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    Ilustração: Beto Nejme_2020

história pessoal

Enfim, frio

Um amante da meteorologia recebe a onda polar

Daniel Lisboa | 02 jul 2021_16h05
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Enquanto escrevo este texto, o Brasil enfrenta sua mais forte onda de frio desde 2016. São Paulo, onde moro, registrou 6,3°C na madrugada do dia 30 de junho. Isso na estação do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), no Mirante de Santana, área extremamente urbanizada na Zona Norte da cidade. Regiões afastadas do Centro, como Parelheiros e Engenheiro Marsilac, na Zona Sul, confirmaram a vocação para frigorífico a céu aberto e registraram 3°C e 0°C, respectivamente.

A porção central da América do Sul, do Amazonas ao Norte da Argentina, viveu nesta semana a maior anomalia negativa de temperatura do planeta fora da Antártida. Enquanto o sudoeste do Canadá torrava com temperaturas próximas a 50°C, moradores de Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia sofriam com temperaturas de 10°C a 15°C abaixo da média histórica para esta época do ano.

Em Mato Grosso do Sul, fez -3,0°C em Rio Brilhante. No vizinho ao Norte e geralmente escaldante Mato Grosso, a temperatura caiu para 3,1°C em Rondonópolis e 5,9°C em Cuiabá. A Leste, Goiás ficou com 1,2°C em Rio Verde e 6°C em Goiânia. A cidade do Rio de Janeiro registrou 8,7°C na estação meteorológica da Vila Militar, na Zona Oeste, o menor valor em dez anos para o município.

 

O certo é que milhões de brasileiros precisaram se virar para enfrentar a massa de ar polar que ainda cobre boa parte do país e só deve ir embora de vez neste fim de semana. 

Eu, não. Quer dizer, também fiz um pouco de tudo isso. Mas, ao contrário das pessoas que passaram a semana xingando o frio nas redes sociais, tenho vivido dias fascinantes. Porque sou um aficionado pelo assunto. Tenho uma relação afetiva, e um tanto obsessiva, com a meteorologia. Posso dizer três coisas a respeito de cada ano da minha vida, desde 1993: se eu estava namorando, se o São Paulo Futebol Clube fez uma boa campanha e como estava o tempo. Para ser mais exato, se o inverno foi gelado o bastante para o meu gosto. E não estou falando de gostar de passar frio. Não saio na rua só de cueca para me deleitar, numa espécie de roleta-russa da hipotermia. Meu interesse é, sobretudo, no frio como acontecimento meteorológico.

Eventos de frio intenso como o desta semana estão cada vez mais raros. Relatórios, projeções computacionais, estudos e reportagens se acumulam dia após dia para pintar um retrato cada vez mais nítido do futuro do clima no planeta. A temperatura média da Terra vem aumentando desde o século XIX, quando a humanidade começou a lançar na atmosfera grandes quantidades de dióxido de carbono e outros gases que provocam o efeito estufa.

Viver no Brasil é saber que frio é exceção e não regra. Mas, na minha amostragem empírica, dificilmente tínhamos três invernos fracos na sequência. Ao menos de São Paulo para baixo. Os últimos três anos acabaram com essa ideia. Os invernos de 2018 e 2020 foram ridículos, com anomalias positivas altíssimas em vários pontos do Centro-Sul e escassos episódios de frio dignos de nota. Para ser mais preciso, no ano passado só ocorreu um, no final de agosto.

O ano de 2019 até teve massas polares intensas, mas elas ficaram restritas aos meses de julho e agosto. A média das temperaturas mínimas do mês de maio em São Paulo, por exemplo, ficou em 17,2°C, a mais alta desde o início das medições do Inmet.

 

Tenho prazer estético ao consultar um mapa de previsão de temperaturas, observar as linhas que mostram até onde uma massa de ar polar chegará e as cores que indicam a intensidade do fenômeno. Posso dizer que faço isso todos os dias entre abril e agosto. Era para ser só um hobby, mas, nos últimos anos, virou fonte de frustração e ansiedade. Como se um brasileiro precisasse de mais uma. Já me peguei reclamando sobre isso na terapia. Ouvi do psicólogo que eu não deveria me atormentar com coisas que estão fora do meu alcance, como controlar o clima da Terra.

