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Envelhecimento precoce, gigantismo e inoperância

Tentehar – Arquitetura do Sensível, #eagoraoque e Cinemateca Brasileira

Eduardo Escorel | 04 nov 2020_08h11
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Filmes brasileiros concebidos AP (antes da pandemia), ao serem lançados em salas de cinema em plena EP (era da pandemia), estão sujeitos a manifestar envelhecimento precoce. Os que estrearam na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo que termina hoje (4/11) correram o risco adicional de serem vítimas do gigantismo do Festival e passarem despercebidos em meio aos 198 títulos, de 71 países, oferecidos durante 14 dias. As estreias dos nossos filmes no circuito comercial recém-reaberto, nas condições atuais do mercado, constituem atos de desespero cometidos para atender exigências contratuais da Agência Nacional do Cinema (Ancine). No lugar de lançamentos propriamente ditos, são mais despejos com ingredientes semelhantes à crônica de um fracasso de bilheteria anunciado.

Haveria possibilidade de os sete filmes brasileiros que estrearam na semana passada, no Rio de Janeiro, concorrendo com o lançamento simultâneo de Tenet (2020), de Christopher Nolan, atraírem público em quantidade significativa? É pouco provável. Mesmo assim, novos despejos estão previstos para as próximas semanas. Orçado em 205 milhões de dólares, Tenet alcançou renda de mais de 347,1 milhões de dólares no mercado mundial, resultado aquém do necessário para dar lucro e ser considerado sucesso comercial. Lançado no Brasil em 965 salas, a produção da Warner Bros. Pictures e da Syncopy Inc. ocupa cerca de 64% das salas em funcionamento no país, restando às produções brasileiras fazerem o melancólico papel de intrusas em seu próprio mercado.

As graves consequências da pandemia criaram novas exigências a serem atendidas por filmes em geral, inclusive os voltados para o entretenimento de massa, mas em especial por aqueles cujo propósito é dialogar com questões contemporâneas, ressoando no público espectador através das interconexões entre quem está tendo a experiência comum de conviver com a tragédia causada pela Covid-19. Foram ultrapassados 1,2 milhão de óbitos no mundo. No Brasil, superamos 160 mil mortos, tivemos mais de 5,5 milhões de diagnósticos positivos e aumento acima de 15% de vítimas fatais em três estados do país nos últimos quinze dias. A média móvel nacional de mortes está abaixo de 500, e há situações preocupantes como, por exemplo, a do Rio de Janeiro, onde a média móvel de casos de Covid-19 por dia mais que dobrou em duas semanas, mantendo-se estável o número de mortes no estado.

Como se esse conjunto de agravantes mencionados não bastasse, há ainda a paralisia da produção de filmes financiados através do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), mecanismo gerido pela Ancine que foi a principal fonte de recursos da atividade entre 2012 e 2018. O hiato atual na realização de filmes irá se prolongar por alguns anos. Não se pode esperar nada além da inexistência de novos filmes brasileiros por um bom tempo, a partir de 2022, resultante da indiferença e inoperância, somadas ao antagonismo do governo federal em relação aos produtores e realizadores atuantes no setor cinematográfico.

Exemplar da irresponsabilidade e ineficiência da Secretaria Especial da Cultura é a situação em que permanece a Cinemateca Brasileira. Há uma semana, na comemoração do Dia Mundial do Patrimônio Audiovisual (27/10), um ato em defesa da instituição, de seus funcionários e do acervo audiovisual ali preservado reuniu duzentas pessoas diante da sede na Vila Clementino, em São Paulo. Na abertura da manifestação, Roberto Gervitz leu, em nome do Fórum Paulo Emílio Sales Gomes, texto que denuncia a letargia da Secretaria Especial da Cultura após ter retomado através da Secretaria do Audiovisual, em 7 de agosto, o controle da Cinemateca:

“Trezentos dias de abandono pelo Governo Brasileiro! Trezentos dias de descaso! Trezentos dias de negligência! Trezentos dias de irresponsabilidade com o maior acervo cinematográfico da América Latina! Trezentos dias de cloroquina! Trezentos dias de economia; será isso? Trezentos dias, quem sabe, torcendo para que a Cinemateca seja consumida pelo fogo? Trezentos dias é muito tempo!!…”

Para concluir, o texto adverte:

“A sociedade brasileira e a comunidade cinematográfica mundial estão com os olhos voltados para a Cinemateca… Pedimos a REABERTURA IMEDIATA DA CINEMATECA BRASILEIRA, em condições de executar plenamente suas funções!” (o texto completo está disponível em https://drive.google.com/file/d/196NMdJ0cqjr-_6qqO4iYJJSNx0HyTPxK/view?usp=sharing )

Durante a manifestação, foram projetados depoimentos de 30 cinematecas de todo o mundo, uma mensagem da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), que congrega 171 cinematecas, e ainda outra mensagem do Conselho Coordenador das Associações de Arquivos Audiovisuais.

