste, se viver com depressão vai com depressão. No linguajar machista a gente é treinado a ser macho e não demonstrar fraqueza”, conta. Ferretti teve que superar os desequilíbrios emocionais sozinhos na época, pois não fazia terapia e não conversava sobre isso com ninguém.
Depois das consecutivas lesões, Ferretti saiu do Grêmio e desembarcou no Rio de Janeiro em 1995, emprestado para o Flamengo. Aquele era um momento particularmente festivo para o clube da Gávea, o ano marcava o seu centenário. O time foi enredo da escola de samba Estácio de Sá no desfile da Marquês de Sapucaí, samba que até hoje é cantado pela torcida nas arquibancadas. O dirigente de futebol contratou o “melhor ataque do mundo”, com Sávio, Romário e Edmundo. Marketing bem mais eficiente que o rendimento daquele time dentro de campo.
O Flamengo, sempre muito popular, também ficou pop. Num quadro do programa Xuxa Hits, da TV Globo, quatro atletas do clube participaram de uma performance onde dançavam um aquecimento aeróbico ao som de uma música eletrônica, junto com as bailarinas da apresentadora. O vídeo está no YouTube. Emerson era um deles. “Era um assédio muito grande. E o ‘zumzumzum’ em cima da minha sexualidade ja exisitia”, lembra o ex-jogador. No Rio, os rumores se alastraram, o que fez Ferretti se retrair ainda mais. Sua passagem pelo rubro-negro rendeu apenas duas temporadas, mas na segunda, em 1996, ele ajudou o time a conquistar o campeonato carioca.
No final da década de 1990, Ferretti conquistou o maior título de sua carreira como jogador profissional, a Copa do Brasil de 1999 pelo Juventude. O jogo marcou a última partida do Maracanã com mais de 100 mil pessoas. O público, de 101 mil pagantes, lotou o estádio para acompanhar o 0 x 0 de um Juventude x Botafogo, que deu o título ao time gaúcho, pois este havia vencido o primeiro jogo. Foi também o recorde de público da história da competição até hoje.
Os últimos anos de sua carreira foram em Salvador. De 2000 a 2005 vestiu a camisa do Bahia e depois foi para o rival Vitória, onde se aposentou dos gramados em 2007. Ao comentar sobre sua defesa mais marcante da carreira, Emerson recorre ao seu perfil no Instagram, onde guarda o registro de um Bahia x Corinthians na Arena Fonte Nova, em 2001. Ele fez uma defesa milagrosa após uma cabeçada cheia de efeito do atacante Paulo Nunes. “Era um nível de dificuldade altíssimo, porque eu estava indo pro lado oposto e tive que voltar”, lembra, enquanto revê a cena.
Aposentado dos gramados, atuou como comentarista esportivo da TVE (afiliada da TV Brasil) da Bahia e em algumas emissoras de rádio. Como gestor teve uma rápida passagem como presidente do clube Ypiranga, da segunda divisão do baiano. Até assumir a presidência do Bahia, em janeiro.
Ferretti enxerga no futuro do Bahia uma história de reação paralela à do Manchester City. “Acho que o caminho é esse. Quando o grupo comprou o City em 2008, demorou quatro anos para ele ser campeão inglês pela primeira vez. De lá para cá, o City se tornou uma máquina de títulos: 22 em quinze anos. O Bahia vai chegar a esse nível. Não sei se vai ser daqui a quatro, seis anos. Espero que aconteça rápido. Se for campeão brasileiro neste período da minha gestão, vai ser bom demais.”
O ano passado foi o “ano zero” da nova fase. Todos os aspectos ligados ao futebol do Bahia são de responsabilidade da SAF, como contratar jogadores, comissão técnica e staff. A Associação Civil Esporte Clube Bahia, da qual Ferretti é presidente, gere o que está para além do futebol. Uma das frentes da atual diretoria, por exemplo, é fiscalizar o cumprimento do contrato com a SAF, salvaguardando as tradições do Bahia, como as cores e o hino. Outros eixos de atuação estão ligados a projetos como os planos de sócio (mas não o sócio-torcedor, que está com a SAF), programas sociais e eventos.
