No meio da tarde, enquanto espera que apareça algum cliente na loja de roupas onde trabalha na comunidade da Gardênia Azul, Zona Oeste do Rio de Janeiro, Maria Eduarda Santos da Costa, de 17 anos, aproveita o tempo livre para baixar no celular, pelo plano de dados da linha pré-paga, as tarefas pendentes passadas pelos professores. Terá de concluí-las em casa, à noite, caso seus créditos não acabem antes de carregar o material. Por causa da epidemia do novo coronavírus, poucos estabelecimentos seguem abertos no bairro. O vaivém de pessoas na rua e na loja diminuiu drasticamente. Desde que as aulas presenciais foram substituídas pelo ensino a distância, há pouco mais de um mês, o celular de Maria Eduarda tem sido sua única ferramenta de estudo, e a internet, o único meio para ter acesso aos conteúdos escolares. A estudante teve que comprar um aparelho novo, já que o antigo mal funcionava. Para isso, gastou as economias que guardou por cerca de um mês e meio, desde quando começou no novo trabalho, e com as quais pretendia pagar um curso particular de auxiliar veterinária.
O apartamento de dois quartos que divide com a mãe e outras três irmãs mais novas no Karatê, uma das microrregiões da Cidade de Deus, também na Zona Oeste da cidade, tinha conexão com a internet, mas o serviço foi cortado há cerca de um mês. Quase sem clientes, a mãe, manicure no salão ao lado da loja em que a filha é vendedora, não conseguiu pagar a conta. Por causa disso, a jovem depende única e exclusivamente do celular, o que, no caso dela, torna o acesso ao conteúdo mais difícil por causa da precariedade do sinal de internet em sua casa. Aspirante a uma vaga no curso de veterinária, a aluna do 3º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual Vicente Jannuzzi tinha feito planos de como seria o seu último ano na escola e para quais concursos iria se inscrever. “Eu fui a única neta que chegou até o final do ensino médio, então é muita pressão em cima de mim por parte da família toda”, desabafou.
Segundo levantamento da consultoria IDados, o caso de Maria Eduarda não é incomum. No Brasil, apenas 36% dos alunos da rede pública de ensino utilizam computador para acessar a internet, contra 75% dos estudantes da rede privada. Além disso, somente 3% dos jovens que estudam em escolas particulares não têm acesso à internet enquanto que, em colégios públicos, esse percentual sobe para 21%. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua Anual de 2018, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Todas essas dificuldades se acentuam para quem tem pela frente um concurso disputado como o Enem – cujo cronograma foi mantido. As provas ocorrem nos dias 1 e 8 de novembro, na modalidade impressa, e nos dias 22 e 29, na modalidade digital. Uma decisão liminar chegou a alterar o calendário por causa da pandemia de coronavírus, mas o Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu na terça-feira (28) manter o cronograma. O desembargador federal Antonio Cedenho justificou que uma alteração no cronograma poderia afetar negativamente uma sucessão de eventos e atrasar o início do ingresso de estudantes no ensino superior.
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, também defende a manutenção da prova. Em uma transmissão ao vivo no dia 17 de abril, uma sexta-feira, Weintraub afirmou que “está difícil para todo mundo” e que o exame “é uma competição”. “A gente vai selecionar as pessoas mais preparadas para serem os médicos daqui dez anos, os enfermeiros, os engenheiros, os contadores”, argumentou. O ministro também minimizou a mudança no ambiente de aprendizagem. “Aula a distância é aula normal, é aula dada”, ele disse.
Na última segunda-feira (4), o governo federal lançou um vídeo para, em meio à pandemia de Covid-19, tentar estimular os estudantes a realizar o exame, cujas inscrições vão de 11 a 22 de maio. O vídeo tem frases como ”a vida não pode parar”, “estude de qualquer lugar, de diferentes formas” e “é preciso ir à luta, se reinventar e superar”. “E se uma geração de novos profissionais fosse perdida?”, pergunta o vídeo, que teve 506 mil visualizações no Twitter e foi compartilhado mais de duas mil vezes no Facebook. A reação nas redes foi de ironia e crítica. “Afinal, todo mundo tem uma internet como a minha”, reagiu a internauta Vic Pannunzio em vídeo publicado no Twitter com mais de um milhão de visualizações. “E se várias gerações morressem por conta de um vírus? E daí?”, indagou. “Você que lute”, completou, utilizando a expressão usada nas redes para se referir a alguma situação difícil ou para mostrar superioridade. A youtuber Debora Aladim também fez um vídeo apontando as dificuldades em estudar sem professores e sem recursos. O conteúdo de Aladim chegou mais longe e alcançou a marca de mais de 4 milhões de visualizações no Instagram, onde foi publicado.
Assim como todas as outras unidades da rede estadual de ensino, o colégio onde Maria Eduarda estuda não adotou as aulas por vídeo (gravadas ou em tempo real) e tampouco tem uma plataforma própria e preparada para ensino a distância. Professores e alunos utilizam o Google Classroom, ferramenta que pode ser acessada pelo celular, computador ou tablet. De acordo com a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, trata-se de uma parceria gratuita feita com a Google for Education, braço educacional da empresa de tecnologia Google, e a sala virtual é voltada para que os estudantes percam o mínimo de conteúdo possível. Mas Maria Eduarda conta que estudar tem ficado cada vez mais difícil, não só pela dificuldade de acesso apropriado à internet, mas também pela falta de material físico para completar algumas tarefas.
