No dia 13 de março de 2014, Sérgio Vicente não estava se sentindo bem. Desentendeu-se com outros presidiários com quem dividia a cela na Casa do Albergado, ala destinada aos presos em regime aberto da Penitenciária de Florianópolis (SC). À tarde, perguntou aos carcereiros se poderia ter um momento a sós, para esfriar a cabeça. Foi levado até a sala usada para conversas entre os presos e seus advogados, que naquele horário estava vazia. Ali, sem ninguém por perto, Sérgio rapidamente arrancou o cadarço que amarrava sua calça de detento e a usou para se enforcar. Morreu asfixiado, aos 42 anos.
Sérgio tinha quatro filhas. Três delas processaram o governo catarinense pela morte do pai. Num litígio iniciado em 2016, elas alegaram que a administração do presídio havia sido irresponsável, pois sabia dos transtornos mentais de Sérgio e mesmo assim o deixou sozinho. Ele fora preso em 2013, depois de dar murros na própria mulher e fazê-la refém em casa durante horas sob a ponta de uma faca. Usuário de cocaína, vinha se tornando cada vez mais violento. Esteve perto de tirar a própria vida em 2009, quando escalou uma torre de transmissão em Florianópolis e ameaçou se jogar lá do alto. Desde que foi detido, passou a ter consultas periódicas com uma psicóloga indicada pela família.
Uma das filhas de Sérgio, Débora Vicente, conseguiu apoio legal do escritório de advocacia onde trabalhava como secretária, em Florianópolis. Com respaldo da equipe de advogados, ela e as irmãs pediram uma indenização de 100 mil reais pela morte do pai. O processo tramitou por cinco meses no Tribunal de Justiça de Santa Catarina até que, em agosto de 2016, o desembargador Hélio do Valle Pereira decidiu em favor da família. Ele considerou o Estado culpado pelo suicídio de Sérgio e determinou que o dinheiro da indenização fosse dividido igualmente entre as três irmãs. O governo catarinense recorreu da sentença várias vezes, sem sucesso. O último apelo foi negado pelo tribunal em outubro de 2020.
Além de Sérgio Vicente, outros 130 presos se suicidaram em 2014 no Brasil. Nos últimos cinco anos, houve quase novecentas mortes desse tipo nas cadeias. Levantamento feito pela piauí com base em dados do Depen – o Departamento Penitenciário Nacional – e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que suicídios são muito mais frequentes dentro do que fora dos presídios. Em 2019, as penitenciárias registraram 25,2 suicídios a cada 100 mil presos – quatro vezes a taxa da população brasileira em geral, de 6 suicídios por 100 mil habitantes. Essa disparidade vem crescendo. Em 2014, a taxa de suicídios nas prisões era menor, de 21 a cada 100 mil. Nos últimos três anos, aumentou de forma constante.
O agravamento desse cenário vem forçando, aos poucos, uma mudança na postura do Judiciário no que diz respeito à morte de presos. A decisão em favor da família de Sérgio Vicente é reflexo disso. Mas o principal marco dessa mudança havia acontecido meses antes, no Supremo Tribunal Federal. Em março de 2016, por unanimidade, os ministros do STF deram ganho de causa à família de um preso que se suicidou na Penitenciária de Jacuí (RS). “Se o Estado tem o dever de custódia”, escreveu Luiz Fux, relator do processo, “tem também o dever de zelar pela integridade física do preso.” Com isso, o Supremo fixou uma tese de repercussão geral – ou seja, um novo entendimento da lei que deve ser aplicado por todas as demais instâncias do Judiciário. Na época, segundo estimativa do próprio STF, havia 108 processos relativos à morte de presos correndo em diferentes instâncias no país.
Os dados de suicídios nas prisões em 2020 não foram disponibilizados pelo Depen até o momento. Ainda não é possível, portanto, aferir o impacto que a pandemia teve sobre as mortes nos presídios. A série histórica, no entanto, aponta uma tendência clara de descolamento entre as ocorrências de suicídio dentro e fora das prisões. De 2016 a 2019, a taxa de suicídios nas cadeias subiu de 15,7 para 25,2 mortes a cada 100 mil presos. Na população como um todo, esse número também vem crescendo de forma constante, mas num ritmo muito mais lento. De um patamar de 4 mortes por 100 mil habitantes, chegou a 6 por 100 mil habitantes em 2019, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“O aumento do número de suicídios nas prisões decorre da estrutura desumana do sistema carcerário e da omissão do Estado em garantir os direitos dos presos – isto é, a assistência básica aos detentos, que é garantida pela lei brasileira e por vários tratados internacionais de direitos humanos”, afirma Bruno Rotta, professor da Universidade Federal de Pelotas e estudioso do sistema prisional. “As condições degradantes dos presídios são fatores a serem considerados na compreensão dessas mortes”, explica. “Desde os anos 1980 temos visto massacres e rebeliões nas cadeias. Tudo isso cria um panorama atroz que dificulta as garantias mínimas de sobrevivência do preso, até mesmo sob aspectos psicológicos.”