Perdi a conta de quantas vezes, nesses anos recentes, acompanhei as atualizações dos modelos meteorológicos GFS, norte-americano, e ECMWF, europeu, só para estragar meu humor. O roteiro era sempre o mesmo. O final da grade de previsão mostrava uma bela massa de ar frio entrando pela América do Sul e – aleluia – chegando com força ao Brasil. À medida que o tempo passava, porém, as novas atualizações iam diminuindo a intensidade do frio até praticamente não restar nada.

Aconteceu em julho do ano passado. Uma poderosa massa polar parecia confirmada. Restavam apenas três ou quatro dias para sua chegada, e modelos raramente erram quando um evento está tão próximo. Pois a onda de frio passou reto pela América do Sul, desviando do Brasil na última hora. Parecia de propósito. Parecia algo pessoal. Mas era só o inverno brasileiro de tempos recentes.

 

Minha avó Heloísa morreu em uma das semanas mais frias da história de São Paulo. Entre os dias 25 de junho e 1º de julho de 1994, a estação do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) no Mirante de Santana registrou uma sequência de temperaturas mínimas que variou de 1,2°C a 7,2°C.

Para mim, foi uma pequena era glacial. Eu tinha 12 anos e me lembro com nitidez daqueles dias, tão gelados que nenhuma massa de ar polar posterior conseguiu bater alguns dos recordes assinalados.

De lá para cá, o mais próximo que a capital paulista chegou de superar a marca de 1994 foi em junho de 2016, quando os termômetros da mesma estação da Zona Norte registraram a mínima de 3,5°C. Nem no também histórico inverno de 2000 os paulistanos tiveram que lidar com tamanha monstruosidade gestada nos confins do Polo Sul.

“Lembrar com nitidez”, no caso, significa recordar cada detalhe da chegada daquela massa de ar polar. O sol ainda aparecia entre as nuvens no dia 25 de junho de 1994, um sábado, quando os telejornais informaram que a onda de frio já atingia com muita força o Sul do país. Saí à avenida onde morava, no bairro do Sumaré, para ir à decrépita padaria no quarteirão vizinho. Não poderia ter escolhido hora melhor. Ao menos naquela parte da cidade, o tempo virou enquanto eu estava na rua.

Nunca me esqueci da surra de chuva e vento que levei, eufórico, enquanto caminhava de volta ao meu prédio. Imagino que os incautos que corriam para lá e para cá tentando se proteger de tão repentina mudança do tempo não faziam ideia daquilo que estava por vir.

Em regra, é assim que chega uma onda gelada: primeiro vem a frente fria, que traz nuvens e ocasionalmente chuva; depois, a massa de ar frio. A corrente glacial normalmente se manifesta aos poucos, num fenômeno que os meteorologistas chamam de advecção polar. Os ventos frios sopram até baixar de vez a temperatura. O processo pode ser ainda mais rápido em casos de massas de ar frio potentes. Naquele sábado, há quase 26 anos, não tenho dúvida de que a frente fria e o ar polar chegaram em São Paulo de mãos dadas.

A temperatura caiu quase instantaneamente. De acordo com o Inmet, às nove da manhã, estava por volta de 16°C em São Paulo. Quando saí de casa outra vez, no começo da tarde, o rádio do salão em que fui cortar o cabelo noticiava uma temperatura de 10°C. Tenho três lembranças desse cabeleireiro, que trabalha no bairro até hoje: a vez em que, não me pergunte como, cortei o cotovelo no espelho; o dia do corte de cabelo ao estilo Kevin Arnold (da série Anos Incríveis), que me rendeu alguns dias de bullying no colégio; e a tarde da advecção polar galopante.

 

Em 1994, só era possível conferir a previsão do tempo em jornais impressos, boletins dos telejornais e junto à extinta Telesp, a estatal telefônica paulista. Apenas o serviço telefônico de meteorologia, aliás, dava informações continuamente. Bastava ligar para o número 132, se não me engano, e uma voz feminina gravada contava o que estava acontecendo com o tempo em São Paulo e algumas cidades do interior.

