A dona de casa Mara Rúbia Batista de Souza, de 27 anos, começou a sentir um mal-estar no corpo no início da tarde do último dia 2 de maio, um sábado. Chegou a pensar que fosse “uma gripe à toa”, mas, com o avançar da noite, uma febre de quase 40 graus a derrubou. Moradora de Barbosa Ferraz – uma cidadezinha de menos de 13 mil habitantes, localizada no Noroeste do Paraná –, Maria Rúbia temia pelo pior. E o pior não era o novo coronavírus, que tomava o noticiário da tevê, mas uma doença muito mais presente na região: a dengue, que já tinha matado sete pessoas na cidade dela e contaminado amigos e vizinhos. Hoje, além de se preocupar com a doença transmitida pelo Aedes aegypti, os moradores de Barbosa Ferraz se assustam com o avanço da Covid-19. Em boa parte do interior do Paraná, os municípios enfrentam a coexistência das duas doenças – o que pode mascarar o diagnóstico de ambas.
No Paraná foram registrados 7.031 casos de Covid-19 e 243 mortes, conforme o boletim epidemiológico de 8 de maio. A dimensão da doença no estado, no entanto, pode ser bem maior. Conforme o mesmo boletim, o Paraná registrou este ano, até o dia 3 de junho, 5.699 casos e 1.320 mortes de pessoas com sintomas de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Destes, 1.076 casos e 193 óbitos ocorreram em decorrência do novo coronavírus. Outros 3.819 casos e 1.061 mortes constam como “não especificados” (em que houve resultados negativos pelos agentes testados ou não houve coleta de material biológico para envio ao laboratório). Há, ainda, 309 casos e 9 óbitos em investigação. Juntos, os casos não especificados e em investigação representam 72,8% do total de registros de SRAG no Paraná. No caso das mortes, a proporção é ainda maior: 81,1%. Em relação ao mesmo período do ano passado, os casos de SRAG triplicaram, e as mortes se multiplicaram por seis.
“Desde março deste ano, o Paraná enfrenta uma epidemia histórica de SRAG, e a síndrome indica uma subnotificação muito grave de casos de Covid-19. Não que essa subnotificação ocorra de forma proposital pelas secretarias de Saúde, mas por falta de estrutura e de capacidade de diagnóstico”, afirmou o médico infectologista e epidemiologista Moacir Pires Ramos. “Em uma perspectiva mais conservadora, eu te diria que tem pelo menos 240 óbitos por SRAG que são decorrentes de Covid-19 e não foram notificados como tal”, acrescentou.
Para infectologistas, a disparada da SRAG pode indicar subnotificação da Covid-19, e a superposição com a dengue preocupa. “Apesar de o Paraná ter uma estrutura boa, o estado já lutava com dificuldade contra a dengue. Ter os dois, dengue e Covid-19, juntos, é brigar contra dois inimigos potentes ao mesmo tempo. É sobrecarregar ainda mais os serviços de saúde”, observou o médico Jaime Rocha, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia e professor da PUC-PR.
A dengue é endêmica no Brasil, ou seja, já está instalada no país. Este ano, passa por um período epidêmico, com mais de 802 mil casos notificados e 357 mortes confirmadas e 258 em investigação – até 30 de maio, conforme o mais recente boletim epidemiológico do Ministério da Saúde. Em alguns estados, a gravidade do quadro vai além. É o caso do Paraná, que, segundo a Secretaria de Estado da Saúde, bateu seu recorde de casos e de mortos desde 1991, quando começou o levantamento da série. Este ano, são mais de 332,2 mil casos notificados em 374 municípios e 139 mortes. Para efeitos de comparação, até 1º de junho de 2019, havia 67 mil casos notificados e 17 mortes. Apesar de o pico deste ano ter se concentrado no auge do verão, ao longo dos últimos trinta dias, o número de mortes no estado avançou 25,2%, e o de casos notificados, 19,5%.
Para os especialistas, a coexistência das doenças dificulta o diagnóstico preciso, falseando estatísticas e, por conseguinte, afetando negativamente o tratamento e a estruturação de políticas públicas. Em estágios iniciais, a Covid-19 tem um grande percentual de pacientes assintomáticos ou com sintomas leves, que podem ser confundidos com os da dengue. Mesmo em pessoas em que o novo coronavírus evoluiu para formas graves, nas primeiras 24 horas de manifestação da doença, os sintomas são mais brandos. “Nas formas leves da Covid-19, ou quando não houver sintomas respiratórios, vai ficar bem difícil de fechar o diagnóstico, porque pode tanto ser dengue quanto Covid-19”, disse Rocha. “O paciente vai ter febre, dor de cabeça, dor no corpo, mal-estar. Então, alguns casos ficam bastante confusos”, acrescentou Pires Ramos.
