Numa noite em março de 2016, João Paulo Sampaio estava em casa quando recebeu uma notificação no WhatsApp. Um amigo tinha lhe encaminhado um vídeo. “Dá uma olhada nesse menino.” Sampaio estava habituado a receber mensagens desse tipo, às vezes madrugada adentro. Tinha completado um ano de trabalho como coordenador das categorias de base do Palmeiras, comandando uma equipe de oitenta funcionários, entre eles oito captadores – como são chamados formalmente os olheiros, treinados para farejar jovens com potencial para virar craques. Antes disso, desempenhou a mesma função no Esporte Clube Vitória, de Salvador. Recebe, em média, trinta vídeos por dia. Crianças e adolescentes, geralmente de times pequenos, correndo, driblando, marcando golaços, fazendo defesas impressionantes.
Dos trinta vídeos diários, um ou dois costumam cativar o olhar treinado. Às vezes nenhum. Mas o menino dessa vez era visivelmente diferente. “Caramba”, pensou Sampaio. Com 9 anos*, Endrick Felipe Moreira de Sousa, canhoto, entortava a defesa adversária e metia gol por todos os lados. Gol de falta, gol de fora da área, gol driblando o goleiro. Era ágil e obstinado. Vestia, na época, a camisa das categorias de base do São Paulo. Era o número 10 da equipe.
Sempre que vê um canhoto, Sampaio sente um frio na espinha. Quando jovem, jogou como volante – tinha boa técnica, diz, mas era lento. Sofria para acompanhar a passada de jogadores como Endrick, sobretudo quando driblavam e chutavam com a perna esquerda. “Eu sofria muito com meias canhotos. E me lembro disso quando vejo um jogador diferente. No vídeo, o menino arrancava, finalizava e mirava o gol toda hora. Era impressionante.”
Endrick morava com a família em Valparaíso de Goiás, a meia hora de Brasília, e os pais não tinham dinheiro para se mudar. O São Paulo, time onde ele treinava, não quis bancar a estadia da família na capital paulista. Como não havia solução para o impasse, Endrick acabou dispensado do clube. O vídeo que chegou às mãos de Sampaio, portanto, foi oportuno (ele pode ser assistido no canal de YouTube de Douglas Ramos, pai de Endrick. O perfil tem 179 seguidores e vários vídeos antigos do menino). Ao se inteirar da história, o coordenador do Palmeiras mandou contratar Endrick e avisou que providenciaria, além de moradia na cidade, um salário de 3 mil reais. Prometeu também tentar um emprego para Ramos no clube. Na semana seguinte, a família desembarcou em São Paulo.
Endrick se mudou com o pai e mãe para os arredores do Allianz Parque, o estádio do Palmeiras, na Zona Oeste da cidade. Douglas trabalhou com a mulher vendendo café e bolo no metrô da Barra Funda, até que foi contratado como faxineiro do clube. Sampaio só impôs uma condição: pai e filho não ficariam no mesmo ambiente, para não se distraírem. Assim, Endrick foi para o Centro de Treinamento de Guarulhos, enquanto o pai passou a bater ponto no CT da Barra Funda, onde ficam os jogadores profissionais.
Histórias como a de Endrick, uma promessa de ascensão fulminante, circulam rapidamente no mundo do futebol. O menino ainda estava na base, mas já era famoso no CT do Palmeiras. A tal ponto que atletas do time profissional pediam para tirar foto com Douglas, seu pai. O goleiro Jailson e o meio-campista Raphael Veiga viraram amigos da família.
Jailson – veterano que se aposentou no ano passado, aos 41 anos – notou certo dia que Douglas estava magro além da conta. Ao perguntar a ele o motivo, descobriu que o pai de Endrick tinha perdido vários dentes e, sem dinheiro para fazer implantes, andava tomando só sopa já havia algum tempo. Jailson então promoveu uma vaquinha entre os jogadores e bancou o tratamento dentário de Douglas, que aos poucos retornou ao peso normal.
Em entrevistas, Douglas chora toda vez que se lembra do tempo em que trabalhou na faxina do clube. Com o sucesso do filho, a vida financeira da família se resolveu. Endrick estreou na equipe profissional do Palmeiras em 2022. Aos 17 anos, já venceu dois Campeonatos Brasileiros, uma Supercopa e dois Campeonatos Paulistas (o último foi há poucos dias, no domingo). Em março, marcou gols pela Seleção em amistosos contra Inglaterra e Espanha. É a maior promessa do futebol brasileiro desde Neymar.