Por anos recorri ao serviço de forma obsessiva. Como tantos outros adolescentes, eu fazia ligações às escondidas e tomava bronca da mãe quando chegava a conta de telefone. A maioria dos amigos se encrencava por causa das chamadas para o disque-sexo ou dos telefonemas intermináveis para a namorada. Mas quem precisava disso quando podia acompanhar o deslocamento de uma belíssima área de alta pressão polar?

Disquei para a previsão da Telesp tão logo acordei no dia seguinte à chegada da massa de ar polar, 26 de junho de 1994, um domingo. “No momento, na capital, aqui na Água Branca, 5ºC.”

Vesti meu casaco e fui dar uma volta na rua. Queria entender o que 5°C significavam na prática. Topei com o dono do colégio onde estudei vestindo camiseta e achei aquilo um absurdo. Até hoje me irrito com gente que não se veste de acordo com a temperatura do momento (evidentemente, não me refiro aos que não têm condições de comprar as roupas adequadas). O brasileiro, tenho certeza, é campeão da modalidade.

Fazia sol, e fui passear com minha mãe, Cecília, na Avenida Paulista. Fiquei espantado com os termômetros de rua marcando 8°C em plena tarde ensolarada. Na minha até então escassa experiência com as idiossincrasias do clima, o frio vinha invariavelmente associado a céu encoberto.

Qual seria a temperatura mínima na madrugada? Estava ansioso para saber. Acontece que, à época, a previsão do tempo para a segunda-feira ficava num ponto cego para os obcecados por meteorologia. O indispensável serviço da Telesp não fornecia a informação de domingo para segunda. Os canais abertos não tinham telejornais no domingo à noite, e a Folha de S.Paulo, que assinávamos em casa, tampouco trazia a previsão estendida de temperaturas.

O jornal só noticiou na terça-feira a temperatura de 2°C registrada durante a madrugada de domingo para segunda. Por muito tempo eu achava que esse havia sido o pico do frio. Conferindo agora os registros do Inmet, descubro que, na verdade, o domingo (26) fora mais gelado, com 1,2°C de mínima.

Passei a segunda-feira grudado nos telejornais. O monstro polar ganhava, finalmente, o destaque merecido. Um repórter, creio que do Bom Dia, São Paulo, da Rede Globo, sobrevoava o cinturão verde ao redor da capital paulista e discutia os danos causados pelas geadas. Outra reportagem mostrava um termômetro de rua da Avenida Paulista marcando 1°C pela manhã e um taxista limpando o gelo que se formara sobre o capô do carro. Nem o Rio de Janeiro escapara. Na terça (28), fez 6,7°C no Alto da Boa Vista.

À época, eu ainda não tinha noção da magnitude histórica daquela onda de frio. Tratava-se de um baita presente dos deuses do clima para quem havia começado a se interessar por meteorologia apenas um ano antes. Eu deveria estar muito feliz e empolgado. Só que minha avó Heloísa estava morrendo de câncer logo ali, dois andares abaixo do meu.

Ela nos deixou na terça-feira, dia 28 de junho de 1994. Pode parecer estranho falar dela e depois descarregar um monte de dados meteorológicos. É porque me lembro muito mais do frio do que dos últimos dias da minha avó.

Minha memória de infância é composta de infinitos fragmentos das horas passadas ao lado dela. A piscina de lona montada no terraço, as torradas que ela fazia quando eu chegava da escola e queria assistir Muppet Babies na tevê, as idas à (outra) padaria para comprar pão de queijo e um doce cravejado de açúcar do qual ainda sinto falta.

Heloísa partiu cedo, mas segue ocupando o posto que toda avó deve ocupar na memória de um neto. O câncer de mama se espalhou para o fígado, mas sua sobrevida foi muito maior do que a prevista pelos médicos. Ela só ficou realmente mal por um curto período, do qual lembro apenas dos seus olhos amarelados, por causa da doença.

