Em uma clareira na selva, uma mulher indígena da etnia yagua diz à missionária mexicana Marta Rueda que três bebês nasceram na comunidade indígena Primavera, próximo ao Rio Amazonas, no sul da Amazônia peruana. As mães gostariam que eles se tornassem católicos. A missionária responde que na semana seguinte um padre irá aparecer para batizá-los, mesmo sabendo que as chances são nulas. Há a expectativa de que um sacerdote chegue em um mês, mas não que vá visitar a aldeia, a uma hora de barco e outra hora de caminhada na floresta saindo de Caballo Cocha, uma pequena cidade peruana de 25 mil habitantes, com ruas bem asfaltadas e casas de palafita, próxima à fronteira com o Brasil e a Colômbia. A paróquia de Marta Rueda, a Nuestra Señora de las Mercedes, em Caballo Cocha, no Peru, está sem padre desde 2013. Quatro missionárias franciscanas tocam o lugar e raramente visitam as comunidades peruanas ao longo do maior rio do mundo.
Em frente à igreja de Marta Rueda, em uma noite de sexta-feira de final de setembro, dezenas de pessoas se reúnem na praça principal de Caballo Cocha, pintada com as cores da bandeira do Peru. Em cima de um palco pequeno, uma criança grita ao microfone sobre pecados, o inferno e a possibilidade de salvação por meio da entrega a Cristo. Sayro Rodriguez, de 4 anos e trajando terno e gravata, viaja com o pai e a mãe pelo rio Amazonas pregando o evangelho da Igreja Pentecostal Aliento de Vida. Vieram de Cusco, umbigo do mundo inca. Enquanto Sayro exorta o Senhor, fiéis gravam vídeos e tiram fotos do minipastor; outros levantam as mãos em sinal de aleluia. Finda a pregação, Witman Rodriguez, o pai, anima todos a contribuírem. Sayro se senta com uma sacola plástica nas mãos e, sonolento, recebe moedas e pedidos de selfies.
A escassez de sacerdotes na selva e o avanço dos evangélicos são alguns dos motivos que levaram o papa Francisco a convocar o Sínodo da Amazônia, no Vaticano, que começou no último dia 6 e durará três semanas. A assembleia entre o Papa e 185 bispos, além de especialistas e convidados, discute mudanças em temas sensíveis para a instituição: o celibato, a incorporação de costumes indígenas nas celebrações e a ordenação de mulheres e de padres casados. Pressionada, a maior instituição religiosa do mundo fala em mudar prática e discurso para se reposicionar na região amazônica, com 33 milhões de habitantes espalhados por nove países, segundo dados da Repam (Rede Eclesial Pan-Amazônica).
A crítica do papa Francisco à exploração predatória da floresta é outro pilar da reunião — o que abre uma frente de atrito com o presidente Jair Bolsonaro. Ao Estado de S.Paulo, Bolsonaro admitiu que está monitorando o Sínodo, por entender que o encontro é marcado por discussões políticas. O governo brasileiro foi o único dos noves países da Amazônia a enviar uma missão diplomática a Roma para pedir participação na assembleia. Ouviu um não como resposta. Apesar de ter suavizado o tom ao dizer no final de agosto que não queria arrumar confusão com os católicos, Bolsonaro costuma criticar a atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que tem participação ativa no Sínodo. Durante a campanha, disse que o órgão “é a parte podre da igreja”. Há o temor de que o texto final da assembleia coloque mais pressão internacional sobre os planos do presidente para a Amazônia. Para justificar o monitoramento, o governo, apoiado sobretudo por militares e evangélicos, evoca o velho discurso da internacionalização da floresta.
No Norte do Brasil, os evangélicos já são tantos como os católicos, segundo pesquisa do Datafolha divulgada em setembro. No último censo do IBGE, em 2010, eles somavam 28,5% na região. No Peru, foi na Amazônia onde se registrou maior queda de católicos e o maior aumento de evangélicos no país, segundo o último censo, de 2017. Na região de Caballo Cocha, onde Marta Rueda é missionária, entre o começo dos anos 1990 e a última medição o número de evangélicos dobrou enquanto o de católicos encolheu pela metade. Hoje um terço da população da região é evangélica. No estado de Loreto, que abriga Caballo Cocha, dois em cada cinco habitantes vivem na pobreza, segundo o Índice de Pobreza Multidimensional das Nações Unidas de 2018. Um terço dos loretanos não passou da educação primária. Metade não têm água encanada.
Enquanto a paróquia das irmãs franciscanas é a única católica da pequena cidade, os evangélicos têm treze igrejas. Para evangelizar e celebrar cultos, Witman Rodriguez, pai do pregador mirim, não precisou de anos de preparação, nem ser aprovado por uma rígida hierarquia comandada por um comandante supremo – um Papa – ou mesmo dispor de uma diocese que lhe garanta recursos. Segundo o pai do pastor mirim, sua igreja deu o aval em pouco tempo e ele fez todo o resto. Rodriguez diz que os católicos têm uma maneira muito rígida tanto para celebrar a palavra de Deus como para entender o povo.