Manifestação em frente à Cinemateca – Foto: Helena Tassara

 

Entre os poucos filmes da Mostra Brasil a que pude assistir na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, dois em especial não tiveram envelhecimento precoce, mas receberam pouca atenção: Tentehar – Arquitetura do Sensível (2020), de Paloma Rocha e Luís Abramo, e #eagoraoque (2020), de Rubens Rewald e Jean-Claude Bernardet.

As diferenças marcantes entre um e outro, a começar pelo fato de o primeiro se apresentar como documentário e o segundo como sendo ficção, não impedem que ambos tenham premissa comum – interrogar a barreira que separa intelectuais e documentaristas de setores da sociedade com os quais julgam ter afinidades e se propõem dialogar.

Tentehar e #eagoraoque diferem também por seus procedimentos narrativos opostos – em um caso, procura-se ter visão totalizante do país; no outro, o foco é circunscrito aos embates do personagem principal, um intelectual em confronto com seu mordaz alter ego, e diversas outras pessoas, participantes de rodas de debate em universidades e em associações de periferia.

Tentehar é um painel amplo e diversificado resultante de uma viagem aos quatro cantos do Brasil, na tentativa de estabelecer um elo entre, de um lado, a dupla de documentaristas, e do outro, pessoas e situações com as quais entram em contato pelo caminho.

Paloma Rocha sendo pintada – Foto: Divulgação

 

#eagoraoque, por sua vez, reúne flagrantes de um impasse: o abismo que separa o raciocínio sofisticado do intelectual e a fala do jovem da periferia – espontânea, desarticulada, em que a expressão “tá ligado?” sucede cada frase, mas consciente, ao mesmo tempo, do que considera serem os interesses e a posição marginal que aquele jovem ocupa na estrutura social.

Louve-se a santa paciência de Vladimir Safatle, submetido a duras provações no papel do filósofo protagonista. Quanto a Jean-Claude Bernardet que, além de codiretor e corroteirista, é ator no papel de consciência crítica do filósofo, ele declara em mensagem gravada como apresentação do filme que “o Safatle é uma alegoria, alegoria de um intelectual de esquerda, meio encurralado, e eu me reconheço nessa alegoria. Eu também sou essa alegoria”. Nesse contexto, o que parece fora de lugar é a complacência de Rewald e Bernardet com a agressão de um ator da reencenação de Roda Viva que repete a mesma palavra aos berros, durante dois minutos, com o rosto quase colado no do filósofo. Se a intenção dos codiretores era punir o intelectual, creio que conseguiram. Safatle terá sido surpreendido ou concordou previamente em ser submetido a esse suplício?

Vladimir Safatle, o filósofo martirizado – Foto: Divulgação

 

O que Tentehar – Arquitetura do Sensível e #eagoraoque sugerem é que o resultado da eleição de outubro de 2018 que condenou o país a suportar o atual governo federal foi devido, em certa medida, à incapacidade de estabelecer elos políticos entre integrantes do diversificado espectro da sociedade brasileira retratado nos dois filmes.

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Verlust, de Esmir Filho, estreia amanhã (5/11) no Rio de Janeiro e em São Paulo. A partir de 19 de novembro o filme estará disponível nas plataformas digitais Now, Vivo Play e Oi Play.

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Na próxima terça-feira, 10 de novembro, às 11 horas, Piero Sbragia, Juca Badaró e este colunista conversam ao vivo, no canal 3 em Cena, com Ana Paula Sousa e Roberto Gervitz, sobre a Cinemateca Brasileira que permanece em situação de risco, sujeita a ser transformada em instrumento ideológico do governo federal. O acesso à conversa de terça-feira, dia 10 de novembro, às 11 horas, poderá ser feito através do link https://youtu.be/z8Y2-tD9FrA .

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A Febre, de Maya Da-Rin, estreia em 12 de novembro, após uma carreira triunfal, no ano passado, em festivais mundo afora, tendo recebido diversos prêmios de melhor filme e melhor direção, além de outros. O filme estará disponível ao mesmo tempo no streaming (Net Now, Vivo Play e Oi Play). Estão programadas atividades voltadas para o público indígena, coordenadas pela curadora Naine Terena. Exibições remotas serão feitas em algumas aldeias. Haverá também um ciclo de conversas com pensadores indígenas e não indígenas debatendo o filme e assuntos correlatos.

 

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