A dificuldade em fechar um diagnóstico vai para além da análise clínica. Artigo publicado em 4 de maio na revista científica The Lancet descreveu o caso de dois pacientes de Singapura diagnosticados com dengue, após terem sido submetidos a testes sorológicos rápidos. Posteriormente, no entanto, ambos foram confirmados como portadores de SRAG decorrente da Covid. Os pacientes não tinham histórico de viagens e apresentaram sintomas como febre, tosse e diarreia. As radiografias de tórax não mostraram alterações – quadros que poderiam corresponder tanto a um caso de Covid-19 quanto de dengue. Responsável pelo artigo, a equipe liderada pelo médico Gabriel Yan chamou a atenção para que os médicos não desconsiderem a Covid-19 mesmo que um teste rápido de dengue tenha dado resultado positivo.
“Mesmo em casos em que foram feitos testes, os resultados apresentaram falsos positivos. Então temos um problema grave de diagnóstico, que pode mascarar o problema”, disse Pires Ramos. “No interior do Paraná, isso é um complicador. Nós tínhamos o sistema sobrecarregado pela dengue e, quando começaram a aparecer os primeiros casos do novo coronavírus, veio também a dificuldade de diagnosticar clinicamente o que é o quê”, completou.
A Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) não associa a escalada dos registros de SRAG ao novo coronavírus. “A partir da confirmação da presença do Sars-Cov-2 [vírus que causa a Covid-19] no Paraná, todos os casos de SRAG foram testados por TR-PCR para Covid-19. Desta forma, não podemos falar de subnotificação, já que pacientes com SRAG são casos graves, hospitalizados e monitorados pela Central de Regulação de Leitos da Sesa”, disse a Secretaria, por e-mail.
Ainda que a curva da Covid-19 esteja ascendente, o Paraná afrouxou as regras de isolamento social. Entre o fim de maio e o início de junho, permitiu a reabertura de bares, shoppings centers e academias. Em maio, o governador Ratinho Junior (PSD) sancionou uma lei que tornou igrejas e templos religiosos como espaços de “atividade essencial”, permitindo a reabertura desses locais. Segundo levantamento da InLoco, aferido por georreferenciamento, o índice de isolamento social no Paraná era de 36% na última segunda-feira (8 de junho) – mais de dois pontos percentuais abaixo da média nacional. Na mesma segunda-feira, o Ministério Público do Paraná (MP-PR), por meio da Procuradoria-Geral de Justiça, encaminhou um ofício do governo do Paraná propondo a revisão das decisões que levaram à flexibilização do isolamento social. As ações de relaxamento também destoam do entendimento da Secretaria de Saúde, que, por e-mail, registra que “entende que a melhor forma para diminuir a transmissão viral é o distanciamento social”.
A Sesa reconhece que a coexistência da dengue e do novo coronavírus “exige uma forte articulação das equipes da atenção e da vigilância das regionais de saúde e dos municípios”. Minimiza a dificuldade de diagnóstico, argumentando que o Laboratório Central do Estado (Lacen) – que centraliza as análises laboratoriais de ambas as doenças – “tem capacidade para processar exames de casos suspeitos de dengue como de Covid-19”. Segundo o informe epidemiológico mais recente, foram feitos 44,4 mil testes no Estado. Para os infectologistas, no entanto, o índice de testagem é insuficiente e longe do ideal.
“No Paraná, nós tivemos uma média de seis testes realizados para cada caso diagnosticado de Covid-19. Em países que tiveram bons resultados no controle da doença, como Coreia do Sul e Singapura, a proporção chegou a mais de duzentos testes para cada confirmação”, apontou Pires Ramos.
