Embora tenha praticamente virado a noite anterior, o senador Otto Alencar (PSD-BA) foi o primeiro a aparecer na Praça das Abelhas, local destinado às coletivas de imprensa no Senado, na manhã da terça-feira (26). Aos jornalistas, contou que ficara acordado até uma da manhã negociando pontos do relatório final da CPI da Pandemia. Com seu apoio, foi feito um acréscimo: na lista de pessoas cujo indiciamento foi sugerido pela CPI, foram incluídos o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC-AM) e o ex-secretário de Saúde Marcellus Campêlo, que ocupava o cargo durante a crise da falta de oxigênio em Manaus. A inclusão desses dois nomes foi uma exigência do senador Eduardo Braga (MDB-AM), que não aceitou deixar impunes seus conterrâneos e adversários políticos.
Em seguida, um a um, foram aparecendo no corredor principal do Senado os demais integrantes do G7 – grupo formado pelos sete senadores neutros ou de oposição, do total de onze que compõem a CPI. Um enxame de cerca de trinta jornalistas e cinegrafistas cercou Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da comissão, que aproveitou os holofotes para ser dramático. “A CPI acaba hoje, mas isso não acaba aqui”, sentenciou, sabendo da grande dúvida que paira no ar desde a abertura da comissão, seis meses atrás – se, depois de tudo o que aconteceu, o presidente Jair Bolsonaro vai ou não ser punido.
Quando Renan Calheiros (MDB-AL) despontou de um corredor logo atrás de Rodrigues, o enxame voou até ele, atropelando quem estivesse pelo caminho. O discurso do relator, ao chegar à porta da CPI, soou requentado: “Bolsonaro continua fazendo a mesma coisa, a mesma pulsão de morte”, disse Calheiros, como tem feito ao menos desde maio. “Ele acha que pode falar sozinho, mas não pode.” Discreto, o presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), foi o único a entrar na sala da comissão sem falar com a imprensa.
Aos poucos, perto das dez da manhã, o G7 se acomodou na Sala Josaphat Marinho, onde aconteceram todas as sessões da CPI. Enquanto isso, a tropa de choque do bolsonarismo brilhava nos corredores do Senado. Diante de dezenas de repórteres, o governista Marcos Rogério (DEM-RO) reclamou da “sanha vingadora” de Renan Calheiros e das “imputações teratológicas” que, segundo ele, a comissão vinha fazendo. Enfileiradas atrás do senador, quatro assessoras um pouco constrangidas diante das câmeras de tevê carregavam uma pilha de apostilas cada uma. Eram cópias do relatório paralelo de 235 páginas que Rogério iria entregar aos colegas da CPI, tentando limpar a barra de Bolsonaro.
Repetindo palavras semelhantes, Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) falou por alguns minutos com a imprensa. Ao seu lado, completamente ignorado pelos pares e pelos jornalistas, passou o deputado e ex-ministro Osmar Terra (MDB-RS), que caminhava até seu gabinete na Câmara com a máscara no queixo. Ele está entre as sugestões de indiciamento no relatório da CPI por ter sido um dos maiores porta-vozes da desinformação na pandemia. Defensor da tese esdrúxula de que as pessoas deveriam se contaminar em vez de se isolar, Terra chegou a prever que a Covid-19 mataria menos que 2 mil brasileiros no ano passado.
Como se soubesse que aquele espetáculo não ia dar em nada, Terra desdenhou. “Já vi muita CPI que investiga corrupção, mas uma que investiga opinião é novidade”, disse à piauí. Ao ser questionado sobre o conteúdo das denúncias, recorreu a um lugar comum dos bolsonaristas – “e os governadores, foram investigados?” – e encerrou a conversa.
