Era o Hotel Cambridge é extraordinário em vários sentidos:
Fora do comum ou sem paralelo no cinema brasileiro atual, o filme é apresentado como resultado da criação coletiva da Frente de Luta por Moradia (FLM), do Grupo Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST) e da Escola da Cidade, e da direção de Eliane Caffé a partir do roteiro que ela escreveu com Luis Alberto de Abreu e Inês Figueiró;
Notável, Era o Hotel Cambridge trata de tema atual relevante e não reduz o drama dos refugiados sem moradia, brasileiros e estrangeiros, a uma trama romanceada;
Admirável, o filme cria uma narrativa em forma de mosaico, no qual as sequências são peças de forma irregular intercambiáveis dotadas de certa autonomia. Sem deixar de ter até mais de um clímax – a ocupação e a ação do Batalhão de Choque da Polícia Militar para cumprir a ordem judicial de reintegração de posse – não confere a nenhum deles função catártica convencional;
Esplêndido, consegue dar conta de múltiplos fios e formas narrativas, sendo algumas das mais marcantes os quadros vivos e os diálogos à distância, via internet, dois dos quais são dos seus melhores momentos – as conversas do congolês com seu irmão e a canção colombiana (será colombiana mesmo, ou mexicana? A conferir);
Magnífico, trabalha com imagens heterogêneas, de procedências variadas e através de cenas documentais de outros filmes torna visíveis as memórias de refugiados estrangeiros;
Imprevisto, surpreende e desconcerta, virtudes raras em meio à reiterada mesmice do cinema brasileiro predominante;
Inusual, não segue fórmulas narrativas consagradas. Nesse sentido, deve ter dificuldade de estabelecer um elo com espectadores habituados às receitas consagradas do entretenimento audiovisual;
Grandioso, orquestra com habilidade um grande grupo de personagens principais, secundários e figurantes, alguns com mais destaque, mas sem se concentrar com exclusividade em nenhum deles;
Em resumo, um filme a ser visto e debatido, sobre o qual vale a pena pensar, que deve vir a ser reconhecido como um marco do cinema brasileiro.
Em primeiro lugar, a visão idealizada da maioria dos personagens que formam um painel humano heterogêneo interessante, mas com poucas nuances. Além disso, a celebração assembleísta que predomina, mesmo em situações tensas ou de risco, confere a Era o Hotel Cambridge um tom festivo pouco verossímil. A tal ponto que na primeira vez que assisti ao filme, sábado à noite, entre aplausos esparsos, ouviu-se também um “Fora Temer!”. É verdade que no dia seguinte, quando assisti a Era o Hotel Cambridge pela segunda vez, em outro cinema, a plateia foi mais comedida e pareceu ter apreciado o filme por seus próprios méritos.
Mais interessante é outro trecho da mesma entrevista, no qual Caffé afirma que seu processo de criação é orientado hoje pela busca da “questão certa, a que melhor possa representar os conflitos humanos, perguntar pelo ser humano. Saber perguntar pelo ser humano, de maneira certa, é o que mais me preocupa hoje em dia. Sinto que, conforme eu vou envelhecendo, vou entendendo melhor o mundo e a brutalidade de suas relações”.
Há duas questões interdependentes implícitas nesse trecho da entrevista – a procura pelo tema certo (ou a “questão certa”) e pela forma correta (“a maneira certa” de perguntar ou contar). Em Era o Hotel Cambridge, Eliane Caffé conseguiu o que procurava nos dois casos, o que não é pouca coisa.