Além disso, o intervalo de espera até a conclusão dos exames laboratoriais, no entanto, pode ser decisivo para pacientes com dengue. Em Londrina – município com o maior número de óbitos (catorze) causados pela dengue, 45 mil casos notificados e mais de 16 mil confirmados – a possível imprecisão de diagnósticos é levada em consideração pelas autoridades de saúde pública. Segundo a diretora municipal de Vigilância em Saúde, Sônia Fernandes, os casos suspeitos de Covid-19 também são acompanhados como se se tratassem de dengue, como doenças associadas, até que testes de laboratório possam fazer a confirmação ou até que sinais clínicos ajudem os profissionais a fecharem o diagnóstico com segurança. “Para o teste RT-PCR [que identifica a presença do vírus da Covid-19 por meio de secreções da mucosa da nasofaringe], é preciso que o paciente tenha manifestado sintomas há quatro dias, senão dá um falso negativo. Se a pessoa estiver com dengue, não pode esperar esses quatro dias para iniciar o tratamento. Tem que começar esse acompanhamento de cara”, exemplificou. “A nossa orientação é conduzir o tratamento como se fossem doenças associadas. A Covid-19 não tem medicação, mas a dengue, se não tiver um acompanhamento imediato, o paciente pode evoluir muito mal”, disse.
Para os infectologistas, dois fatores potencializam essa dificuldade de diagnóstico em caso de coexistência de dengue e do novo coronavírus em uma mesma localidade. Um desses aspectos diz respeito à subnotificação. Divulgado em 25 de maio, um estudo coordenado pela Universidade Federal de Pelotas e que realizou testes de Covid-19 em 133 cidades brasileiras concluiu que o número de pessoas contaminadas pelo novo coronavírus é pelo menos sete vezes maior que o oficial. Isso porque, em cada sete infectados, seis apresentam sintomas mais leves. “E que podem ser confundidos com dengue”, ressaltou Pires Ramos. O outro fator é falta de testes disponíveis para o novo coronavírus. Em Londrina, apesar da preocupação em relação à sobreposição entre dengue e Covid-19, a disseminação dos testes está longe de se tornar realidade. Pelo boletim estadual, a cidade já teve 612 casos confirmados de Covid-19 e 33 óbitos, mas não dispõe de exames laboratoriais suficientes para todos os casos suspeitos – em uma realidade semelhante à que ocorre no restante do país.
“Não tem esse teste para todo mundo. Começamos a comprar exames PCR para pacientes sintomáticos. No momento, estamos priorizando para testagens os pacientes que estão em grupos de risco. Infelizmente, não são todos que conseguimos testar”, disse Sônia.
Além do ponto cego no que diz respeito ao diagnóstico, os municípios que enfrentam a dengue e a Covid-19 se veem obrigados a dividir sua estrutura de atendimento para manter essas duas frentes cobertas. Apesar de o grau de letalidade das doenças ser diferente, o tratamento de ambas é essencialmente ambulatorial. Ou seja, pode haver um maior estresse do sistema de saúde. “A grande maioria dos casos de dengue clássica não evolui para a internação. Ainda assim, há uma sobrecarga nos prontos-socorros, nos hospitais, nos exames. Nas formas mais graves, ambas precisam de internação, de UTI e, mesmo com os melhores tratamentos, podem levar a óbito”, apontou Pires Ramos. “Por isso, ter as duas doenças coexistindo é um complicador, que obriga os municípios a manterem serviços exclusivos”, disse.
Se no início do ano Londrina voltava seu sistema de saúde principalmente para a dengue, agora precisou redesenhar sua estratégia. No auge da epidemia, a prefeitura contratou temporariamente setenta agentes de saúde, totalizando um contingente de 350. Se antes eles trabalhavam prioritariamente no combate ao mosquito Aedes aegypti, agora também orientam a população quanto aos cuidados relacionados ao novo coronavírus. A cidade manteve os mutirões de limpeza de quintais e espaços públicos, mas também aposta na divulgação de vídeos educativos sobre a Covid-19. A Secretaria de Saúde teve que manter unidades exclusivas para receber pacientes das duas doenças: uma Unidade Básica de Saúde e o Centro Especializado de Atendimento para Dengue, para os pacientes diagnosticados com dengue; e uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e duas UBSs, para pessoas com sintomas de Covid-19. “A gente tem que manter um pé em cada barco: um na Covid-19; outro na dengue”, explicou Sônia. Quando o coronavírus começou a chegar, a curva de dengue começou a cair. Mas, ainda assim, a gente tem que manter unidades exclusivas para cada uma dessas doenças. A gente não pode descuidar”, acrescentou. O ponto positivo é que, com o inverno – as temperaturas começaram a baixar –, a tendência é de que os casos de dengue comecem a cair.