Será que a visitei em sua última semana de vida? Que lugar minha avó ocupou na minha psique pré-adolescente ao longo do fim de semana que acabo de descrever? Sou capaz de lembrar das janelas do meu apartamento embaçadas pelo frio, mas não de minha última conversa com ela.

Algumas das respostas a essas perguntas hoje me parecem um tanto óbvias. Manter distância mental e física foi a maneira que encontrei para lidar com minha primeira grande perda. E só agora enxergo a incrível capacidade da minha mãe de me proteger. Ela me levou para passear, construindo a memória de um fim de semana como outro qualquer, mesmo em meio à fase mais triste de sua vida. Acho que é hora de dizer obrigado.

Claro que o interesse pela meteorologia me ajudou a lidar com a dor da perda. Do mesmo modo que compôs o cenário de passagens memoráveis da minha vida. Dos anos de marasmo, tanto climático quanto pessoal, me lembro menos. Mas as recordações estão lá, peças menores desse mosaico de dores, alegrias e erupções polares. Construí-o ao longo de 27 anos. Por um bom tempo, sem me preocupar com o futuro.

 

Dei meu primeiro beijo aos 14 anos em 1996 – privilégio oferecido por uma das pouquíssimas garotas que faziam parte da turma do prédio. E que inverno foi aquele: massas de ar polar uma atrás da outra, vinte mínimas abaixo dos 10°C entre junho e agosto e muitos outros dias não excepcionalmente frios, mas notáveis ainda assim.

Foi justamente durante uma das mais fortes ondas de frio daquele inverno, entre 28 de junho e 1° de julho, que Carol e eu brigamos. Viajei no dia em que a massa de ar polar chegou. Chovia e fazia muito frio em todo o trajeto para Monte Alegre do Sul, no interior de São Paulo. Eu só conseguia pensar se ela voltaria comigo e em como aquele era um péssimo momento para eu deixar São Paulo. Liguei para a previsão do tempo antes de partir para a Rodoviária do Tietê: 12°C com chuva na capital.

Carol não reatou comigo. Mas, em 1999, eu já havia superado minha primeira grande frustração amorosa. Comemorei meu aniversário de 18 anos no amplo salão de festas do prédio no Sumaré. Hoje, reconheço que não era o local mais apropriado para celebrar minha entrada na vida adulta. Talvez por isso uma parte considerável da turma do colégio tenha desaparecido depois da meia-noite. Homens de verdade não se embriagam com batida feita pela mãe do aniversariante.

Pouco me importei. Eu grudava minha cara nas compridas janelas que davam para o playground porque estava de olho mesmo era no que acontecia do lado de fora do salão. Ninguém me daria presente melhor do que aquela advecção polar pesada e constante. A temperatura estava ao redor de 10°C no ínicio da noite de sábado, 14 de agosto de 1999 (comemorei na semana seguinte à data oficial). Ao final da festa, o pai de um amigo quis me presentear com uma visita às prostitutas da Rua Augusta. Recusei. Preferi subir para o meu apartamento e, antes de dormir, conferi na internet a temperatura em São Paulo: 7°C.

Aquela massa de ar frio foi breve, mas violenta. No dia seguinte, domingo, São Paulo registrou a mínima de 5,4°C com céu nublado e garoa; a máxima não passou de 12,2°C. Foi minha festa de aniversário mais fria até hoje.

Ano 2000. O som de Lou Bega na balada, flertes sem rosto pelo ICQ, o primeiro programa de mensagens instantâneas a se popularizar na internet. Quase ninguém tinha fotos digitais para mandar. Quando tinha, a imagem demorava tanto para carregar que dava tempo de pedir uma pizza e tomar banho enquanto a paquera se revelava aos poucos na janela de bate-papo. Criava lá sua tensão sexual.

Acompanhava os ícones dos bilhetinhos apitando na tela do computador, esperando que algum deles virasse um encontro romântico em uma praça de alimentação de shopping. Nessa época, portais de notícias já informavam a temperatura em tempo real. Durante quase todo o mês de julho, dividi minha atenção entre o frio e as ainda arcaicas ferramentas de paquera online.

