Na cidade em que ela nasceu, Teresina, os sonhos de uma menina para ser jogadora de futebol são limitados. Na capital, só existem dois campeonatos que aceitam mulheres – um oferecido pela prefeitura e outro pelo estado. A maior premiação equivale a 5 mil reais, que precisam ser divididos entre 22 jogadoras. Diante das oportunidades quase inexistentes, Kedma Laryssa Santos Araújo, uma menina da periferia da capital piauiense, tentou realizar na Europa o sonho de jogar futebol. Quando recebeu a proposta para jogar em um time recém-criado em Kryvyi Rih, na Ucrânia, não pensou duas vezes. Embarcou rumo à oportunidade, que até ali, seria a melhor da sua vida. Antes de assinar o contrato, ela lembra de ter lido que o documento poderia ser rescindido por ambas as partes, mas que outras situações poderiam romper aquele sonho, como uma guerra. Com pouco menos de um ano no clube, na manhã do dia 2 de março, Kedma acordou sob alarmes e sirenes: um míssil atingiu uma base militar a poucos metros do hotel em que seu time estava hospedado. Dali em diante, a jovem viveu cinco dias de aflição para voltar para casa e fugir da guerra no país.
Em depoimento a Vitória Pilar
Tudo começou nos campeonatos escolares. Eu saí de uma escola particular para iniciar o ensino médio em uma escola pública. Minha mãe queria que eu fizesse o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), e eu fiz, só que mais por ela do que por mim. A verdade é que eu sempre soube que gostava mais de jogar bola do que seguir uma carreira formal. Em 2015, eu disputei pela primeira vez um campeonato pelo estado. Minha escola ganhou e fomos para o regional. Desembarquei em Fortaleza com meu time, representando o Piauí – mas a gente acabou perdendo. Não foi de todo ruim, uma pessoa me viu, e acabou querendo que eu jogasse no time dele. O time era daqui de Teresina e servia para competir nos dois únicos jogos voltados para mulheres na cidade, a Copa Batom, organizada pela prefeitura, e o Campeonato Feminino Estadual. Nessa época, a premiação era de 5 mil reais para 22 jogadoras. Ou seja, eram menos de 500 reais por ano para se preparar para uma competição. Isso foi um dos motivos que me fizeram querer sair daqui: investimento. Aqui, ele não existe.
Quando as pessoas pensam em futebol, elas não pensam que mulheres jogam. Se uma menina tem o sonho de jogar bola e vai pedir apoio, ela não ganha nem uma chuteira. O máximo que pode conseguir é um uniforme. Acabei migrando para um time em Manaus, mas começou a pandemia, o time faliu, fechou tudo, e eu voltei pra Teresina. Em setembro, fui jogar num time cearense, o Fortaleza. Uma amiga que jogava na Ucrânia me ligou porque o time precisava de atleta. Era isso. Por que não? Eu fui.
Quando cheguei à Ucrânia, o time feminino era novo: o Kryvbas, na cidade de Kryvyi Rih, a seis horas de distância de Kiev. Por lá, não havia meninas na cidade que quisessem jogar e tiveram que trazer gente de fora. Comigo vieram mais duas brasileiras, uma de São Paulo e outra do Espírito Santo. Desembarquei em agosto de 2021. Era o início de um sonho: jogar profissionalmente na Europa. Na minha cabeça era algo tão distante. Eu falava, mas no fundo, nem eu acreditava que isso iria acontecer – pelo menos não tão cedo. Eu tinha 19 anos.
Kryvyi tem cerca de 630 mil habitantes. Quando eu cheguei, tinha um ônibus todo personalizado esperando por nós, academias, hotéis, marketing. Tudo que vi por lá, eu nem sonho em ver por aqui. Sem falar na bolsa que eu recebia para poder jogar. Eu ainda era iniciante com um incentivo que, aqui no Brasil, para mulheres no futebol, é impossível receber – quase cinco vezes mais.
A cidade é na Ucrânia, mas respirava a cultura russa. Eu falava mais russo que ucraniano. Os rumores da guerra sempre existiram, mas ninguém acreditava que tudo isso aconteceria. Quando eu perguntava, diziam que há oito anos o conflito já existia – mas tudo burocrático, diplomático e frio. No final de janeiro, todo mundo estava avisado de que aconteceria uma invasão. Meus familiares, do Brasil, me alertavam, porque estavam vendo o movimento pela televisão e na internet.