“Eu não posso desligar o celular nunca”, brinca João Paulo Sampaio. Aos 47 anos, o ex-jogador – um baiano de voz rouca e acelerada, nascido em Feira de Santana – tem posição destacada no Palmeiras. O clube, ao lado do Flamengo, conta hoje com o melhor elenco do Brasil e uma estabilidade invejável. É referência sobretudo na criação de jovens craques. Das três últimas edições da Copa São Paulo de Futebol Júnior, duas foram vencidas pelo Palmeiras. O clube também conquistou, em 2018 e em 2022, o troféu do Campeonato Brasileiro de Futebol Sub-20. Foi vice-campeão em 2019 e em 2023.
Para os times de futebol, claro, trata-se de um investimento. O volante Danilo, 22 anos de idade, foi vendido recentemente para o Nottingham Forest. O clube inglês pagou ao Palmeiras 20 milhões de euros pela transação (quase 110 milhões de reais). Danilo também chegou a Sampaio por meio de um vídeo, gravado pelo motorista do ônibus que transportava o elenco do Cajazeiras, clube baiano onde o volante jogava até 2018.
No currículo de Sampaio, estão ainda o zagueiro David Luiz (outro que foi dispensado pelo São Paulo antes de alcançar o estrelato) e o atacante Hulk, ambos acolhidos por ele nos tempos do Vitória. Mais tarde, quando já estava no Palmeiras, o coordenador ajudou a lapidar os talentos de Gabriel Menino, Gabriel Jesus, Artur Guimarães e Luan Cândido.
Sampaio, quando era ele próprio uma jovem promessa dos gramados, jogou na equipe do Vitória que fez sucesso na Copa São Paulo de Futebol Júnior em 1993 e que chegou à final do Campeonato Brasileiro daquele ano (o time, ironicamente, acabou derrotado pelo Palmeiras). Fazia dupla de volante com Vampeta, que viria a ser pentacampeão mundial pelo Brasil, num elenco que contava ainda com o goleiro Dida e o atacante Alex Alves.
Depois de algumas lesões, no entanto, Sampaio achou melhor investir numa carreira fora dos gramados. Tornou-se treinador, integrando a equipe técnica do Vitória durante oito anos. Em 2007, foi contratado como coordenador das categorias de base do clube, cargo que ocupou até 2014. Seu trabalho chamou atenção da diretoria do Palmeiras, que resolveu tirá-lo do clube baiano. “O Vitória não tinha uma grande estrutura”, diz Sampaio. “Tinha um campo só para sete categorias de base. Tínhamos que treinar em um campo de barro.”
A penúria, embora superada, acabou se convertendo em método. No Palmeiras, clube bem estruturado, com gramados para dar e vender, Sampaio quis que os meninos da base jogassem de tempos em tempos no barro. A ideia era que voltassem às origens e exercessem a liberdade da rua, sem ter um treinador ao lado dizendo o que deviam ou não fazer. A sugestão foi acatada pelo clube. Desde então, os times juvenis do Palmeiras jogam ao menos uma vez por semana em comunidades da região metropolitana de São Paulo.
“O Endrick jogou muito no Projeto Favela na época do Sub-11, Sub-12, Sub-13”, relembra Sampaio. Projeto Favela é como ficou conhecida a iniciativa palmeirense. “Hoje a gente está construindo um terrão com uma gaiola dentro do nosso CT em Guarulhos.” Gaiola, ele explica, é o tipo de campo fechado por todos os lados, em que a bola não sai pela lateral.
Outro aprendizado trazido do Vitória foram as viagens internacionais. “O Vitória viajava demais e isso criava alguns pilares da equipe. Um deles é a confiança que você dá ao jogador para enfrentar, já na base, as equipes que ele só vê pela tevê, especialmente da Champions League”, explica o coordenador. “Outro pilar é comercial. Muitos atletas você já vende sem que ele precise voltar para cá. E tem a questão da imagem: você aparece na tevê, cria novos torcedores. A foto com o Papa Francisco é emblemática”, diz Sampaio, orgulhoso. Ele se refere ao dia em que os atletas Sub-17 do Palmeiras visitaram o Vaticano durante um torneio internacional, em 2017, e entregaram uma camisa alviverde ao papa.