De 13 a 21 de julho de 2000, o Centro-Sul do Brasil passou por uma das mais potentes e duradouras ondas de frio da história recente. Quatro vigorosas massas de ar polar entraram no país com um curto intervalo entre uma e outra, provocando a excepcional sequência de mínimas em São Paulo: 10,3º/9°C/ 9,5°C/10,1º/ 4,4°C/ 4,1°C/ 4,3°C/8,2°C/ 4,5°C.

 

Durante muito tempo, apenas sonhei em acompanhar o deslocamento de uma frente fria em tempo real. Ia para a cama ansioso com o prognóstico de uma virada no tempo, dava uma última olhada no meu velho PC 386 antes de dormir e pensava se um dia eu poderia usá-lo para acessar imagens de satélite do meu quarto, sem ter que esperar pelo Jornal Nacional. Aos jovens que não conheceram o mundo pré-internet, eu vos digo: à época, tal possibilidade parecia tão longínqua e estapafúrdia quanto se deslocar por teletransporte.

O Brasil ainda está longe de ter uma cultura meteorológica arraigada como acontece nos Estados Unidos e em alguns países europeus, onde o público em geral acompanha e entende o básico sobre o assunto. Nesses países, os boletins de previsão do tempo são extremamente detalhados e frequentes. A meteorologia é tratada com o devido senso de urgência: eventos de tempo severo são noticiados passo a passo, e a população é repetidamente alertada. Um cidadão que mora no Norte da Flórida, por exemplo, saberá tudo a respeito da chegada de uma frente fria: sua intensidade e trajetória, as localidades que serão mais afetadas, os fenômenos que causará.

Já no Brasil, os telejornais andaram investindo bastante no aspecto visual das previsões e no didatismo. Ainda estão longe, porém, de realmente tratarem o assunto com seriedade. Institutos de meteorologia e a Defesa Civil de capitais como São Paulo e Rio de Janeiro têm serviços de alerta à população, mas a grande maioria dos brasileiros não têm o hábito de acompanhá-los, e a mídia ainda lhes dá pouca visibilidade.

No caso da onda de frio em andamento, os modelos já apontavam sua chegada desde a semana passada. O frio se intensificava a cada nova rodada de previsão. Fui ao Twitter cobrar a Prefeitura de São Paulo. Estavam tomando alguma providência? Com a gigantesca população de rua da cidade, era certo que alguém morreria. Ninguém deu bola para esse tuiteiro e a imprensa também tratou do assunto como algo ordinário. Agora chegam notícias, ainda não confirmadas, de que até doze moradores de rua morreram de frio nas últimas madrugadas.

Como aconteceu em quase todas as áreas de interesse, a internet tornou acessível para os diletantes um turbilhão de informações antes reservadas apenas aos especialistas.

Comecei a entender e a me encantar com as muitas variáveis que regem a atmosfera. Realizei o sonho de consultar imagens de satélite em tempo real, descobri o que são áreas de alta e baixa pressão, cartas sinóticas, modelos meteorológicos e o Enos (índice que mede a interação entre a atmosfera e os fenômenos El Niño e La Niña).

Os modelos usados pela maioria dos institutos estão hoje à disposição de quem quiser acessá-los. Hoje, me dou ao luxo de fazer minhas próprias previsões. Claro que nada substitui a análise de profissionais. Mas sou tomado por inegável satisfação nas ocasiões em que meu singelo prognóstico se mostra mais acertado que o de alguns famosos institutos de meteorologia. Se me tornei um esteta da meteorologia, devo isso, em grande parte, ao fórum online Brasil Abaixo de Zero (BAZ), ponto de encontro de obcecados como eu.

Sim, a internet derrubou barreiras e permitiu que pessoas de interesses semelhantes se encontrassem e interagissem. Mas essa história de “descobrir que tem gente igual a você” me parecia um tanto exagerada. Coisa de extremistas, misóginos ressentidos (ou incels) e adeptos de taras muito específicas.

E, no entanto, o Brasil Abaixo de Zero reúne quase 7 mil fanáticos como eu pelo clima, em especial pelo frio. Amadores em sua maioria, os membros do fórum já postaram 511 mil mensagens distribuídas por 6 792 tópicos. Não lembro exatamente quando comecei a frequentá-lo, mas até então eu jamais havia conhecido uma única pessoa que fosse tão interessada nesse assunto quanto eu.