Tanto para Rodriguez como para o prefeito de Caballo Cocha, Rodolfo Díaz, dinheiro e progresso são sinais de aprovação divina. Díaz veio dos Andes e é membro do grupo religioso israelitas, que espera que Jesus Cristo reencarne no Peru e vê na floresta a terra prometida. Administra o povoado baseando-se nos dez mandamentos do antigo testamento da Bíblia e tem como meta de mandato terminar de asfaltar duas estradas que conectam o lugar ao rio Javari. Evangélicos e israelitas participam de projetos de colonização e expansão na floresta, e um dos principais projetos econômicos dos israelitas hoje é a formação de pastagens para a criação de gado.
O desmatamento na Amazônia peruana está aumentando, e em 2018 alcançou o equivalente a 140 mil campos de futebol. O Estado de Loreto está entre os quatro com maiores índices de desflorestamento, segundo o Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina (MAAP, em inglês), e as duas estradas que o prefeito Rodolfo Díaz trabalha para levar a cabo já foram responsáveis pela derrubada da floresta em uma área equivalente a 9,1 mil campos de futebol.
Na Amazônia, são as religiosas que se espalham pelas aldeias. A maior participação de mulheres na Igreja é outro tema do Sínodo, e, no Vaticano, homens decidirão até que ponto elas poderão realizar sacristias e celebrações. Apesar de sua congregação ser majoritariamente feminina e não poder realizar sacramentos, Marta Rueda é indiferente ao tema. Aos 37 anos, dezoito de vida religiosa, três deles na Amazônia, a missionária está mais preocupada com as dificuldades pontuais, como a locomoção. Subindo o rio Amazonas para visitar comunidades de ribeirinhos e indígenas, a mexicana tenta não passar mal com o balanço da canoa. A manhã está quente e úmida, e o sol rebate na água. O ronco do motor provoca náuseas. “Ainda não me acostumei”, diz, incomodada. Enquanto o barqueiro desvia de troncos, Marta Rueda conta que desde que chegou à selva tem dificuldades para entender e aceitar a relação dos peruanos amazônicos com o catolicismo. “Eles são ambíguos. Estão abertos a receber Deus, mas não entram neles conceitos como o casamento, a disciplina dos sacramentos, a liturgia. Acreditam da maneira deles, parcial, e em outras crenças”, relata.
A maneira como foi criada, em uma família tradicional no interior do México, e uma formação rígida como franciscana não a prepararam para a Amazônia. “Tive uma crise existencial quando cheguei, porque senti que estava me despindo da minha cultura e passado para pregar a palavra de Deus de uma maneira que eles entendessem”, diz. A missionária foi notando que os fiéis queriam mais ser ouvidos que ouvir, mais ajudados que ajudar. Depois compreendeu que os amazônicos peruanos têm uma moral diferente da sua: enquanto ela se preocupa mais com o futuro que com o presente, eles vivem o presente sem se preocupar com o futuro; enquanto para ela um casal deve ficar junto até que a morte o separe, para eles as relações amorosas duram até acabar; enquanto para ela a pontualidade é inegociável, para eles o tempo é elástico e flexível às circunstâncias. Pouco a pouco, ela deixou de se irritar e se tornou mais maleável, mas ainda sofre com as diferenças.
As Franciscanas de Jesus Crucificado, congregação mexicana à qual Marta Rueda pertence, chegaram a Caballo Cocha há 28 anos e estão sob guia da Diocese San José del Amazonas, a maior do Peru e que abrange os rios Amazonas, Napo e Putumayo. A diocese tem 16 postos de missão e 55 missionários para evangelizar um território maior que a Inglaterra, de raras estradas e com a maioria dos 160 mil habitantes espalhados em comunidades pequenas na selva. Integrante do primeiro grupo de franciscanas mexicanas a pisar no povoado, Marta Alícia Reynoso chegou em um avião do exército peruano. A missionária lembra que ficou impressionada pela pobreza, apesar de a comunidade servir de entreposto para a venda de madeira retirada da floresta. Sacerdotes e missionários chegaram e se foram, mas ela segue em sua posição. “A maior dificuldade é a falta de missionários. Eles vêm, mas não duram. Há que ter amor à missão, porque aqui é tudo diferente: a alimentação, o clima, a cultura. Você sente que está sempre começando do zero”, diz.