As viagens ao exterior, além de tudo, deixam os jogadores mais cascudos. “Viajamos muito para o Oriente e às vezes só tem sushi no café da manhã. Se algum jogador não gosta, paciência: vai ficar com fome. Na Espanha, quem não quer arroz caldoso não come. Vai comer pão. Isso é importante para preparar aqueles que querem jogar em outro país.”
Quem faz check-in nos voos, seja para Tóquio ou para Goiânia, são os próprios atletas – mesmo os mais novinhos, de 11 anos de idade. Se alguém diz que não sabe como proceder, a resposta padrão é: “Se vira”. Diz Sampaio: “Eu vi uma entrevista do Edmundo em que ele dizia que fez o primeiro check-in aos 36 anos, quando já tinha se aposentado. Ele não sabia fazer porque os clubes mastigavam tudo pra ele. Nós não queremos isso.”
Outra norma das categorias de base do Palmeiras: todo atleta precisa atuar em ao menos três posições antes de chegar ao profissional. Endrick foi ponta, centroavante e meia. No Sub-11, já com alguma fama, pleiteou a camisa 10, com a qual já estava habituado a jogar. O problema é que outro jovem, Luis Guilherme – que Sampaio também categoriza como um jogador “extrassérie” –, brigava pelo mesmo número. “Os dois queriam a camisa, mas ali não era Batman e Robin. Era Batman e Batman. Eles brigavam, tinha ciumeira dos pais…”, relembra Sampaio. Para não tomar lado no conflito, a direção do clube achou melhor abolir a camisa 10 na categoria de base. Endrick ficou com a 9; Luis Guilherme, com a 11.
Sob o comando de Sampaio estão trezentos jovens talentos, distribuídos em categorias que vão do Sub-10 ao Sub-20, além de oitenta garotos do futsal. Os olheiros que ele coordena ficam espalhados pelo país: dois no Rio de Janeiro, um no Centro-Oeste, dois no Nordeste e três em São Paulo. As peneiras acontecem trimestralmente. Em média, duzentas crianças são avaliadas a cada edição. Outros, já tendo passado pelo crivo do coordenador – caso de Endrick –, são convidados a permanecer um tempo jogando nas categorias de base, onde são acompanhados de perto pela comitiva técnica do Palmeiras. Se aprovados, recebem uma ajuda de custo de cerca de 500 reais (durante a pandemia, o valor chegou a mil reais, complementados, em alguns casos, com cestas básicas).
Endrick tinha 14 anos quando a Covid apareceu. Todos os torneios foram suspensos. Os que envolviam jovens da idade dele demoraram mais a serem retomados. Como não queriam deixar o garoto parado em casa, os gestores do Palmeiras acharam melhor colocá-lo para treinar no Sub-17, que voltou a campo mais cedo. A diferença de idade não era uma novidade assustadora para Endrick. Aos 11 anos, ele jogava no Sub-13. Aos 13, jogava no Sub-15. E arrebentou, nas palavras de Sampaio, quando chegou ao Sub-17.
Aos 15 anos, promovido ao Sub-20, venceu a Copa São Paulo marcando um gol na final contra o Santos. “Foi naquela competição que todo mundo conheceu o Endrick”, lembra Paulo Victor Gomes, que treinou o atacante e acompanhou sua transição para o time profissional. “Além da qualidade técnica – e o canhoto geralmente tem muita técnica –, o Endrick tem o lado mental muito forte. Ele gosta de ser o protagonista e trabalha pra isso. Tem essa vontade de recordes, uma fome de ser o melhor e ser o cara. E ele é muito competitivo”, conta Sampaio. Gomes concorda: “O Endrick nunca mostrou insegurança.”
Sampaio cita como exemplo uma partida contra o Botafogo, em novembro do ano passado. Os botafoguenses, então líderes do Campeonato Brasileiro, venciam por 3 a 0 até o começo do segundo tempo. Depois do intervalo, o jogo que parecia ganho virou do avesso. Endrick chamou a responsabilidade para si e cobrou efusivamente que os colegas lhe passassem a bola. Marcou dois gols e deu um passe decisivo. A partida terminou 4 a 3 para o Palmeiras, que mais tarde ultrapassou o Botafogo na tabela e conquistou o campeonato.
