Éde assustar a estatística sobre filiados a partidos no país da antipolítica: somam quase 17 milhões os brasileiros que MDB, PT, PSDB e congêneres relatam à Justiça serem seus membros. O susto vem de esse número, quando comparado ao eleitorado nacional, dar ao Brasil uma das maiores taxas de filiação partidária do mundo: 12%. É duas vezes maior do que a italiana, cinco vezes a alemã, seis a francesa, dez a britânica. São dados assombrosos. E assombrados: mortos vivem às pencas nos registros brasileiros.
Filiados famosos falecidos há anos permanecem em situação regular, segundo suas agremiações. Vítima fatal de acidente aéreo enquanto disputava a última corrida presidencial, Eduardo Campos consta até hoje como associado ao PSB em dados publicados pelo Tribunal Superior Eleitoral. Não é o único finado cacique partidário nessa situação. Ex-presidente do PSDB, Sérgio Guerra também aparece como “regular”, apesar de ter morrido em 2014.
Um dos registros de filiação que mais tempo sobrevive ao desaparecimento do titular é o do ex-presidente do PTB José Carlos Martinez. Faz quase quinze anos que morreu – outra fatalidade por acidente aéreo –, mas continua vivo para seu partido.
A sobrevivência no registro de filiação se repete com os saudosos deputados João Castelo (PSDB-MA), Maurílio Ferreira Lima (DEM-PE), Celso Giglio (PSDB-SP), João Bittar (DEM-MG) e Homero Pereira (PSD-MT) – entre outros. Muitos outros.
O Ibope perguntou aos eleitores brasileiros se eles são filiados a algum partido. Apenas 3% responderam que sim. Outros 5% disseram que já foram filiados. Dado o cuidado que as burocracias partidárias demonstram com a precisão e atualidade de seus registros, não seria demais supor que esses 5% que pensam serem ex-filiados continuem, também eles, regulares.
Mesmo exagerando e somando os que se dizem filiados com aqueles que já foram um dia, no máximo 8% dos brasileiros aptos a votar admitem relação formal – atual ou passada – com algum partido. É um terço a mais do que dizem os dados oficiais. Pode não parecer muito proporcionalmente, mas são 5 milhões de almas – decerto, penadas. Os fantasmas equivalem ao dobro de filiados a partidos na Itália, país recordista europeu em número de partidários.
Estudos estrangeiros (1) mostram que há forte e significativa correlação entre as taxas nacionais de filiação partidária obtidas via pesquisas de opinião (como a do Ibope) com os dados de registros dos partidos. Quando há discrepância, é para mais. Ou seja, as pesquisas tendem a superestimar o número de filiados. Não no Brasil, onde ocorre o oposto. É indicativo de que o problema aqui é dos registros, não das pesquisas.
Para o TSE, a epidemia ectoplásmica não é sua responsabilidade. O tribunal não fiscaliza a sobrerrepresentação de filiados a partidos políticos, a não ser que seja provocado – pelo Ministério Público, por exemplo, se há suspeitas. A Lei dos Partidos Políticos determina que as agremiações repassem à Justiça eleitoral duas vezes por ano atualizações do número de filiados. Ao TSE cabe tornar públicos os números de filiados.
Criador da Transparência Brasil e da Dados.org, Claudio Weber Abramo discorda: “Nunca é demais lembrar que o TSE tem a responsabilidade de fiscalizar todas as obrigações dos partidos políticos. De modo que, se os partidos relacionam pessoas mortas – e sabe-se lá quem mais – entre seus filiados, o responsável final por esse estado de coisas é, obviamente, o TSE.”
Ex-ministro do tribunal, Henrique Neves não acredita haver motivo para preocupação “pois o número de filiados de um partido não tem efeito sobre seus direitos – em especial dinheiro público e acesso ao rádio e à TV”. Crê que um novo sistema de filiação do TSE tende a eliminar o problema, especialmente depois que for adotado o documento único de identificação.
Enquanto isso não ocorre, as estatísticas sobre partidos seguem tão superlativas quanto o desprezo dos eleitores por eles. Segundo o Datafolha, 69% não confiam nos partidos no Brasil. Pudera.
Aos 16,866 milhões de filiados regulares declarados pelos partidos somam-se 4,7 milhões de filiações canceladas e meio milhão de desfiliados, montando a 22 milhões de seres partidários no país [2]. Significa que a cada vinte amigos e familiares seus aptos a votar, caro leitor, ao menos três já assinaram ficha de filiação a um partido político. Parece crível? Não? Quem sabe se eles não ficaram com vergonha de contar para você?
Os números vão na contramão dos estudos internacionais [3]. Em vez de aumentar, a tendência é a taxa de filiação cair, não importa quão consolidada seja a democracia no país. Entre 1980 e 2008, a proporção de partidários caiu 68% no Reino Unido, 63% na Noruega, 47% na Suécia, 40% na Dinamarca e 27% na Alemanha [1].
Por que o Brasil seria exceção a essa regra contemporânea, se as últimas eleições municipais foram marcadas pelas vitórias de candidatos que se elegeram dizendo que não são políticos, como João Doria em São Paulo e Alexandre Kalil em Belo Horizonte?
A se acreditar nas estatísticas partidárias divulgadas pelo TSE, o MDB de Michel Temer e Geddel Vieira Lima tem 2,4 milhões de membros ativos. É mais gente do que o total de filiados a todos os partidos políticos na França e na Alemanha. Somados.
Talvez seja mais prudente olhar para a pesquisa do Ibope em busca de pistas sobre o perfil de quem, de fato, se filia a partidos no Brasil. Os filiados são muito mais homens do que mulheres (64%, contra 48% no total do eleitorado), são muito mais velhos (38% têm 55 anos ou mais, contra 23% no eleitorado), estão concentrados no interior (71%, contra 58% no total) e vivem em municípios com até 50 mil habitantes (38% a 28%).
O quadro que emerge desses dados mostra como e onde a política partidária é de fato feita no Brasil. O grosso não está nas metrópoles, mas nas pequenas cidades interioranas onde o postulante a um cargo eletivo filia toda a família e os amigos para aumentar sua influência no diretório municipal do partido e, assim, conseguir um lugar na chapa que disputará a eleição.
É por isso que o pico de filiações partidárias costuma ocorrer nos anos ímpares imediatamente anteriores ao das eleições municipais (até há pouco tempo, a lei determinava que o candidato deveria estar filiado há pelo menos um ano antes do pleito para seu nome aparecer na urna; agora são seis meses).
Quem se filia para ajudar o parente ou amigo tende a acabar esquecendo que assinou a ficha partidária – se é que sabia que o que assinou era a ficha de um partido. Assim, engordam as estatísticas de filiados sem saber ou se lembrar. Quando morrem, nenhum burocrata se dá ao trabalho de tirar seus nomes da lista de filiados. E assim acabam virando fantasmas estatísticos, a assombrar quem teima em estudar partidos no Brasil.
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[1] Going, going… gone? The decline of party membership in contemporary Europe – Ingrid Van Biezen, Peter Mair e Thomas Poguntke – European Journal of Political Research – 2011.
[2] As informações sobre filiados usadas nesta reportagem foram compiladas e organizadas pela ONG Dados.org, a partir de bases estatísticas descarregadas do repositório de dados do TSE.
[3] Still in decline? Party membership in Europe – Pascal Delwit.
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Errata: uma versão anterior da tabela publicada junto com o texto desta reportagem incluiu, indevidamente, o total de filiados do PTN. O PTN passou a se chamar Podemos e aparece na tabela com PODE.