Nós brasileiros não deveríamos nos surpreender com a ocorrência de homicídios. Afinal, apenas em 2012, houve cerca de 56 mil mortes violentas no Brasil – 8% mais do que no ano anterior. Para cada 100.000 habitantes foram 25 vítimas. E desde 1990, as chamadas “agressões intencionais a terceiros” passaram a causar mais mortes do que as provocadas por acidentes de trânsito.
Esses dados indicam por que o Brasil ocupa o desonroso 18º lugar na lista dos países mais violentos do mundo, entre a República Centro Africana e a Etiópia.
Mas, apesar de conhecermos o grau de violência do País, nos imaginamos protegidos – ilusão que agrava o abalo quando alguém próximo é golpeado. Pelo fato de vivermos iludidos, estamos mal preparados para formas de agressão incomuns no círculo de nossas relações pessoais.
De 2005 a julho de 2011, foram identificados 246 casos de parricídio no Brasil, o que corresponde a 0.08% do total de homicídios cometidos. A probabilidade de ser atingido por um raio é considerada infinitamente menor. Mesmo assim, o impacto da descarga elétrica parece metáfora adequada para a comoção causada pelo ato de violência contra os próprios pais.
O perfil típico do parricida – assassino do pai ou mãe – e as circunstâncias nas quais costuma cometer o crime reconfirmam que vivemos em um mundo ilusório. O assassino do próprio pai ou da mãe é descrito como “um homem jovem, solteiro, desempregado, que vive com a vítima, sofre de esquizofrenia, abusa de álcool e drogas, e suspendeu um tratamento”. A maioria desses crimes é cometida em casa, utilizando arma branca.
Com esse perfil e nessas circunstâncias, surpreendente é o homicídio dos pais ser considerado imprevisto.
Crentes encontram consolo na fé. Psicólogos e psiquiatras coletam dados, traçam perfis e fazem diagnósticos. Advogados tipificam. Todos têm necessidade de encontrar explicação racional para a irracionalidade – definem a causa e acreditam ter esclarecido o horror incompreensível.
Para ímpios e agnósticos, uns sem religião, outros conscientes da própria ignorância, ambos insatisfeitos com diagnósticos e classificações, só resta lidar com suas próprias perplexidades. Como Tchekhov escreveu a um amigo: “Nada é claro neste mundo. Só tolos e charlatães sabem e entendem tudo.”
Um amigo comentou que mortes violentas são como bomba de fragmentação – além da vítima, fere quem está por perto. Atingido pelos fragmentos, o sobrevivente fica marcado para sempre.
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No final de um conhecido curta-metragem do Krzysztof Kieslowski, uma senhora de 100 anos, nascida em 1880, diz que quer “viver mais. Muito mais.” Eduardo Coutinho também queria viver. Em outras palavras, disse isso mais de uma vez. Quando estava com 80 anos foi breve: “[…] infelizmente a gente morre. […] Se eu morrer… Espero que demore”, declarou. Essa graça, porém, não lhe foi concedida. Meses depois foi abatido pelo braço traiçoeiro do seu filho mais moço. E em fevereiro do ano passado seu caixão foi posto em um carneiro rente ao chão, na encosta do cemitério.
Para mim, continua cedo para falar do Coutinho e dos filmes que ele fez, sem pensar nas circunstâncias da sua morte. Talvez seja uma forma de lidar com a tragédia e de manter viva a lembrança dele.
Creio que algumas pessoas mais próximas dele compartilham essa sensação. Há pouco tempo, uma amiga comum contou um sonho que me parece expressar esse mesmo sentimento: “Esta noite sonhei com Eduardo Coutinho. Um sonho longo e interessante. Eu ia entrar no elevador de um hotel e ele estava dentro. Era ele, bem moço e tentando se esconder de mim. A porta do elevador fechou antes que eu pudesse entrar. Na portaria do hotel me informaram que ele era um hóspede antigo e me deram o número do quarto. Fui falar com ele. Reclamei do susto horrível que ele nos havia dado, se fazendo de morto. Ele respondeu que estava muito cansado do mundo.”
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Ainda restaria algo a dizer sobre a obra de Eduardo Coutinho? A pergunta pode parecer retórica, mas na verdade poucos cineastas brasileiros receberam, em vida, consagração crítica semelhante à dele. Menos ainda são os que foram tão prolíficos na maturidade, fazendo-se ouvir através de 8 filmes lançados em 12 anos, e de um 9º exibido apenas em sessões privadas. Além desses documentários que dirigiu, à medida que seu prestígio crescia passou a dar tantas entrevistas e depoimentos gravados que suas declarações foram se tornando repetitivas. Diante de tamanha exegese e quantidade de declarações, não há dúvida que todo comentário póstumo sobre os filmes do Coutinho corre sério risco de naufragar na redundância.
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A grande novidade em 7 dos 9 documentários do Coutinho realizados a partir de Santo forte, gravado em 1999 quando estava com 66 anos, é mostrarem um conjunto de encontros e conversas breves, em geral sem objetivo pré-estabelecido, realizados em espaços cada vez mais delimitados, quer seja uma favela, um prédio, um município contíguo a São Paulo, outro do interior da Paraíba, um palco ou uma sala.
Com o passar dos anos, à medida que a saúde declinava e Coutinho perdia vigor físico, locações próximas em espaço circunscrito, além de serem uma opção estética se tornaram condição necessária para que conseguisse continuar a fazer filmes, especialmente depois de O fim e o princípio, gravado no Nordeste em 2004.
É verdade que há encontros e conversas nos filmes anteriores do Coutinho. A diferença está no fato dos documentários a partir de Santo forte deixarem de tratar, em parte, da sua própria experiência pessoal, como é o caso em Cabra marcado para morrer.
Em 1967, o jovem Coutinho, pré-Cabra marcado para morrer, disse à revista Cine Cubano “esperar que a nova geração consiga estabelecer certa sintonia entre sua obra e sua vida” . Passados mais de 30 anos, deixou de haver essa relação direta entre vida e obra nos documentários da maturidade de Coutinho. O evento histórico é substituído pelo cotidiano; o mártir por pessoas comuns. A fala, o gesto e o olhar se tornam o foco da observação. O interesse está no “que existe, pelo simples fato de existir” . Daí a afinidade que Coutinho sentiu com Spinoza, via Bourdieu , – “assentir com o mundo, concordar com o mundo […] com os “fatos naturais”; e também com Tchekhov – aceitar as coisas pelo que são, sem fazer julgamentos, observando apenas. (cont)
* Este texto serviu de base para a minha participação na mesa redonda Listening and Seeing:an Homage to Eduardo Coutinho, organizada e apresentada por Pedro Meira Monteiro e Bruno Carvalho, realizada na Princeton University, em 6 de março. Após a projeção de Eduardo Coutinho, 7 de outubro, de Carlos Nader, João Moreira Salles, Robson Pereira, Carlos Nader, Sandra Kogut, Lucia Serrano Pereira, Tom Levin, João Biehl, Eduardo Cadava, Lilia Schwarcz e o autor deste post participaram do encontro.