Rotta concorda com a interpretação jurídica de que o Estado deve responder pelas mortes ocorridas nas prisões. Segundo ele, há décadas o poder público no Brasil tem uma postura ambígua em relação à população carcerária: por um lado, trata com indiferença a condição de vida dos presos, que são largados à própria sorte e ficam suscetíveis à influência de facções criminosas; por outro, intervém de forma violenta nos presídios quando a situação foge ao controle. “O que nós vemos é uma omissão estatal deliberada, que impõe riscos sérios à integridade física e mental de quem está hoje sob custódia dos presídios”, lamenta Rotta.
Casos como o das filhas de Sérgio Vicente, que conseguiram que o governo catarinense fosse responsabilizado pela morte do pai, têm incentivado outras famílias de presos a lutar por indenizações na Justiça. Muitas delas, no entanto, se deparam com uma barreira difícil de transpor: a falta de transparência sobre o que se passa dentro dos presídios. Sem que se possa elucidar as circunstâncias ou o comportamento de determinado preso nos dias anteriores à sua morte, não se pode comprovar a responsabilidade do Estado pelo ocorrido. O registro do que acontece nas prisões cabe justamente aos governos estaduais.
Miriane Maria dos Santos Alvarenga enfrenta essa situação desde 2017. Naquele ano, ela moveu um processo contra o governo de São Paulo após seu marido, Antonio Everaldo Alvarenga, de 40 anos, se suicidar no Centro de Detenção Provisória IV de Pinheiros, na capital paulista. As circunstâncias foram idênticas à da morte de Sérgio Vicente. Após brigar com outros presos, Alvarenga foi isolado na cela 302 – apelidada de “seguro”, para onde enviam os detentos que correm risco de serem agredidos pelos demais. Usando a calça de seu próprio uniforme, ele se enforcou. Além da esposa, deixou três filhos menores de idade.
Alvarenga estava preso desde julho de 2014, acusado de um homicídio ocorrido em 1999, no Espírito Santo. Durante quinze anos, viveu como fugitivo, até ser parado numa blitz. Foi preso e enviado para a Penitenciária de Sorocaba (SP), onde cumpriu pena em regime fechado. Não tinha histórico de depressão ou de qualquer distúrbio psiquiátrico antes de ser detido.
Quando começou a trabalhar no caso, a advogada Maisa Pinheiro Oliveira não conseguia acesso a documentos que pudessem ajudar a elucidar a morte de Alvarenga. A família pedia que o Estado fosse responsabilizado pelo suicídio e arcasse com a pensão dos três filhos do casal. “Toda a papelada sobre o comportamento dele na prisão estava retida pelo estado de São Paulo – o mesmo estado contra o qual nós lutávamos na Justiça”, explica Oliveira. Ela conta que, por isso, teve de se limitar a argumentos genéricos ao longo da disputa judicial. Perdeu a ação em todas as instâncias, e o processo acabou sendo arquivado.
Recentemente, no entanto, o caso sofreu uma reviravolta. A Polícia Civil concluiu o inquérito que investigava a morte de Alvarenga e, com isso, Oliveira teve acesso a informações importantes sobre os últimos meses de vida do detento. Descobriu que há tempos ele vinha frequentando sessões com o psiquiatra do presídio e que estava sendo medicado após apresentar sintomas de alucinação. Segundo a advogada, três dias antes de morrer, Alvarenga havia tentado cortar os pulsos. Ela alega que, além disso, o preso chegou a pedir transferência para um hospital psiquiátrico quando a situação se agravou, mas não foi acolhido por falta de vagas.
A família, agora, pretende entrar com uma ação rescisória na Justiça – isto é, um processo que visa reverter uma sentença que já transitou em julgado. Oliveira está otimista de que dessa vez conseguirá a indenização. “No Brasil, o Estado não responde pela morte de detentos que não têm histórico prévio. Mas conseguimos juntar, finalmente, documentos sobre a vida do Alvarenga no presídio que demonstram a omissão do poder público. Esperamos que agora o processo vá adiante.”