Tenho a sensação de que vivo em dois mundos diametralmente opostos desde minha última coluna. Um deles anuncia o fim e o outro prevê um recomeço. De um lado, pessoas desesperadas em razão do que consideram o término de uma era democrática. Do outro, aquelas que almejam o desaparecimento definitivo de todos os males que o PT supostamente trouxe. A “bagunça” gerada pelos governos petistas seria a principal deflagradora do caos em que nos encontramos.
Embora me identifique com o primeiro grupo, estou muito imersa na realidade do segundo. Ao longo da semana passada, sobretudo no transporte público do Rio de Janeiro, ouvi conversas que expressavam o sentimento de que o povo foi enganado pelo papo de “um país para todos”. Ou que apontavam a deterioração de valores importantes, em especial os relacionados à família. Ou, ainda, que lamentavam o fim da inclusão social pelo emprego.
Reparei principalmente no que as mulheres diziam. Em geral, as que dividem o trem ou o metrô comigo ficam de pé e com os braços erguidos. Usam camisetas sem manga ou vestidinhos de alça (moramos, afinal, numa cidade muito quente) e se agarram à barra metálica sobre suas cabeças. Impossível não notar que praticamente todas têm as axilas depiladas e que umas apoiam os corpos nas outras para se manterem equilibradas quando o vagão está cheio. Isso só acontece entre mulheres.
No decorrer da semana, me surpreendeu o quanto as passageiras se inflamavam ao discutir política. Em boa parte dos diálogos que me chamaram a atenção, sobressaía a preocupação com os filhos. Não à toa, durante a campanha eleitoral, todos os presidenciáveis falaram de crianças, creches e empregos para os jovens. Dirigiam-se, claro, às “mães de família” pobres e sem pelos na axila.
O senso comum sabe exatamente como uma mulher deve se portar. As próprias mulheres sabem e acabam agindo conforme o “padrão”. Minha impressão é de que só pensamos mais detidamente no comportamento feminino “padrão” quando vemos outras mulheres expondo o corpo no espaço público de formas pouco convencionais. Por exemplo: quando nos deparamos com as “rebeldes” que teimam em deixar à mostra os pelos das axilas. Trata-se de um hábito incomum entre as mulheres pobres. Muitas acreditam que não é higiênico exibir as axilas peludas, especialmente fora de casa. Depilar-se significa enfrentar um estereótipo renitente: o de que seus corpos são naturalmente sujos e desleixados. E no caso das negras ainda mais.
Tais mulheres votarão hoje com base em suas preocupações. Elas apertarão “confirma” para os candidatos que defendem ideias e propostas que não as desqualifiquem, que não desautorizem tudo o que aprenderam que deve ser o feminino. Apesar dos pesares, elas creem num recomeço, numa vida com menos medo e mais confiança.
Já entre diversos segmentos da classe média “esclarecida”, geralmente mais próximos da esquerda, a preocupação é outra. Teme-se a suspensão da liberdade caso Jair Bolsonaro vença as eleições. Ou melhor: teme-se que a suspensão das liberdades tão frequente no cotidiano dos pobres atinja também os “menos pobres”. Há o prenúncio de um apocalipse, de um tempo muitíssimo sombrio, em que a ordem democrática ficará à beira do abismo. Como já escrevi, compartilho desse medo, mas o sinto a partir do lugar de quem circula tanto por territórios em que o Estado se faz presente de maneira violenta quanto por aqueles onde a preservação da vida é levada muito mais a sério pelos governantes.
Estou certa de que inúmeros conservadores aguardam ansiosos a implosão das conquistas que pobres e mulheres custaram a alcançar. Não lhes parece aceitável que mulheres apresentem em público outros desejos além dos convencionais. Profundamente machista e violento, esse conservadorismo se entranhou de tal modo no país que seguirá forte seja qual for o resultado das eleições. Mulheres continuarão atingidas não apenas pela força física masculina como pelos mecanismos que as impedem de falar e de exercitar novas possibilidades do feminino. Um quadro que se mostrará bem pior, óbvio, se Bolsonaro vencer.
Nesse contexto, a perspectiva possível para as diferentes mulheres será fortalecer ainda mais o que já fazemos: permanecer perto daquelas em quem confiamos, escorando-nos umas às outras. Só assim seremos capazes de nos manter vivas e sãs no trem do ódio instalado.
Como mulher de periferia, sigo acatando os ensinamentos de minha mãe: escuto a intuição e tenho fé na diversidade dos femininos deste Brasil. Hoje estou especialmente devota às nordestinas. Elas me levam a acreditar na possibilidade de elegermos um governo que não naturalize tanto a violência contra todas nós. Gosto de pensar que incontáveis brasileiras estão dispostas a desobedecer ao soberano masculino. Afinal de contas, como também aprendi com minha mãe, o mundo só é mundo porque uma mulher ousou desafiar os limites do Éden.