Nas primeiras horas da manhã do dia 2 de março, veio o primeiro bombardeio – com ele, sirenes de alerta. O hotel em que eu estava tremeu de cima a baixo. Quando olhei pela janela, tinha gente andando com cachorro na rua, fumando tranquilamente. Em nenhum momento os ucranianos ficaram nervosos, mas todos os estrangeiros se sentiam num cenário de filme – de terror. Para ter noção, tinha uma base militar da Ucrânia na esquina do quarteirão do hotel. Foi por um triz. Saímos correndo, pegando apenas nossos documentos, e fomos para outro hotel na cidade. Foi o primeiro e único ataque que presenciei em Kryvyi, mas enquanto isso, a Ucrânia incendiava.
A todo momento eu pensava na minha mãe e no meu pai. Ela é operada do coração. Lembro de pensar: “Ela não pode saber que a única filha dela está no meio de uma guerra.” Foi o pior dia da minha vida.
A angústia de conseguir sair da Ucrânia era urgente. Se a gente não saísse dali naquele dia, não teria mais como ir embora. A única saída era de trem. No dia seguinte, 3 de março, eu, duas brasileiras e três outras estrangeiras embarcamos para Lviv, uma cidade ucraniana que não era alvo de ataques, já próxima da fronteira com a Polônia. Foram quase vinte horas de trem. Uma das nossas amigas do time, uma moça camaronesa, quase não conseguiu embarcar porque era negra. Por várias vezes, um homem que controlava a entrada tentou empurrá-la e impedir que ela entrasse. O racismo e machismo imperavam por lá. Estávamos em um vagão menor que uma van, dividido entre dezessete pessoas. Tínhamos medo de sofrer assédio ou coisa pior.
Quando chegamos em Lviv, uma frente de voluntários conseguiu levar a gente de carro à Polônia. A viagem até lá dura cerca de seis horas, mas tinha uma fila tão grande de carros que a estimativa seria um dia e meio. Conseguimos escolta policial e chegamos em menos de dez horas. De lá, demoramos cerca de dois dias para ir a Varsóvia, em busca do aeroporto internacional mais próximo. Cheguei em Teresina no dia 13 de março. Foram cinco dias de sufoco e aflição. No aeroporto Senador Petrônio Portella, minha mãe, amigos e familiares me receberam com flores, faixas e cartazes. Foi um alívio.
O Clube Kryvbas deu uma oportunidade de levar as jogadoras que não desistiram para treinar na Alemanha, mas teria que voltar à Ucrânia um dia, quando tudo melhorasse. Eu não quero nunca mais voltar à Ucrânia. Quando saí daqui, do Piauí, no contrato dizia que eu ou o clube poderíamos romper o contrato a qualquer momento. Nas linhas do documento também apontava rompimento em causas de guerra, tsunami ou desastres. Ninguém pensa que uma guerra vai acontecer quando a melhor oportunidade da sua vida aparecer. Eu não pensei e agora não quero ter esse medo mais uma vez. Prefiro ficar por aqui e não ter a sensação de que a qualquer momento um míssil pode cair do meu lado.
Eu não pretendo descansar as chuteiras. Não fiz faculdade, não estou trabalhando em outra coisa. Meu plano é recomeçar no futebol por aqui, no Brasil. Nas redes sociais, no meu Instagram, tudo mudou. Eu fiz uma live para contar tudo que aconteceu e, antes dela, eu tinha pouco mais de 2 mil seguidores, mas logo depois, foi chegando gente que nunca achei que pudesse me conhecer. Dobrei o número de seguidores, agora, tenho pouco mais de 5 mil. Não sei nem o que fazer com esse tanto de gente me seguindo. Até hoje tem mensagem para responder, a maioria boa, mas também ruins. Tem gente que acha que estou querendo me promover. Como alguém se promove em meio a uma guerra? O meu caso trouxe uma repercussão, e graças a Deus, já tenho propostas e convites. Tudo isso vai ser analisado com calma, com ajuda da minha empresária. Só quero poder seguir minha vida e esquecer as coisas que aconteceram por lá.