Com a sessão já iniciada, ainda houve tempo para tietagem. O deputado Ivan Valente (Psol-SP) entrou na sala da comissão e chamou Randolfe Rodrigues, seu amigo, para gravar um vídeo para suas redes sociais. Em frente à porta da CPI, os dois trocaram elogios diante de um assessor de Valente, que filmou a cena com o celular. “Se Deus quiser, esse relatório levará Bolsonaro a mais de 78 anos de prisão!”, exclamou Rodrigues, animado. Poucos minutos depois, ao sair da sessão para falar ao telefone, o senador Marcos Rogério acabou sendo tragado para selfies com alguns homens de terno que passavam por ali e disseram ser seus admiradores. “É um rockstar esse homem, né”, comentou um dos fãs.
Às duas da tarde, Omar Aziz suspendeu a sessão para que todos almoçassem. O relator Renan Calheiros havia acabado de ler a extensa lista de 79 pessoas e duas empresas que, a seu ver, deveriam ser indiciadas pela gestão desastrosa do governo federal na pandemia. Até o começo da sessão, havia apenas 78 nomes na lista. Mas isso mudou quando o senador Luis Carlos Heinze (PP-RS) resolveu ler o relatório paralelo que havia escrito para a ocasião, em que defende o uso de cloroquina e ivermectina contra a Covid. Diante de mais esse festival de bobagens, o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) pediu que Heinze fosse incluído na lista de indiciamentos. O relator Renan Calheiros concordou, e assim foi feito.
Abriu-se uma discussão exasperada. Os governistas protestaram contra o indiciamento de Heinze, enquanto a oposição deu respaldo à decisão de Calheiros. Nesse momento, enquanto o clima esquentava, Omar Aziz deixou a sala por alguns minutos, e a sessão passou a ser comandada por Randolfe. Quando voltou, Aziz anunciou o intervalo de uma hora de almoço. Explicou que a comissão retomaria o trabalho às três da tarde e que, a pedido do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, haveria um novo intervalo às 5 horas, para que todos os senadores pudessem participar de uma votação que aconteceria no plenário.
Os membros do G7 saíram da sala enfileirados. “Vou te dizer por que o Pacheco fez isso”, disse Aziz a Calheiros, dando um tom grave a sua fala. Enquanto os dois caminhavam, Calheiros se atrapalhou com um sapato desamarrado. “Vai cair…”, alertou Aziz prontamente, e então o relator da CPI se recostou na parede para amarrar o cadarço. “Vamos almoçar?”, perguntou Aziz em seguida para o grupo de senadores que vinha atrás. Randolfe respondeu que já tinha comido. “Que falta de solidariedade”, brincou Calheiros. Ele, Aziz, Eduardo Braga e Humberto Costa (PT-PE) seguiram pelo corredor e desceram um lance de escadas até chegar numa área de acesso exclusivo dos senadores.
“Isso já é o meu abre de sexta-feira”, comentou, satisfeito, o cinegrafista Diogo André, que registrou toda a cena em sua câmera Sony Alpha. Há dez anos na Globo, ele é especialista em cobrir política e tem capturado imagens para um programa da GloboNews que mostra bastidores da CPI. “Aqui no Congresso, tudo acontece no cochicho”, explicou André.
Durante o almoço, soube-se por meio do jornalista Valdo Cruz que Pacheco não havia gostado do pedido de indiciamento do senador Heinze, que considerou, em suas palavras, um “excesso”. Depois que a notícia repercutiu, os assessores de Pacheco dispararam uma nota curta para os jornalistas, em que o presidente do Senado frisava que nunca interferiu na CPI, nem pretendia fazê-lo – mas que, de fato, achava a decisão da CPI um “excesso”.
À piauí, o senador Renan Calheiros desconversou quando questionado sobre a interferência de Pacheco. Também não confirmou se era a isso que Aziz se referia quando os dois conversavam ao sair da CPI. “Não sei informar. Não tive nenhum contato com ele [Pacheco].” Aziz, por sua vez, evitou a imprensa do começo ao fim do dia. Mais tarde, por meio de sua assessoria, afirmou não ter tido nenhuma conversa com Pacheco ontem.
