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    Comunidades indígenas do extremo Sul da Bahia foram devastadas pela água Foto: Thyara Pataxó/Reprodução

depoimento

Enchente, indiferença e mobilização

Jovem pataxó relata horas de angústia ao ver aldeias alagadas no Sul da Bahia e organiza campanha para socorrer desalojados

Deborah Martins | 15 dez 2021_13h26
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Nascida e criada em Alcobaça, no extremo Sul da Bahia, a jovem pataxó Deborah Martins acordou no último dia 8 com vídeos mostrando os estragos provocados pela chuva em cidades vizinhas à sua. Em aldeias próximas, seus parentes tiveram casas invadidas pela enchente, a mais forte que a memória de Martins consegue guardar. A jovem reparou, porém, que a situação das aldeias alagadas não repercutia no noticiário da mídia tradicional. Formada em direito, a pataxó de 27 anos trabalha na área de gastronomia e é mobilizadora local de um projeto de comunicação popular. Diante da situação precária nas aldeias, ela e outros treze jovens pataxós criaram uma campanha de mobilização e estão movendo céus e terras — e redes sociais — para ajudar comunidades afetadas pelas tempestades.

Em depoimento a Thallys Braga

Moro em Alcobaça, uma cidade estreita do extremo Sul da Bahia, cercada pelo Rio Itanhém e pelo mar. Não temos pra onde fugir quando o assunto é água. Eu nasci e me criei aqui, fui embora para o Rio de Janeiro por um ano, mas voltei logo. Quando começou a chover agora em dezembro, já nos primeiros três dias, a gente olhava a meteorologia e não tinha nenhuma previsão para a água parar de cair. O nervosismo só aumentava. Nossa preocupação maior era com as pessoas que vivem na beira do Rio Itanhém. Na noite de 7 de dezembro, quando me deitei pra dormir, chovia e trovejava muito aqui em Alcobaça. Ainda assim, eu achei que fosse passar. 

Quando acordei na quarta-feira passada [8 de dezembro], recebi vídeos de Jucuruçu, cidade próxima à minha, completamente embaixo d’água. As cenas mostravam pessoas ilhadas em cima dos telhados das suas casas. Meus parentes pataxós compartilharam imagens de regiões vizinhas pelo WhatsApp. A situação já era crítica, as cidades estavam alagadas, mas a internet e a mídia local não estavam falando nada. Fiquei indignada. Quando a sociedade civil se organiza para ajudar as pessoas, nunca se lembra dos indígenas. É sempre nós por nós mesmos. 

As enchentes não chegaram na minha casa, pelo menos não até agora. Os últimos dois dias foram ensolarados, mas não sabemos o que pode ocorrer se a chuva voltar a cair com força. Tenho medo de que aconteça o mesmo que aconteceu com meus parentes da Terra Indígena Barra Velha. Eles não tiveram a mesma sorte que nós. Alguns perderam suas casas e nós perdemos acesso à aldeia. A única maneira de chegar até lá era através de uma ponte que foi derrubada pela força da correnteza do rio. Agora, só é possível com helicóptero. Para chegar a algumas regiões atingidas pela chuva, como Jucuruçu, Itamaraju e Nova Alegria, precisamos atravessar uma ponte localizada em outro município vizinho, Prado. Ela caiu na semana passada.

Martins e outros jovens 13 pataxós se articularam para divulgar os estragos causados pela chuva nas aldeias
Martins se articulou com parentes para divulgar os estragos causados pela chuva nas aldeias — Foto: Arquivo pessoal

 

Geralmente, o socorro não demora a chegar para quem precisa aqui no extremo Sul da Bahia, mas isso mudou rápido na última semana. Tenho recebido relatos de pessoas de localidades próximas, e elas dizem que estão faltando insumos hospitalares, gaze e remédios. Alcobaça é atendida por uma única unidade do Corpo de Bombeiros, que fica em Teixeira, município vizinho. Quando acontece alguma coisa, temos de esperar a ajuda atravessar a cidade. Mas como poderemos contar com isso agora que as estradas inundam e as pontes desabam?

Eu sempre uso as minhas redes sociais para fazer mobilizações, e dessa vez não seria diferente. O extremo Sul da Bahia é completamente negligenciado pela mídia. Quando se fala de Bahia, muitas pessoas associam logo a Salvador. É como se todos os holofotes estivessem virados para o Recôncavo Baiano. No dia 10 de dezembro, três dias depois de começar a chover, nem as emissoras de tevê do estado estavam falando sobre a situação da nossa região. A juventude pataxó decidiu que precisava divulgar os estragos causados pela chuva nas aldeias daqui. Naquele mesmo dia, criamos um grupo no WhatsApp com catorze parentes, todos na faixa etária de 20 a 30 anos. Demos o nome de SOS EXTREMO SUL BA.

Produzimos artes para divulgar nas redes sociais, planejamos tuitaços, entramos em contato com jornalistas, fizemos o que podíamos. Mas não podíamos deixar de pensar nos parentes que precisam de ajuda. E não falo só da etnia Pataxó. O povo Maxakali está sofrendo em Minas Gerais, os Tupinambá também foram atingidos pela chuva em Ilhéus. A líder do meu povo, Thyara Pataxó, está mapeando outras comunidades indígenas do extremo Sul baiano que precisam de ajuda. Pelas redes sociais, divulgamos um Pix para arrecadar contribuições de seguidores que não moram aqui na região. Estamos recebendo donativos de alimentos e outros materiais na Terra Indígena Coroa Vermelha, na região de Porto Seguro.

Com as estradas alagadas, fico apoiando a campanha de casa, pelas redes sociais. Faço parte da administração de um curso gratuito de Educomunicação Popular que impulsiona a produção de conteúdo entre jovens do extremo Sul da Bahia. Os alunos estão ajudando a recolher doações e divulgando os trabalhos na internet. É bom ver a história ganhar destaque na mídia e na internet. Mas, pra mim, está sendo difícil ficar em casa. Estou segura fisicamente, mas, pra ser sincera, eu queria ir pra rua, visitar as aldeias, ajudar os meus parentes.

No domingo [12 de dezembro], fez sol aqui em Alcobaça. Fiquei um pouco menos preocupada. Pedalei uns 3 km da minha casa até a Barra, região em que o mar e o Rio Itanhém se encontram. A água estava escura e o nível mais alto que o normal. Ele subiu muito rápido na última semana. Espero que não suba mais.

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