Por pouco, o “ano zero” não terminou de forma trágica com o rebaixamento para série B, mas o clube conseguiu se reerguer nas últimas rodadas. “Estamos sempre em contato [com o Grupo City], tem projetos que fazemos em conjunto, algumas obrigações estatutárias, reuniões e avaliações de resultados, mas o dia a dia não é obrigação nossa de cuidar.”
Emerson conta que algumas habilidades que desenvolveu como atleta profissional são importantes na sua gestão, como o espírito competitivo. “Pra você ser um atleta profissional você tem que ser competitivo. A gente compete o tempo todo. Tem quatro goleiros e só joga um. E aí você traz isso para gestão, você precisa trazer essa energia pro clube”, diz. Segundo ele, a resiliência que o jogador profissional desenvolve na carreira é um elemento fundamental na sua gestão atual. “As dificuldades são grandes, as competições são grandes. Eu fui capitão em alguns clubes que joguei, então também tem a liderança. E eu também trago uma coisa boa como gestor que é a diplomacia, mas aí é questão muito minha, pessoal”, conclui.
Após a condenação do jogador Daniel Alves de quatro anos e seis meses de prisão pelo crime de estupro cometido na Espanha, o museu do Bahia, na Arena Fonte Nova, removeu a foto do jogador em uma sala onde expõe alguns dos grandes nomes que passaram pelo clube (Daniel Alves jogou no Bahia entre 2001 e 2003, conquistando a Copa do Nordeste em 2002). Quem faz a gestão do museu é a SAF, então a decisão não passou por Ferretti. No Instagram oficial da torcida organizada LGBTricolor, há uma postagem de 23 de fevereiro, uma sexta-feira, com a notícia e a legenda: “Sobre ter um clube que entende o papel dele em relação a questões humanitárias e sociais. Isso é Esporte Clube Bahia!” A iniciativa do Museu do Bahia não foi acompanhada por demonstrações do mesmo nível nos demais clubes brasileiros, e muito menos por parte dos atletas, o que gerou revolta em alguns torcedores nas redes sociais.
Para Ferretti, o silêncio dos jogadores mostra a “conivência velada” no meio. “Se você denunciar, pode ficar como uma pessoa mal vista no meio, então os jogadores se protegem dessa maneira.”
Ele cita o episódio com o técnico do Flamengo, Tite, que perguntado sobre o caso, em entrevista coletiva após o Fla x Flu, há duas semanas, acabou se saindo mal na situação. Tite disse não ter informações suficientes para julgar e ainda comparou com o caso de Neymar acusado de estupro em 2019, em que foi inocentado. (Na última coletiva, o treinador se desculpou dizendo que a comparação foi sem sentido). “Ele [Tite] não quis falar porque o Daniel é um amigo e foi o cara de confiança dele na Seleção. E pra mim também, o Daniel é um amigo, jogou comigo no Bahia, sempre foi um cara fantástico, mas errou. Foi condenado e está pagando”, completa Ferretti.
Para o presidente do Bahia, o futebol está sempre dois passos atrás nas discussões sociais e políticas da sociedade. “Já temos políticos gays, deputadas trans, estamos evoluindo, só que no futebol ainda existe um machismo tão grande que demora um pouco mais. “
Logo após o podcast ir ao ar, muitas pessoas entraram em contato com ele para dividir histórias e agradecer o relato. “Eu acho que eu sou como aqueles batedores que vão na frente abrindo caminho. O futebol ainda não aceita um jogador assumidamente gay. Tem vários, mas não assumidos”, diz. “Conheço alguns jogadores casados que são gays. É muito comum um homem casado curtir a vida homossexual, mas é muito escondido. E esse é um recorte da sociedade, porque não só jogadores de futebol agem assim.”
Emerson foi o primeiro ex-atleta e agora é o primeiro presidente do futebol brasileiro a falar abertamente sobre isso. “Me vejo como um farol. As pessoas agora podem pensar: o Emerson jogou, foi ídolo, ganhou títulos, e virou presidente. Isso tudo sendo gay. Então é possível.”