Durante o intervalo de almoço, com a sala da CPI esvaziada, uma assessora de Heinze conversava discretamente com um assessor de Humberto Costa. “Ele [Heinze] como senador tem liberdade para falar a opinião dele. Faz parte do nosso show, né. A princípio acho que não vai caber o indiciamento, mas vamos pegar a Constituição e ver direitinho”, ela comentou.
Após mais de uma hora, os senadores começaram a reaparecer. Renan Calheiros e Eduardo Braga surgiram abraçados em um dos corredores do Senado, trocando afagos enquanto caminhavam até a sala da CPI. Durante cerca de duas horas, foi dado espaço para que senadores – membros ou não da CPI – discursassem. Enquanto isso, Heinze, o grande assunto do dia, caminhava, sorumbático, até o plenário do Senado, para participar de uma votação. “O artigo 53 da Constituição me protege, posso falar o que quiser”, disse à piauí. “Não o que eu quiser – o que estou falando é a verdade”, se corrigiu em seguida.
Dez minutos depois, Heinze voltou à CPI, onde leu por escrito sua defesa contra o pedido de indiciamento. No fim das contas, Alessandro Vieira voltou atrás e pediu a retirada de Heinze do relatório final. “Não se gasta vela boa com defunto ruim”, justificou o senador. O G7 concordou que o caso de Heinze deveria ser tratado pela Comissão de Ética do Senado.
Por volta das seis da tarde, a sessão foi suspensa novamente. Mais uma vez, parte do G7 desceu para uma reunião a portas fechadas. Questionado sobre o futuro da CPI, Calheiros disse que o procurador-geral da República, Augusto Aras, “tem obrigação” de levar a cabo as denúncias do relatório. Se não o fizer, o Supremo Tribunal Federal poderá ser acionado, explicou. Com relação a um pedido de impeachment, ele disse apenas que isso não compete à CPI. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) foi mais clara: “Não faltam denúncias para impeachment, mas ainda não temos povo na rua. Não tem impeachment sem povo.”
Conforme anoitecia, as câmeras de tevê se multiplicavam no corredor principal do Senado. A CPI, ao retomar a sessão, finalmente começou a votar o relatório elaborado por Renan Calheiros. “Se não discursarem igual o Fidel Castro, não deve demorar muito”, comentou um dos seguranças postados na porta da sala, conversando com um colega impaciente. Os senadores fizeram discursos para a posteridade. Simone Tebet disse que a comissão foi o ensaio de uma “ampla frente democrática”. Na mesma linha, Randolfe Rodrigues afirmou que “a CPI foi frente ampla quando nenhuma força política deste país teve capacidade de se juntar”.
Indiferente, Heinze mexeu no celular durante quase toda a votação. Como já se esperava, foram sete votos a favor do relatório e quatro contra. Omar Aziz, o último a discursar, foi o único a ser aplaudido. Fez-se em seguida um minuto de silêncio em homenagem às vítimas da pandemia. Quando a CPI foi criada, 358 mil brasileiros já tinham morrido de Covid-19. Hoje, seis meses depois, o número praticamente dobrou: são 606 mil mortos.
Omar Aziz, Renan Calheiros e Randolfe Rodrigues se abraçaram efusivamente quando terminou a sessão, sob fortes aplausos. Todos os parlamentares saíram rapidamente da sala. Aziz, sozinho, se embrenhou pelos corredores do Senado e sumiu sem falar com a imprensa. Os senadores bolsonaristas, isolados naquela festa, também saíram de fininho. Calheiros e Randolfe foram direto para as câmeras de tevê, no corredor principal da Casa.
“Não falei que eles iam terminar bem na hora do Jornal Nacional?”, brincou um dos integrantes da assessoria técnica da CPI. Na sala, só restaram cerca de dez assessores, que estavam em clima de euforia, e um faxineiro que silenciosamente recolhia a papelada e os copos de café. “Vou levar isso aqui para casa, viu? Vai ser minha nova leitura”, ironizou uma das assessoras, apontando para uma das cópias do relatório feito pelo senador Marcos Rogério que havia sido largada em uma das mesas. Seus colegas riram da piada.