Amigos, namoradas e paqueras sempre viram meu interesse por meteorologia como algo bonitinho ou excêntrico. Com o tempo, passaram a respeitá-lo como um conhecimento genuíno. Até me pedem previsões. Há quem insista na urgência de transformar meu hobby em um blog, podcast ou canal do YouTube. Agradeço pela consideração, mas a verdade é que só consegui prender a atenção alheia por mais de cinco minutos duas ou três vezes na vida. É só começar a falar sobre modelo numérico e Enso para o interlocutor – mesmo os que pareciam de início entretidos na conversa – olhar para os lados ou balançar a cabeça fingindo interesse. É a clássica postura corporal de quem, no fundo, está dizendo: “Bacana você gostar do assunto, mas isso não significa que eu queira conversar a respeito.”

No Brasil Abaixo de Zero, encontrei colegas que se emocionam com previsões para daqui a três meses. Sofrem porque uma massa de ar polar não fez o trajeto desejado. Amaldiçoam um modelo por ele ter feito uma previsão desagradável.

Chamamo-nos carinhosamente de “bazianos”, em referência à sigla BAZ. Temos nosso próprio jargão: “baleia polar” é uma massa de ar polar forte que, em vez de entrar no Brasil pelo interior do continente, faz uma trajetória marítima; já aquela que deixa muito a desejar em intensidade configura um “peido polar”.

Geralmente amamos e odiamos as mesmas coisas. Todos (ou quase todos) bazianos são fanáticos pelo frio e abominam o calor. Há alguns que realmente odeiam as altas temperaturas, como um membro de Curitiba que reclama toda vez que a temperatura passa dos 20ºC. Mesmo aqueles que não são propriamente “inimigos” do calor, se interessam pelo frio porque, em um país tropical, fortes ondas polares são um evento raro. Em outras palavras, temos calor quase o ano inteiro, onde está a graça e o exotismo? Imagino que, se houvesse um site russo equivalente ao BAZ, ele poderia se chamar “Rússia Acima de Trinta”.

A emoção envolvida na coisa toda é autêntica e quase tocante. A chegada da atual massa de ar frio foi acompanhada em ritmo frenético no BAZ, com postagens quase minuto a minuto. O tópico ‘Monitoramento e Previsão” do mês de junho estava com 3962 respostas e 140075 visualizações pouco antes da meia-noite de quinta-feira, 1° de julho. Foi uma enxurrada de dados de modelos climáticos e previsões dos mais variados institutos, além de análises feitas pelos próprios membros do fórum.

Acho que posso dizer que grande parte deles se deu por satisfeito com essa massa de ar polar. Não totalmente satisfeitos, porém. Porque nós, bazianos, imploramos pela chance de voltarmos a testemunhar algo equivalente aos eventos gloriosos do passado. Como a mágica e inigualável joia atmosférica de julho de 1975, que causou neve com acumulação em Curitiba e proporcionou o único registro em vídeo conhecido de neve no estado de São Paulo, em Apiaí, no Vale do Ribeira. A furiosa massa de ar polar do final de maio e início de junho de 1979, que levou o Grêmio e o Esportivo de Bento Gonçalves a jogarem, no dia 30 de maio, sob a neve na Serra Gaúcha. Ou, ainda, a onda de frio de junho de 1985, uma das mais amplas e duradouras da história recente.

 

Nasci às 14 horas do dia 7 de agosto de 1981. Meu primeiro contato com o clima paulistano aconteceu sob uma temperatura de aproximadamente 25°C. É o que descubro consultando a série histórica horária do Inmet. Nada tão incomum para um mês que já costuma registrar alguns dias quentes. Hoje, com 39 anos, me lembro de apenas duas das ondas de frio realmente históricas citadas até aqui. Como um torcedor saudosista de um time de cujos títulos só ouviu falar ou um escritor que sonha com a Paris dos anos 1920, isso não me impede de pensar com carinho naquilo que não vivi.

