O jornalismo científico precisa de menos ciência e mais jornalismo? Essa foi a provocação que motivou talvez a mais interessante sessão de uma conferência que reuniu centenas de repórteres e editores especializados de todo o mundo na semana passada em Seul. A proposta era retomar um debate que reverbera há tempos entre praticantes e estudiosos do gênero: a tese de que os jornalistas devem agir menos como porta-vozes que relatam as novidades da ciência sem maiores questionamentos, e mais como fiscais que noticiam as atividades científicas sob luz crítica e espírito investigativo.
A plateia foi orientada a se posicionar em função de suas convicções – aqueles que concordavam e discordavam dessa tese sentaram-se frente à frente, à imagem da disposição dos assentos no parlamento britânico, o que deu dinamismo ao debate. Quem mudasse de opinião durante a discussão podia se levantar e bandear para o campo oposto; outras questões foram colocadas em pauta durante a sessão para o julgamento da audiência.
Antes que a palavra fosse aberta ao público, representantes dos dois pontos de vista fizeram uma breve exposição de seus argumentos. A defesa de que é preciso mais jornalismo e menos ciência coube ao britânico Andrew Jack, jornalista do Financial Times. Jack criticou os veículos que pautam sua cobertura predominantemente pela publicação de artigos científicos nos periódicos com revisão por pares.
“Precisamos tirar mais os cientistas da sua zona de conforto e aproveitar sua expertise fora do ciclo de publicação acadêmica”, afirmou. Para o britânico, os jornalistas têm a obrigação de questionar os fundamentos dos estudos científicos, apontar casos de fraude e manipulação de dados e discutir a forma como os recursos estão sendo empregados. “O jornalismo de ciência deveria sempre questionar aspectos como a responsabilidade dos cientistas, dinheiro, poder, as forças maiores que movem a sociedade”, concluiu.
Para defender a visão oposta, a escalada foi a repórter francesa Émilie Martin, da revista Ciel et Espace. Martin defendeu que o jornalismo de ciência difere dos demais gêneros noticiosos pela dificuldade técnica intrínseca aos temas tratados. Em sua avaliação, para os profissionais que não dominam a linguagem matemática é praticamente impossível compreender a produção científica.
“Creio que desempenhamos um duplo papel”, defendeu a francesa. “Por um lado, temos que relatar os fatos de forma honesta, mas temos ainda que agir como intermediários entre o público e os cientistas. Em outras palavras, somos também educadores”, afirmou. Mas isso não deprecia o papel dos jornalistas, frisou Martin – “apenas torna nosso trabalho mais difícil”.
Jornalismo vs. divulgação
O debate promovido em Seul retomou uma velha discussão entre jornalistas e estudiosos da área, já tratado numa série de ensaios acadêmicos, reportagens e posts de blog. Para ficar com um só exemplo, vale citar um editorial muito comentado da revista Nature que tratava da polarização entre os jornalistas que promovem a ciência de forma acrítica – os cheerleaders – e aqueles que fiscalizam a prática científica em nome do interesse público – os watchdogs.
Outra forma de colocar essa polarização é entendê-la como uma tensão entre jornalismo científico e divulgação cientifica. Há certa superposição entre os dois domínios, mas cada um tem suas especificidades. O jornalismo, em sua função de informar o leitor das novidades surgidas no mundo da ciência, muitas vezes ajuda a popularizar o conhecimento científico, missão da divulgação. Mas é importante não perder de vista que os profissionais dos dois campos atendem a interesses distintos – se os divulgadores têm como função aproximar a ciência da sociedade, aos jornalistas cabe defender os leitores e cidadãos.
No animado debate em Seul, o blog sentou-se do lado daqueles que defendiam mais jornalismo e menos ciência – campo majoritário naquele dia –, por entender que a função do jornalista não pode se resumir à de tradutor de um conhecimento técnico para o público leigo, e nem é seu papel suprir deficiências na formação científica dos cidadãos. Cabe-lhe, sim, oferecer aos leitores as armas para que possam se posicionar em relação a um número cada vez maior de questões de interesse público atravessadas pelo conhecimento científico.
O debate teve argumentos inflamados de parte a parte, embora ninguém tenha mudado de campo em relação a essa questão. A mencionar apenas uma intervenção, destaco a fala do sociólogo da ciência Nicolas Baya-Lafitte, pós-doutorando na Universidade de Paris-Est (que falou noutra mesa-redonda da conferência). Lafitte defendeu que os jornalistas precisam mostrar mais a inserção da ciência na sociedade, dando visibilidade à prática cotidiana dos cientistas. “Não precisamos do hype sobre descobertas recentes, novas tecnologias ou as promessas da nanotecnologia. Falta mostrar como os pesquisadores trabalham no dia a dia”, argumentou.
O sociólogo citou o caso paradoxal do aquecimento global, em que um forte grau de consenso entre os estudiosos do tema não se alastrou pela sociedade, onde há setores resistentes à ideia da influência humana sobre o clima. Para ele, os jornalistas não vão mudar esse quadro se derem ao leitor mais fatos científicos. “É preciso um entendimento mais concreto de como os cientistas constroem seus fatos e alegações e como os oponentes têm suas redes de poder”, disse Baya-Lafitte. “Só avançaremos no entendimento público da mudança do clima se tornarmos explícitos os recursos por trás de cada argumento.”
O blog viajou à Coreia do Sul com bolsa da Federação Mundial dos Jornalistas de Ciência.
Atualização (16/06/15, 12:50): o oitavo parágrafo foi reformulado de forma a apresentar de forma menos esquemática a função da divulgação científica.