Semelhantes a encontros amorosos, as gravações de Coutinho, a partir de (1999), eram precedidas por acurado processo de seleção e obedeciam a regras precisas, tanto em relação ao modo de gravar, quanto à dinâmica das conversas, nas quais Coutinho mais ouvia do que falava. Fazia perguntas curtas e encarava eleitas e eleitos olhos nos olhos. Nesses termos, para ele a proximidade física e o olhar pesavam tanto quanto a escuta.
*
“Quanto mais esquecido de si mesmo é o ouvinte, mais fundo o que ouve fica gravado na sua memória.” Confrontado por um jovem diretor com esse aforisma de Walter Benjamin que ele mesmo havia citado quatorze anos antes, Coutinho respondeu: “O resumo do que eu gostaria de ser, do que gostaria de fazer nos filmes está expresso nessa citação” . Isso, depois de ter dito, momentos antes, ser “apaixonado pelo messianismo e pela melancolia de Benjamin” .
As normas da gravação incluíam a imobilidade da câmera e a inexistência de anteparos entre Coutinho e sua interlocutora ou interlocutor, que deviam estar a “justa distância”, conforme declarou. Embora ele ficasse fora de campo a maior parte do tempo, sua presença e interação eram cruciais.
Para fazer a escolha dos participantes, homens e mulheres, desses encontros, o cupido (ou assistente) conduzia uma conversa prévia gravada sem a participação do Coutinho. Ao fazer a seleção, ele criava grande expectativa pelo resultado do encontro, a ponto de ter acessos ocasionais de fúria quando se decepcionava. Nos intervalos das gravações, diante só da equipe, seu pessimismo congênito podia aflorar e chegou a dirigir os piores impropérios às pessoas que acreditava não terem se mostrado na conversa à altura da proposta de estabelecer uma relação com ele através da proximidade física, do olhar e da escuta, componentes essenciais para o sucesso do encontro.
*
Coutinho não fazia juízos morais das suas parceiras e dos seus parceiros. Era todo olhos e ouvidos nos encontros. Procurava estabelecer relação harmoniosa com quem conversava, mas não deixava de questionar o sentido das palavras ditas por eles, assim como suas atitudes.
Buscava estabelecer uma relação intensa, sentir prazer e despertar paixão. Coutinho sabia de antemão que seria um amor fugaz, pois limitado àquela hora e pouco do encontro, depois do qual perdia interesse por suas efêmeras parceiras e parceiros, evitando deliberadamente novos encontros depois da gravação. Comparadas a suas maravilhosas personagens, considerava as pessoas uma fraude. “Quando você volta e passa uns dias juntos é rotina. E a rotina é insuportável, a rotina é insuportável”, declarou.
Por oposição ao historiador, memórias coletivas e fidelidade dos relatos não tinham interesse para Coutinho. Ele centrou sua atenção nas diferentes formas de auto-representação suscitadas nos encontros. O que o entusiasmava eram testemunhos ou memórias individuais, subjetivos e irreproduzíveis por natureza. Para ele, tinham valor em si mesmos pelo simples fato de terem sido contados, conforme declarou, “num instante dado em que houve uma fricção, um querer se mostrar, medo, se conhecer etc. dos dois lados” .
Esses encontros e conversas eram demarcados por um anti-romantismo radical. O pressuposto da relação que Coutinho buscava estabelecer era a brevidade. Como para o poeta dos Tableaux parisiens no famoso soneto comentado por Benjamin, para Coutinho “o momento do encantamento coincide com a despedida para sempre” . A exceção foi Elizabeth Teixeira, com quem manteve contato esporádico durante cinco décadas, desde que a conheceu em 1962.
*
Os breves encontros amorosos e a convivência com sua equipe serviram de antídotos para a solidão de Coutinho. Gravar era uma necessidade vital para ele. “É o que me mantém vivo”, disse. “[…] se eu não filmar, eu morro. […] É um meio de estar vivo. Por que o resto não tem a menor importância.” As gravações talvez tenham sido dos momentos mais felizes da última década de sua vida. Mesmo assim, sem se deixar levar por sentimentalismos, Coutinho fez questão de dizer que continuava “tão infeliz quanto antes.”
*
Nas inúmeras ocasiões nos últimos anos em que mudou de lugar e sentou diante da câmera ou apenas do microfone, Coutinho parece ter tentado compensar seu relativo mutismo quando estava na posição de diretor. O ritual era sempre o mesmo. Chegava de mau humor, começava com má vontade, rejeitava a primeira pergunta, às vezes de forma agressiva. Depois, costumava aderir ao jogo e falar muito. Às vezes de maneira incompreensível, articulando mal, atropelava as palavras e omitia a frase usual que introduz o assunto. Outras vezes era inconveniente. Recorria a impropérios à vontade. Errava nomes e datas, sem deixar de dizer também muita coisa reveladora não mencionada em entrevistas anteriores.
Na tarde da sua última quinta-feira, por exemplo, falou com veemência incomum do seu medo, da utilização dos cadáveres e dos mártires pela esquerda e pela direita, da sua prisão no Recife com a qual sonhou durante anos, do regime de terror instaurado na Paraíba e em Pernambuco depois do golpe de 1964, do assassinato de um filho de Elizabeth Teixeira, morto por um irmão diante dela.
Meses antes, fora profético ao dizer que seu ideal era “morrer no meio de um filme”. Sonhava “fazer filmes inacabados”, declarou.
*
Por razões legais, Coutinho não pode realizar um de seus últimos projetos. Dessa vez os encontros seriam com crianças, pista nítida para situar a origem da sua inspiração no encantamento de Benjamin por crianças .
Coutinho deixou um filme gravado sem editar – registro final do seu olhar, da sua voz, da sua escuta e do seu corpo. São vestígios preciosos que nos restaram junto com os filmes anteriores, suas declarações e nossas lembranças.
* Este texto, segunda parte e final do que foi publicado há uma semana, serviu de base para minha participação na mesa redonda Listening and Seeing:an Homage to Eduardo Coutinho, organizada e apresentada por Pedro Meira Monteiro e Bruno Carvalho, realizada na Princeton University, em 6 de março. Após a projeção de Eduardo Coutinho, 7 de outubro, de Carlos Nader, João Moreira Salles, Robson Pereira, Carlos Nader, Sandra Kogut, Lucia Serrano Pereira, Tom Levin, João Biehl, Eduardo Cadava, Lilia Schwarcz e o autor deste post participaram do encontro.
** Foto de Zeca Guimarães
Leia também
Encontro amoroso – Eduardo Coutinho e seu método (I)