Com alguma frequência, me pego divagando sobre como teria sido vivenciar essas erupções polares. Tomo a liberdade de usar conhecidos e figuras históricas como protagonistas da minha dramaturgia onírico-meteorológica. Por exemplo: como minha avó terá enfrentado o frio em 1955? Assisto a vídeos daquela década com paulistanos andando de chapéu e terno no Centro da cidade, e a imagino perambulando pelas mesmas ruas, encapotada mas elegante, sem saber que aquele não era um evento fortuito, mas algo que jamais seria igualado na história da cidade.

Do mesmo modo, imagino o que minha mãe estaria fazendo no dia 17 de julho de 1975. Teria ela noção da intensidade do frio que estava por chegar? Penso nela tomando conhaque com seu namorado de então, o dramaturgo Carlos Queiroz Telles. Ele lê para ela um texto no qual está trabalhando. Até pensam em sair, talvez dar um pulo no famoso Bar Riviera, mas logo são dissuadidos pelo tempo. Pelos dados do Inmet, São Paulo registrava 8,8°C às três da tarde do dia 17. Às nove da noite, a temperatura já tinha caído para 5,2°C.

Tancredo Neves morreu em 21 de abril de 1985. Se aquele foi um ano agitado na política brasileira, a atmosfera não deixou por menos. A massa de ar polar que estacionou sobre o Brasil entre os dias 7 e 14 de junho só poupou o Nordeste. No dia 10, Brasília registrou 3,3°C de mínima. Minha imagem favorita é a de José Sarney sozinho, à noite, em seu gabinete no Palácio do Planalto, pensando no tamanho da encrenca que tinha pela frente. Ele olha para a papelada sobre a mesa, depois para a janela embaçada pelo frio, e suspira.

 

O leitor provavelmente notou que, a não ser pela onda de frio de 2016, não citei nenhuma outra massa de ar polar histórica pós-ano 2000. Sim, tivemos ondas de frio marcantes neste século. O padrão atmosférico, no entanto, parece outro. No BAZ, sempre que alguém começa a reclamar da ausência de frio, aparece um membro para lembrar: “Aceite, é o padrão pós-2000.”

Dia desses, me peguei clicando pela primeira vez em um vídeo do site O Antagonista. Era uma entrevista com Ricardo Felicio, geógrafo e professor da Universidade de São Paulo. Ele acredita que o aquecimento global é uma fraude. Aceitei a sugestão feita pelo algoritmo do YouTube sentindo a culpa de quem, sob a proteção da madrugada, se deixa entreter pela mais depravada e condenável pornografia. Escutei os argumentos de Felicio sem me dar ao trabalho de conferir os dados exibidos por ele com muita confiança. Relaxei e me deixei levar pela ideia de um mundo sem mudanças climáticas como se escutasse aquelas seleções de ruídos que ajudam a dormir.

Negar o aquecimento global causado pela humanidade, hoje, equivale praticamente a ser terraplanista. Seria maravilhoso descobrir que os antiaquecimentistas estão certos. Caro Felicio, eu e milhares de cientistas que publicam sobre a mudança climática em revistas conceituadas – não é o seu caso – acreditamos que você está errado. Mas não teria problemas em lhe agradecer um dia caso você estivesse certo. Até entrevistaria você para redigir uma retificação deste artigo em tom mais otimista.

Lamentavelmente, não há evidências que me autorizem a apostar nisso. De acordo com a Noaa, uma agência governamental norte-americana que monitora a atmosfera e os oceanos, o ano passado foi o segundo mais quente desde que se começou a calcular ali a temperatura média do planeta, há 140 anos. Os seis anos mais quentes já registrados foram, nessa ordem: 2016, 2019, 2015, 2017, 2018, 2014. Em fevereiro, durante o verão antártico, o continente gelado bateu dois recordes consecutivos de temperatura máxima e teve pela primeira vez um registro acima dos 20ºC, medido por pesquisadores brasileiros.