Quando a adrenalina baixou, no vestiário, Endrick pediu desculpas aos companheiros pela petulância. “Juro que não sei se foi o staff ou ele mesmo que decidiu pedir desculpas. Nunca perguntei. Mas ele é muito consciente”, diz Sampaio. “É uma pessoa que gosta de ler, está sempre com uma Bíblia ou uma biografia na mão. Ele vai pegando exemplos e guardando. Até o estilo de roupa dele, com a camisa dentro da calça, é ele quem escolhe.”
Pelas contas de João Paulo Sampaio, desde 2015 o Palmeiras já investiu 260 milhões de reais nas categorias de base e lucrou, até março deste ano, 1,4 bilhão. Os números foram alavancados pela venda de Endrick ao Real Madrid. O contrato foi fechado por 35 milhões de euros, com um bônus de mais 25 milhões a depender do desempenho do atleta. O Palmeiras recebe 2,5 milhões de euros a cada cinco gols marcados por ele; até a publicação desta reportagem, Endrick já somava dezenove. Interessa ao clube madrilenho que o atacante esteja em boa fase quando aportar por lá (embora o negócio tenha sido fechado em 2022, Endrick só vai para a Espanha em julho, quando completa 18 anos).
O coordenador das categorias de base, embora orgulhoso das cifras, gosta de ressaltar que o trabalho é, em parte, parecido com o de um professor. Requer paciência e compreensão com os jovens, suas angústias e as dores do amadurecimento. A fase do estirão – quando o adolescente tem um crescimento acelerado dos ossos e músculos – é a mais delicada.
No caso de Endrick, a grande questão era entender quando o menino ia parar de crescer. “A gente falava: ‘Porra, quando esse moleque vai estacionar?’ Ele era muito forte e isso chamava atenção. Mas estava crescendo ainda. O jeito era colocar para jogar com os mais velhos, pra ele se sentir desafiado.” Sampaio conta que Hulk, hoje ídolo do Atlético Mineiro, passou por um momento parecido quando tinha 17 anos. O dilema físico tinha contornos existenciais, já que o futuro atacante ainda não sabia bem em que posição devia jogar.
“Na época, o Hulk era lateral-esquerdo e queria encarar todo mundo, vindo lá de trás, arrastando tudo na força. Então o que a gente fez? Colocou o Hulk mais perto do gol. Deu certo. Com o Endrick foi parecido. Os dois queriam sair arrastando os jogadores profissionais. Mas os profissionais são mais fortes, mais malandros, sabem cortar caminhos. No começo de carreira, falta a maturidade desse timing”, explica o treinador.
Nas categorias de base, Endrick disputou 188 partidas pelo Palmeiras e marcou 161 gols. Estreou pelo time profissional contra o Coritiba. Tinha 16 anos, dois meses e 16 dias – o atleta mais jovem a atuar pelo Palmeiras na história. Um mês depois, tornou-se o atleta mais jovem a marcar pela equipe, num jogo contra o Athletico Paranaense. Por tabela, foi também o mais jovem a marcar no Campeonato Brasileiro da era dos pontos corridos.
Os recordes rendem uma lista longa. Em 2022, Endrick entrou para a história como o primeiro atleta do Palmeiras a ganhar títulos em todas as categorias: Sub-11, Sub-13, Sub-15, Sub-17, Sub-20 e profissional. A dor de cotovelo no São Paulo foi tão grande que, naquele ano, o clube encomendou uma auditoria para identificar quem foram os responsáveis por dispensar o jovem talento em 2016, quando ele vivia no Distrito Federal.
Pouco antes de Endrick viajar para a Europa com a Seleção, no mês passado, Sampaio pediu ao apadrinhado que enviasse um vídeo com uma mensagem de aniversário para um conhecido dele, fã da estrela palmeirense. Endrick não respondeu a mensagem e foi cobrado no dia seguinte pelo chefe das categorias de base. “João [Sampaio], eu nem pego mais no celular. Aquilo é coisa de maluco”, justificou o atacante, assoberbado pela rotina. “Quando não estou treinando fico no videogame, porque se pegar o celular não dou conta.”
No fim, Endrick topou gravar o vídeo de aniversário. Sampaio aceitou as desculpas.
*Versão anterior do texto informava que Endrick tinha, na época do vídeo, 11 anos de idade. Na verdade, ele tinha 9.