Na Amazônia, um missionário precisa desaprender o que aprendeu se quiser construir uma relação de confiança com a população, na visão do frei José Caro. Franciscano da Orden de Frailes Menores (OFM), o colombiano trabalhou em missões no seu país, no Quênia, no Equador e no Mato Grosso, no Brasil, antes de ser enviado à floresta. Arrumando livros na sala de uma casa modesta em Caballo Cocha, Caro se preparava para a próxima missão: encontros por duas semanas com caciques dos povos ticuna e yagua a dois dias de barco do povoado. Há seis anos, expedições longas nos recônditos do rio Amazonas são sua maneira de desaprender o que sabia antes.
O missionário releva sua formação acadêmica, de doutor em química orgânica e pesquisador de biogenética. “Para que serve isso em Caballo Cocha? Joguei fora 35 anos de experiência missionária quando cheguei. Não servia. Estamos acostumados a ser o centro de tudo e a nos fechar para outros espaços. Quem vem de fora e da noite para o dia quer fazer tudo vai acabar repetindo, de uma maneira ou outra, a estrutura de sempre da Igreja. Conhecer a realidade local é um processo lento. Um missionário não se constrói em um par de anos”, argumenta, em tom paternal.
Avesso aos ritos e consagrações da Igreja, Caro não costuma fazer celebrações católicas ou pregar quando vai às comunidades: deixa a liturgia de lado para escutá-las. Foi a maneira que encontrou de fazer com que elas possam se organizar contra a exploração de seus territórios. A visão utilitarista dos que vêm de fora é, para o frei, o maior problema da Amazônia. “Nem o governo peruano, nem o brasileiro velam pelos cidadãos dessa região. A política de Estado para a Amazônia foi e continua sendo a extração de seus recursos, o que gera mais corrupção, mais pobreza, mais marginalização”, afirma Caro.
A Igreja Católica, que na época da ditadura militar no Brasil passou para o campo dos críticos da visão extrativista da selva, recentemente fez uma mea culpa por sua atuação durante a colonização, quando praticou a conversão forçada dos indígenas desde que desceu com o primeiro branco o rio Amazonas, em 1542. Durante o ciclo de exploração da borracha, no início do século passado, padres e missionários fizeram vista grossa à escravização dos nativos pelas empresas de látex. Até os anos 1970, ainda nessa parte do rio Amazonas, aplicavam castigos físicos nos indígenas por manifestarem suas crenças e falarem suas línguas. “A Igreja cometeu erros impressionantes. O movimento atual quer voltar aos princípios do catolicismo, de preservar a diferença e construir a partir dela”, reflete o frei pausadamente, ajustando os óculos na ponta do nariz. O discurso do frei ecoa as discussões do Sínodo e fala em resistir aos projetos econômicos que devastam o meio ambiente e marginalizam a população tradicional. Caso o Papa formalize tal crítica no documento final da assembleia, a Igreja, como instituição, irá se chocar mais uma vez com os planos do governo Bolsonaro, que prevê grandes obras e incentivos a garimpeiros, mineradoras e fazendeiros – similar à política adotada durante a ditadura militar.
A aldeia Primavera, que Marta Rueda visitava com seus catequistas quando lhe pediram batismo, recebeu um missionário pela primeira vez em 1971. Os yaguas dessa aldeia, então uma maloca com seis famílias, pouco entendiam o espanhol. Depois de alguns anos, o cacique deu permissão para a realização de celebrações cristãs, e eles foram se convertendo. Desde a morte do missionário, um padre canadense, no entanto, as visitas se tornaram raras e uma parte da comunidade tornou-se evangélica. As casas de madeira, que se alinham em torno ao campo de futebol no centro da aldeia, foram construídas a pedido do missionário. Uma escola é a única construção de alvenaria no lugar, cercado pela selva e na beira de um riacho, onde os yaguas tomam banho e recolhem a água para beber e cozinhar. Filho do cacique que autorizou as missas, Antenor Aguirre era criança quando o padre canadense chegou. “Hoje vem mais pastor evangélico. Faz um ano que não vem padre”, conta.
No caminho de volta para o rio, depois da visita à Primavera, Marta Rueda conta que esperava que os catequistas que ela trouxera à aldeia fizessem algo da liturgia católica que lhes havia ensinado em Caballo Cocha. Em vez disso, eles formaram uma ciranda e brincaram com as crianças yaguas. Mais à frente, ela confidenciaria que na noite anterior não dormiu direito, angustiada por não ver resultados de seu trabalho. Não sabia até que ponto conseguiria influenciar fiéis e tampouco como trazer novos à paróquia. Nos rincões amazônicos, a missionária que não mostra interesse nas discussões do Sínodo vive o mesmo processo de sua Igreja: ambas precisam rever tradições para que a fé católica permaneça na Amazônia. “Me sinto dividida. Às vezes pergunto para Deus qual o sentido de ele me colocar aqui. Acho que é para aprender a amar o outro como ele é”, diz, com ar de dor e alívio, como quem descalça um sapato menor que o pé.
Esta reportagem foi produzida com o apoio do Rainforest Journalism Fund, em parceria com o Pulitzer Center.