Para não precisar comprar os livros didáticos, a estudante sempre preferiu utilizar aqueles disponibilizados pela escola. E funcionava bem. Isso porque cada turma tinha uma quantidade de exemplares suficiente para atender o número de alunos que estudavam naquela sala. Dessa forma, caso precisassem utilizá-los, bastava ir até a estante, que ficava no canto da sala de aula, escolher o livro e pegar. Por causa do número limitado de unidades, os estudantes não podiam nem levar para casa nem retirar de sala. Mas, sem ter como ir até a escola para pegar os livros, a situação se tornou um problema porque alguns professores continuaram pedindo tarefas que só podem ser feitas com o livro em mãos.
De acordo com a Secretaria Estadual de Educação, os alunos com dificuldade de acesso à internet iriam receber chips com internet móvel e material impresso em casa. Maria Eduarda, no entanto, não recebeu qualquer indicação da escola ou do órgão público sobre uma solução para o seu problema. Questionado pela piauí sobre a cobrança de um material didático ao qual os alunos não têm acesso, o órgão estadual não retornou. No grupo de WhatsApp da turma, as reclamações sobre como a situação está sendo administrada acontecem a todo momento e uma das principais é a demanda de exercícios além do normal. “Está todo mundo no grupo reclamando porque eles estão passando trabalhos demais”, conta.
A casa da estudante de 17 anos faz parte dos 34% domicílios brasileiros das classes D e E que têm acesso à internet mas não ao computador. A pesquisa TIC Domicílios 2018 revelou que o percentual é maior (58%) para as pessoas que não têm nenhum dos dois itens. Esse número, no entanto, vai diminuindo à medida que a classe social aumenta. Em residências pertencentes à classe A, ele é próximo de 1%, o que deixa evidente a desigualdade de acesso a recursos para a continuidade dos estudos a distância. No que se refere ao uso individual, cerca de 54% dos jovens de 16 a 24 anos acessam a internet exclusivamente pelo celular. O número aumenta quando a faixa etária é deixada de lado é levado em conta a renda familiar. Ele chega a 78% no caso de famílias com renda de até um salário mínimo, e a 63%, entre um e dois salários mínimos.
Para o presidente e um dos fundadores da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), Fredric Litto, a maior parte das instituições de ensino brasileiras não estava preparada para uma mudança tão abrupta no formato de ensino. Ele acredita que o método oferece uma riqueza muito maior do que a aula presencial e tem a capacidade de engajar muito mais o aluno, quando bem empregado. “As pessoas acham que educação a distância significa gravar vídeo-aula, só que é muito mais complexo que isso. Quando bem feita, ela tem todas as condições de ser algo superior. Mas, como um todo, não é o que está sendo feito no Brasil. E deve ser algo muito bem organizado para que os alunos não tenham qualquer dúvida em relação ao conteúdo passado”, explica. Ele é professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e foi o fundador da Escola do Futuro da USP, que busca agregar o uso das novas tecnologias da informação e da comunicação às escolas envolvidas no projeto.
Para o educador popular e conselheiro tutelar de Jacarepaguá Jota Marques, os órgãos públicos deveriam ter feito um planejamento melhor e adaptado a situação à realidade de cada estudante. Ele é morador da Cidade de Deus e o principal representante da região no Conselho Tutelar, órgão municipal cuja principal função é zelar pelos direitos das crianças e dos adolescentes. Coordena o coletivo Marginal, que propõe educação popular com comunicação comunitária e política para jovens da Cidade de Deus.“O formato veio de cima para baixo, já com todas as direções a serem implementadas e não considerando as particularidades do território. Ou seja, mais uma vez uma educação que olha para o sujeito de forma homogeneizada, que acredita que todos os alunos sejam parecidos, que eles tenham as mesmas condições e que o formato funcionará para todos”, diz.
Apesar da situação adversa, Maria Eduarda continua estudando como consegue. Depois de ter comprado o celular novo, voltou a juntar dinheiro para pagar o curso de auxiliar veterinária, desejo que pretende realizar assim que possível. Apesar de a renda ter diminuído por causa da queda no número de clientes na loja, o que baixou o salário dela de cerca de duzentos reais semanais para noventa, ela não abre mão de pagar as próprias contas. “A minha mãe tem quatro filhas, então eu com 17 anos não tenho mais necessidade de ficar pedindo coisas pra ela”, diz a jovem, que começou a trabalhar quando tinha 12 anos. “Quero terminar meus estudos. Tudo direitinho, como tem que ser. Mas o meu medo é ter que fazer o 3º ano de novo e ficar atrasada”, explica. Ao mesmo tempo, teme fazer o Enem e os demais concursos no final do ano sem o preparo adequado. Num ano marcado pela pandemia, o sonho de se tornar veterinária parece um pouco mais distante.