Neste século, nos habituamos aos tons quentes nos mapas de previsão do tempo. Apenas os invernos de 2011, 2013 e 2016 tiveram frio de intensidade ou frequência de fato notáveis. O inverno de 2015 é o parâmetro mais preciso do que, talvez, espera por nós. Nunca antes um ano havia terminado sem uma única temperatura abaixo de 10°C no Mirante de Santana desde o começo das medições. Mencionar 2015 no BAZ é revolver os mais profundos ódios e inseguranças dos membros do fórum.

A não ser por alguns arroubos de bairrismo durante o inverno, nós, bazianos, acompanhamos as condições atmosféricas de todo o planeta – de Cuba à Nova Zelândia, passando pelos mais remotos rincões da Ásia Central. E, se ainda é difícil estabelecer uma relação direta entre o que acontece em outros continentes e a América do Sul, o mais recente inverno no Hemisfério Norte deu algumas esperanças.

De modo geral, as anomalias positivas de temperatura mais uma vez prevaleceram na América do Norte, Europa e Ásia. Mas esses continentes enfrentaram ondas de frio históricas. A Espanha foi soterrada pela neve em janeiro. Em fevereiro, a Escócia registrou -23°C, temperatura mais baixa desde 1955 no Reino Unido. Também em fevereiro, a porção central dos Estados Unidos foi varrida por uma onda de frio que em algumas cidades bateu recordes de todos os tempos. Dallas, no Texas, registrou -18,9°C, a segunda menor desde 1899. 

Poucos se iludem sobre a possibilidade de isso significar uma volta à normalidade no clima. Como já foi explicado diversas vezes, eventos pontuais de frio extremo também podem estar ligados às mudanças climáticas. O que os bazianos querem é um inverno pelo menos próximo do normal. Por enquanto, é possível dizer que está acontecendo. Boa parte do Sul do Brasil teve anomalias negativas de temperatura em maio em junho. A cidade de São Paulo só desceu abaixo dos 10 graus agora, mas no geral também está com uma média comportada. Com as águas do Oceano Pacífico esfriando rumo a um novo La Niña e as águas do Atlântico Sul um pouco menos quentes, é bem possível, provavél até, que outras ondas de frio de intensidade parecida visitem o Centro-Sul do Brasil. Vejamos o que julho e agosto nos reserva. Mas esperar por um inverno como o de 1988, por exemplo, hoje soa como uma utopia inocente de gente que ainda tem fé na normalidade climática. Naquele ano, o Centro-Sul do país teve o inverno mais frio, na média, da história recente, com anomalias negativas de quase 3 graus espalhadas por grande parte do território.

Certa vez, um membro do BAZ perguntou se poderia voltar a nevar em Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira paulista. O último relato razoavelmente confiável da ocorrência de um fenômeno desses por lá é de 1966. Um colega do fórum respondeu que, hoje em dia, seria mais fácil Nova York passar um inverno inteiro sem neve. Pareceu exagero. Mas Helsinque, capital da Finlândia, registrou em 2020 seu primeiro janeiro sem neve mensurável desde o começo dos registros, em 1911. Que otimismo nos é autorizado quando habitantes da segunda capital mais ao Norte do mundo abrem as janelas pela manhã, em pleno mês de janeiro, e não veem tudo coberto por muito gelo?

 

Um ano antes de sua morte, minha avó fez uma longa excursão pelo Sul do Brasil, e eu a acompanhei. Para muitos dos paulistanos que lotaram os dois ônibus do comboio, o frio era uma atração central da viagem. Sem o luxo das previsões estendidas, não tínhamos como saber se realmente esfriaria durante a viagem. Para nós, era óbvio que isso aconteceria.

Descobri o que era frio de verdade ao descer brevemente do ônibus em um ponto da fronteira entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Chovia, e a vegetação estava queimada. O tempo gelado nos acompanhou durante quase toda a viagem. Só tivemos uma trégua em Porto Alegre, onde chegamos após um tour pela Serra Gaúcha. Vínhamos de Gramado. Do banheiro do hotel, na manhã seguinte à chegada, escutei o camareiro dizendo para a minha avó que nevara na cidade serrana na noite anterior.

“Não deixa meu neto saber disso”, respondeu Heloísa. “Ele vai ficar maluco.”

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